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DESPREOCUPADOS RUMO À GUILHOTINA

ensaio de Severino Ngoenha, Giverage Amaral, Augusto Hunguana

Imagem de nobres  no século XVIII na guilhotina no estilo de Jacob Lawrence feita por IA (DALL-E2)

Despreocupados rumo à guilhotina, do nostálgico – e moçambicamente saudosista – do Ancien Régime João Clá Dias, é um título que soa estranho e intrigante, mas paradoxalmente invocativo para a situação africana, como são também paradoxais a lógica e o enredo silogístico do autor sobre os dissabores que apoquentam a modernidade. Na premissa maior do seu silogismo, ele coloca Lutero e a reforma protestante, que teriam aberto a estrada ao individualismo e à concupiscência e, por consequência, ao afastamento da moral, como era entendida pela escolástica e vivida na idade média: agitur sequitur esse.

A premissa menor foram as azáfamas de reivindicações solipsistas que levaram à Revolução Francesa, o dominó que transformou o mundo moderno ocidental. Incapaz de cumprir com as suas promessas de liberdade, igualdade e fraternidade, ela fatalmente levou ao epílogo (corolário) óbvio (conclusão) da perversão axiológica, que foi (segundo o autor) a socialista Revolução Russa – conotada com o orgulho, o consumismo e a sensualidade –, e à ruptura com o jus (Direito) e a ordem social da época.

No silogismo clássico, quando a premissa maior é falsa (ou duvidosa), a conclusão não pode ser verdadeira. A primeira estranheza do livro é que, apesar de a premissa maior ser historiograficamente discutível, a premissa menor (incapacidade da Revolução Francesa em cumprir sobretudo com a igualdade da fraternidade) e a conclusão (nascimento de uma revolução socialista com vocação correctiva do individualismo) mostram-se indiscutíveis (Alain Badiou). O liberalismo permite que um Elon Musk detenha uma riqueza da qual só quatro por cento seriam suficientes para acabar com a fome no mundo, ou que um Bernard Arnault seja o homem mais rico do mundo vendendo artigos de luxo num mundo repleto de famintos. Quid da igualdade e da fraternidade?

Se o beato João Dias tivesse raciocinado fora dos parâmetros do eurocentrismo (de Levinas/Hegel/Heidegger…) e mais no quadro da vocação católica do cristianismo, poderia ter sido menos hostil ao papa Francisco (teólogo da libertação) e sobretudo poderia ter produzido um enredo histórico diferente e mais em consonância com a história do Brasil de Abdias do Nascimento, do qual é – por registo civil – oriundo. A premissa desse silogismo adversativo seria uma Europa que, à saída da Idade Média, deu vazão ao espírito nietzschiano de potência que lhe é congénito desde o Império Romano: elimina os índios (Ius ad bellum), conquista as Américas (Ius inventionis), escraviza os africanos (não humanos) e impõe um direito internacional (Grótio, Vitoria, Soares) selvagem, baseado na brutalidade e na força. Nesta lógica historiográfica, não seria a Revolução Francesa a consequência, mas a Revolução Haitiana (da qual Hegel parece ter tirado a sua fenomenologia do espírito) a antítese: revolução de igualdade, além das raças…

Imagem de nobres  no século XVIII na guilhotina no estilo de Basquiat por IA (DALL-E2)

Se os princípios da revolução de escravos tivessem vingado, não teria sido necessária a revolução correctiva de Outubro, nem os seus avatares de microrrevoluções socialistas em África. Porque é que ela falhou e se tornou até uma involução? Porque os bonapartes de ontem e de hoje (supremacistas de toda a espécie), quão hitleres, não conseguem conceber negros fora da escravatura e, por isso, continuam a atrair (para navios negreiros, com novos apelativos) e a atraiçoar os louvertures de ontem e de hoje (que acreditam na palavra e honra daqueles que nunca cessarão de “trapacear com os próprios princípios”, para citar Césaire).

Mas, sobretudo, a Revolução Haitiana não vingou pela guilhotina estrutural, aquela que desune e corta a espinha dorsal de qualquer que seja a revolução: a credulidade. Continuar a acreditar, depois de 700 anos de mentiras e opressão, independentemente das máscaras e facetas com que os guilhotinadores se apresentam (doadores, parceiros de cooperação, conselheiros económicos, que nos intimam a abandonar a agricultura que alimenta a maioria dos moçambicanos), que as suas receitas nos conduzem a uma forma de execução mais humana do que a decapitação ou o enforcamento é simplesmente estúpido. Porém, coitados, está no ADN deles: não são capazes de outra coisa que não a vontade de potência. Segui-los, seguir o que eles apregoam, é o caminho mais curto e certo para continuarmos na bastilha. Devíamos deixar (permitir/forçar) que eles nos deixem; foi o que Samir Amin chamou de desconexão.

As nossas estruturais guilhotinas levam a que as nossas lideranças políticas continuem a correr e fazer maratonas, sempre que são convocadas a cimeiras França-África, EUA-África, Turquia-África, China-África (sem mesmo se darem ao trabalho de concertar umas com as outras) e até a formar bicha de vassalagem na coroação de monarcas em nome da Commonwealth (que só beneficia aos ingleses), ignorando as responsabilidades preponderantes do Império Britânico na escravatura e na divisão e colonização de África. Os felwine sarrs, intelectuais sedentos de reconhecimento das metrópoles (Eboussi Boulaga) ou sensíveis à pecúnia, levam a juventude africana à discutir o futuro do continente com os macrons do mundo. Como “Sair da Grande Noite” confiando o futuro de África aos arautos da “necropolítica”? (A. Mbembe)

Há, felizmente, um ‘ou’, um disjuntivo africano que, mutatis mutandis, reactualiza sonhos passados (de Du Bois, Garvey, Sylvester Williams), mas não ultrapassados (e por isso não se confunde com os afrofuturismos estéticos); não de pequenos nacionalismos étnicos ou gradualistas, mas de um Pan-africanismo renovado. Ele é hoje incarnado por Omotunde (morto, quase certamente por assasínio), por Malema (expulso de uma ANC corrupta e em debandada), por Nathalie Yamb (persona non grata na França), por Kémi Séba (África livre ou a morte, niilismo negro), Aminata Traoré (sob vigilância dos serviços secretos) e outros…

A disjunção está posta, cabe a cada um escolher o seu lado no xadrez da sobrevivência: pecuniocracia e aliança (subordinação) com aqueles que cooptam ao mesmo tempo o(s) governo(s), as oposições e a sociedade civil, para os impedir de, juntos, pensarem o país e o continente;  ou o lado daqueles que, mordicus, aos dominadores que se agrupam e se recompõem (UE, OTAN, G7, G20, BRICS…) respondem com um grande elã ao apelo para a recomposição e unidade, e para – nkrumahnianamente – falar a uma só voz.

Num mundo em que, face às questões climáticas, se quer transformar África num grande parque (depois da WWF e da UICN, agora são os EUA a colocar na mesa 250 milhões de dólares para capacitar os juízes na luta contra a caça furtiva); num mundo de corrida – entre antigos e emergentes –, numa época de reestruturação mundial dos equilíbrios geopolíticos, África arrisca-se a ser recolonizada (P. Lumumba) ou a ser de novo o teatro de confrontações entre imperialismos em conflito.

Não há tempo nem lugar para tergiversações, retóricas sofistas, compromissos falaciosos e oportunistas. Cada um tem que escolher o lugar onde está: adepto da marcha despreocupada em direção à guilhotina ou, enfim, com todos os meios necessários (inclusive matar o rei), impor a nossa existência e humanidade ao mundo.

Depois das guilhotinas, passadas e presentes – muitas vezes com a nossa cumplicidade –, o (insensato) tertium non datur.

O 25 de Maio (Dia de África) não é uma efeméride a ser comemorada ou celebrada, é uma intimação existencial de uma África a parir sem anestesias nem peridurais, mas na dor, com lágrimas e sangue. Se não tivermos os tomates das nossas mães que deram à luz sem anestesia nem hospitais, então seremos nós próprios um aborto.

Contra as guilhotinas dos tempos do mundo que vivemos, precisamos -de nos armar – de Azagaias.

ensaio de Severino Ngoenha, Giverage Amaral, Augusto Hunguana

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. Uau!!! Mais uma verborreia bizarra e raivosa cheia de factos/menções, de pseudo filósofos e escrita por um filósofo que se formou na Europa (!?), contudo duvidosas e de aritmética ainda mais duvidosa. O meu amigo filósofo devia saber, mas parece que não sabe, que as tais fortunas “obscenas”, os valores das mesmas corresponde ao valor de mercado das ações/investimento e não a dinheiro no banco, para além de estarem sujeitas às variações dos tais mercados. Se usar aritmética simples – aprendida na escola primária- pode muito bem constatar que não é, nem de longe, o suficiente para remediar a condição económica dos que vivem abaixo do limiar da pobreza!
    Depois de ler este “ensaio” – nome bonito para um pensamento linear carregado de emoção ignorando a razão ( raciocínio) muito semelhante com o qual critica a revolução francesa, por exemplo!

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