0

Dialética e sofística/final: O turbilhão do ser

Para o filósofo e o cientista, as coisas só podem ser de alguma maneira e a verdade é pública; para o sofista, as coisas são de tantas maneiras quantas sejam pensadas, imaginadas e ditas, pois cada um tem direito à sua personalíssima verdade

Gonçalo Armijos Palácios

O ritmo frenético que envolve as coisas e as perpassa na sua interminável mudança esconde e mostra, ao mesmo tempo, o que elas são. Tudo muda, às vezes perceptivelmente, às vezes não. Nessa mudança se oculta, no entanto, o que de muitas formas permanece. E aquilo que permanece podemos chamar, num sentido, ser. Ser é, nessa acepção, aquilo que faz de algo esse algo e não outra coisa.

Não é fácil, portanto, dizer quem realmente somos pois não nos limitamos a meramente ser entes físicos. Somos entes psíquicos, emocionais, passionais, inteligentes. Estamos sujeitos, por isso, a outras formas e outros ritmos de mudanças. Temos muito mais do que entes que não sentem, se emocionam ou pensam. O mundo que criamos é, em decorrência disso, um mundo não só visto, mas sentido, pensado, imaginado, desejado ou temido. Cada um de nós, recebendo a carga emocional dos outros, a transforma na sua própria, modificando-a com seus particulares temores e desejos. O mundo que criamos é, assim, um mundo de idiossincrasias agregadas. Um aglutinado de emoções, temores, planos e esperanças entrelaçados, confundidos.

Agreguemos a tudo isso a palavra. O mundo que criamos não é só sentido e pensado, temido ou sonhado, é um mundo dito. É um mundo falado de uma maneira ou de outra. Porque é temido e amado de uma ou outra forma. Nesse entrelaçamento de fantasias que é o mundo, nesse entrecruzamento de projetos contraditórios, alheios, paralelos, semelhantes, diferentes, lutamos para vencer, para não sermos derrotados ou, simplesmente, para sobreviver.

Uns vivem na agonia de seus próprios temores e na esperança de suas privadas fantasias. Outros, um pouco mais esquecidos de si, querem entender os outros. Lutam para compreender o mundo em que lhes tocou viver.

O mundo é muito mais do que um aglomerado de mundos privados. É um, público, comum a todos, em que coexistem aqueles pequenos e estreitos mundos dos particulares.

Muitos se perdem nos labirintos dos seus pequenos mundos sem sequer querer conhecê-los. Aprisionados por seus próprios sofrimentos e frustrações, mal conseguem enxergar o mundo exterior, ficando reféns em seus próprios labirintos. Mas os caminhos desses labirintos se entrecruzam com os de outros labirintos. Muitos pensando que o mundo não é mais do que a convergência de todos os contra-sensos, dos infinitos labirintos. Assim, pensam, estamos fadados a viver neles, seja nos nossos, seja nos alheios.

Mas não somos piores que os insetos. Não estamos tão presos à ignorância do mundo exterior. Podemos vê-lo, mas também podemos conhecê-lo. Teimosamente temos procurado os caminhos do único mundo. Por séculos pensamos a natureza, o mundo, o cosmo, o ser humano, a sociedade. Não somos pobres coitados perdidos nos seus mundos particulares. Temos acesso ao ser das coisas e temos descortinado muitos dos seus mistérios. Porque somos seres que temos paixões e desejos. O animais também desejam e, segundo alguns, até idéias possuem. Mas somente nós temos paixões. Os excessos das paixões que nos levam a ficarmos por baixo das bestas e, ao mesmo tempo, nos levam a alturas inimagináveis. Somos tudo isso. Faz parte do nosso paradoxal e labiríntico ser.

Mas não deixamos de ter consciência disso tudo. Somos tudo menos idiotas ou completos ignorantes. Comunicamos o que queremos e tememos. Repassamos o que aprendemos. Compartilhamos o que sabemos. Enfim, falamos. Falamos e escrevemos. Ouvimos e lemos. Pensamos, compreendemos. Questionamos, procuramos. Buscamos e, muitas vezes, achamos. Somos o homo inventor, o que não é possível encontrar pronto, fazemos. Fabricamos o mundo mesmo à revelia da natureza, mesmo que tenhamos que contorná-la, desafiando suas leis. Fazemos isso porque a entendemos, compreendemos seus limites, e o que aprendemos não nos satisfaz. Desse modo, ultrapassamos os limites por ela impostos. Então, voamos, adentramo-nos no espaço e mergulhamos nos abismos oceânicos, parecendo não haver limites para o nosso ousar, fazer, inventar, criar. Pois parece não haver limites para o nosso conhecer.

Nosso fazer, inventar e criar provam o quanto sabemos e o quanto descobrimos. Eles são a prova incontestável que superamos as confusas e efêmeras aparências das coisas. Assim, aos poucos, chegamos ao ser desse movediço cosmo que nos abriga. Apesar de ser infinita nossa ignorância sobre inúmeras questões, é profundo nosso conhecimento. Conhecimento que transmitimos com vozes e sinais falados e escritos numa seqüência ordenada. Numa seqüência que desentranha os segredos do mundo e desvenda os mistérios das coisas e o itinerário do ser. Não permitamos que o turbilhão das aparências esconda o ser e nos afaste irrevogavelmente da trama da verdade.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *