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Desmond Tutu, o cruzado pela liberdade, justiça e paz

por Severino Ngoenha, Carlos Carvalho, Eva Trindade, Filomeno Lopes 

O também covídico 2022 (tris repetita) iniciou com celebrações canónicas da figura iconoclasta  de Desmond Tutu. Até aqueles que do Apartheid só detestavam o nome e nunca hesitaram em apoiar as suas práticas, por oportunismo do politicamente correcto, juntaram-se aos hosanas que, do Soweto e dos Sowetos do mundo se ergueram, em uníssono, para celebrar um dos seus mais dignos líderes e profetas, em oposição e contraste com os clones que na África de hoje tronam, apócrifos e heréticos, por não ousarem nem a missão profética (de Jerusalém), nem o ideal político (de Atenas) e de justiça (de Roma) de que são investidos. O bispo de Cantuária, Justin Welby, que oficiou  o requiem de Tutu na catedral do povo (é assim que é conhecida a catedral de São Jorge na Cidade do Cabo) como quer a tradição eclesiástica, disse dele  He fought the good fight. Tutu teve, com o seu alter ego, Nelson Mandela,  um telos e uma teleologia comum: o combate contra a injustiça. Todavia, apesar de tanto em-comum – no combate e na corrida pela justiça – eles divergiram em questões éticas e filosóficas fundamentais: o recurso às armas para  repor a justiça e a recompensa às vitimas dos crimes do Apartheid

No julgamento que em 1963 o condenou à prisão perpetua, Mandela (contra a opinião do seu advogado, Joe Slovo), leu uma declaração com a qual de réu se transmutava  em acusador da injustiça e imoralidade do sistema de apartheid: o ideal de uma sociedade democrática e livre é um ideal para cuja concretização espero viver. Mas se for necessário, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer.

 O juiz Quartus de Wet, surdo à razão, endoutrinado – como todos os efigénios do mundo – a julgar as acções humanas em função de um código, mesmo que ele seja uma anti-socrática aberração moral e jurídica; sem nunca se interrogar se as normas estavam em conformidade  com  o ideal de  justiça que o direito é suposto perseguir, mas com a certeza fanática de um carrasco do sistema, condenou Mandela e os seus companheiros a prisão perpetua.

Como os sábios de Salamanca e pais do direito internacional público  (Vitória, Soares…) fundamentaram a Ius Inventionis (a partir do texto de Cristóvão Colombo) na Ius Predicanda Evangelium, assim também o pastor Daniel François Malan fundou e fundamentou o Apartheid, defendendo que a política da segregação racial se baseava nos princípios cristãos do que é justo e razoável – depois de  Louis Botha, em 1910, ter proibido aos não brancos de se tornarem membros da prosélita e missionária Igreja Holandesa Reformada. Tutu, que tinha falhado os seus primeiros amores com a dispendiosa  medicina e com a renúncia ao professorado, é do púlpito (como  Resende na Beira e Viera Pinto em Nampula contra o colonialismo) que inicia o processo  de desconstrução da falsa aletheia (verdade) que era usada, pretextualmente, como substrato moral do sistema do apartheid e do seu direito.

Como todo o eclesiástico,  ele estudara a eclesiologia, a dogmática, o direito canónico, a patrística, a escatologia  (…), mas a teologia da história e política que  influenciará a sua acção militante foi lhe inspirada pela teologia negra de libertação, cuja fonte de inspiração, no dizer do seu arauto (James Cone),  não era nem a revelação transcendental, nem a manifestação epifânica de Deus, mas uma experiência existencial feita de dor e sofrimento (que produziu M. L. King mas também Malcolm X). É na esteira dos pregadores negros do século XVII e XVIII (cuja arqueologia e referências históricas estão escritas nos e pelos gospels e spirituals) que descobriram, até numa leitura ad literam (literal) do vétero testamentário,  que o Yave  ou Eloim bíblico,  do qual os  Boeres, como os racialistas americanos, pretendiam haurir os seus pressupostos morais e procedimentos jurídicos (in god we trust), não  só não era arianista/eugenista/racialista mas tão avesso a toda a forma de discriminações e injustiças que fazia corpo e causa com os oprimidos. 

A dimensão libertária da teologia  (que ganhara visibilidade na América Latina com Gustavo Gutierres, Leonardo Boff, Jon Sobrino, Helder Câmara…) fortaleceu as suas convicções de luta contra as injustiças mas, ao mesmo tempo, solidificou a sua crença no valor catártico e sotereológico do verbum (logos); enraizou o seu arreigamento ao valor incomensurável da vida – toda a vida humana – a à sua crença numa justiça (bíblica) como repristino, restauração de laços e relações dilaceradas (Ubuntu). Eis por quê, apesar do muito em-comum com Mandela, quando este enveredou, desesperadamente, pela via armada, criando o Umkhonto we Sizwe, Tutu (no seguimento de uma tradição de luta política, anti-bellum, que vai de Toslstoi a Gandhi e a M.L.King) não pôde segui-lo, da mesma maneira que quando foi questão da recompensa – apesar da incompreensão de grandes desconstrucionistas como Derrida ou de militantes da causa negra nos EUA – ele foi intransigentemente contrário. Mutatis mutandis, quando se tratou de uma “restaurative justice“, uma justiça que  não quer a morte dos opressores mas a sua conversão (o que a teologia Paulina chama de metanoia), ninguém estava melhor armado do que ele para levar a cabo essa missão. Tutu alarga a sua perspectiva para alem da distinção que o direito hebraico faz entre nispat – justiça concebida como intervenção de uma terceira pessoa – e ryb – justiça  entendida como encontro entre o culpado e a vítima (Gustavo Zagrebelsky) – e estende esta forma de justiça ao plano colectivo e nacional, isto é, ao plano político. Mais do que um imbróglio jurídico-político-ético-religioso, como pretende a filósofa Barbara Cassin, tratou-se, em nome da justiça, de ir para além das tradições do direito (positivo e consuetudinário) e das limitações de modelos históricos (romano, germânico, anglo-saxónico…)  e até de perspectivas disciplinares.

Porém, podia a justiça Ubuntu ignorar e minimizar a questão da re-distribuição? A restaurative justice – na argumentação de Tutu – implicava a reparação, mas o prelado introduz uma diferença entre o conceito de reparação e o conceito de compensação. O reconhecimento público dos males feitos é um reparação, mas compensar implicaria a possibilidade de quantificar os sofrimentos, ou seja, considerar que a perda de um ser querido pode ser contrabalançada com valores monetários. Esta argumentação foi considerada por Jacques Derrida, não convincente, sob o plano intelectual, e contestada, no plano prático, pelos companheiros sobreviventes de Steve Biko, fundador do movimento da consciência negra. A justiça de reconhecimento (recognition), que implica a restauração da dignidade humana das vítimas, não pode substituir a justiça penal e retributiva e ainda menos a justiça social distributiva.

O objectivo final da justiça restaurativa (ubuntu) não era simplesmente a identificação do outro, nem mesmo perceber o outro como semelhante, mas também dar-lhe  o devido respeito, admitir que «a minha vida é igual à tua». Trata-se do reconhecimento do seu ser, da sua existência, da sua identidade, do seu lugar numa cidade comum. Fazer comunidade é tornar-se uma sociedade de cum-munia, isto é de dádivas (munia) partilhadas. A mútua construção de uma comum comunidade de destino implica então uma redistribuição social dos bens oriundos da segregação que se quer ultrapassar, não necessariamente como reparação dos erros infames e vergonhosos sofridos, mas a transposição para o terreno existencial dos postulados ético-jurídicos. Se essa justiça não se faz ágape/dilectio  corre-se o risco de se transitar da racialização política-jurídica do apartheid a uma racialização económico-social pós-apartheid

Depois do bispo Justin Welby enfatizar que Tutu combateu o bom combate, o presidente Ramaphosa acrescenteu que Tutu foi “um cruzado pela liberdade, pela justiça e pela paz”. Todavia, sublinhe-se queTutu combateu o combate possível. É que antes dele subir ao ring, o pós-apartheid  foi viciado por conluios e maquinações pré- e post-apartheid que o enfeudaram à falsa democracia do pensamento único,  pós-histórico e pós-dialéctico, que ganha forma na meta-narrativa ultra-liberal, com os seus corolários da globalização, sob a égide de uma economia individualista.

A justiça restaurativa não foi, por isso, uma metanoia do retorno dos prevaricadores à vida em comum, foi a paradoxal elevação do status quo e do modo de vida dos que prevaricaram o modelo de vida e de existência (black empowerment, affirmative action), o que resultou numa justiça pós liberal e anti-ubuntu, porque órfã da igualdade e da fraternidade

Com o fim do apartheid a África do Sul se juntou à sociedade-mundo, não essencialmente em termos de direitos humanos e democráticos (sistema cada vez mais em descrédito e em queda livre) mas no incremento e legitimação de um Rainbow apartheid da economia mundo, em nome de uma (já não racial e ainda não biotecnológica) desigualdade, mas de uma pretensa meritocracia adquirida e assente em todo o espaço-mundo, por diferenciações históricas estabelecidas por políticas de discriminação e economias de exploração. 

O paradoxo da processo sul africano de reconciliação, como da filosofia Ubuntu em geral, é que eles querem um retorno à ‘cum-munia’, mas não se interrogam das razões e causas que levaram à ruptura (ou desrespeito) dos laços comunitários. Foi o solipsismo individualista que criou a escravatura, o racismo e o apartheid; é esse modelo, da primazia do indivíduo sobre a comunidade – paradoxalmente defendido por Thabo Mbeki num “anti  Alain Locke”- Renascente Africa – que continua, na sua forma neoliberal, a multiplicar as discrepâncias e faz com que – nas palavras do último Tutu – os dirigentes do ANC estejam sentados num barril de pólvora.

Como até nos casamentos entre bantus (germanizados), os noivos sobem ao altar ao ritmo da marcha nupcial de Mendelssohn ou do coro nupcial de Wagner,  os pregadores ilustres descem à última morada no eco apaziguador da segunda carta de São Paulo a Timóteo, escrita enquanto o apóstolo de Tarso aguardava nas jaulas romanas  o seu martírio eminente: “Combati (eu) o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé. Agora me está reservada a coroa da justiça que o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia…”

Não sabemos se Tutu deixou um mundo mais justo ou mais sofisticadamente hipócrita. Na África do Sul a democracia é hoje multirracial mas as discrepâncias económicas e sociais são tão grandes ou maiores que as do passado; muitos dos camaradas (cum panes) – cooptados, seduzidos ou corrompidos – comem o pão sozinhos; muitos profetas claudicaram e desapareceram.

A esperança é a aversão  que o ultra-liberalismo e a globalização, como discurso único e como novo discurso meta-narrativo, suscite num número sempre crescente de Malemas (politicos, intelectuais e pensadores): pela aversão filosófica de uma soteriologia imanente que o liberalismo pretende incarnar na teologia da história fukuyamiana,  pelos limites objectivos de um sistema antropocêntrico e de depredação da natureza, pela insustentabilidade antropológica e social da uniformização axiológica do mundo e das culturas mas, sobretudo, pela injustiça planetária que ela provoca, globalizando os riscos humanos e sociais dos seus empreendimentos mas privatizando as suas benesses.

Devem ser malemas decididos a combater o bom combate: inscrever na pauta da política mundo as determinantes (paradoxalmente liberais) da igualdade e da fraternidade como um policy paradigm.  O desafio é a composição de uma sinfonia, não wagnerianamente tendenciosa e de parte mas um armstronguiano jazz de wonderfull   world.

Desmond Tutu combateu o combate possível, mas a sua cruzada ( como as de Nkrumah, Nyerere, Cabral, Mondlane, Machel…) riscam desvanecerem-se no nula se não forem perseguidas (Mandela e Tutuianamente) – com coragem, abnegação e ousadia – por novas gerações de timóteos a favor da equidade e a  justiça, que é um processo sempre a infieri (Derrida)…

Tutu talvez não tenha lido “O nome da Rosa” de Umberto Eco e sabido dos dissabores medievais dos crentes e religiosos que se deleitavam no riso, mas talvez tenha lido o “Homo Ridens” de Aristóteles e aprendido que o riso era a manifestação da comum humanidade dos que vivem.  Seja como for, o seu sorriso contagioso continua a dar um sabor Ubuntu (eu sou porque nós somos) à vida porque ela é a existência.

Até sempre Tata (pai) querido pequeno, grande homem!



Texto de Severino Ngoenha, Carlos Carvalho, Eva Trindade e Filomeno Lopes 

Marcos Carvalho Lopes

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