A lembrança de Heráclito nos faz pensar sobre o nosso ser. Quem somos? Os de ontem, os de hoje, os de amanhã… os de nunca?
Gonçalo Armijos Palácios
Há trechos no Poema de Parmênides que mostram um tom polêmico. O objeto de suas críticas era Heráclito e sua teoria do ser. Uma teoria do ser na qual vemos a coincidência dos opostos. A coincidência entre ser e não-ser. Esta talvez é a primeira grande discussão metafísica da filosofia ocidental. O primeiro embate filosófico, lembre-se, deu-se entre os filósofos físicos, Tales e Anaximandro, e teve como objeto a questão da natureza do cosmo.
As diferenças entre Heráclito e Parmênides perpassam o físico e inundam a essência mesma de todas as coisas. Mais ainda, o substrato de tudo, as propriedades íntimas de tudo o que é: o âmago do ser.
Qual é esse substrato e em que consiste esse âmago metafísico? Segundo Heráclito, consiste em que tudo seja e não seja. Em que todo caminho de ida seja um caminho de volta. E há indícios de que tudo seja como ele diz? Talvez muitos. Nós mesmos, para começar. Nós que um dia fomos crianças, nós que já não o somos. Nós que um dia fomos o que já não somos e que necessariamente não somos ainda o que seremos depois. Nós que, mesmo não sendo as crianças que fomos, as guardamos em algum lugar do nosso ser. Porque quem são essas crianças que já não somos senão nós mesmos? E quem são aqueles anciãos que ainda não somos senão, mais uma vez, nós mesmos? E que é a vida a não ser, num sentido, um caminho de volta ao momento inicial de um nada que nos envolvia nas brumas do não-ser? Que é nossa vida senão esse fugir constante em busca de um futuro próximo e distante que inabalável nos aguarda? E que é o presente senão o instante efêmero em que o futuro foge para o passado? E que é o tempo senão um eterno espremer-se de instantes fugidios que escapam do futuro e procuram seu passado? Somos isso, nós e as coisas.
Mas nesse fogo eternamente aceso que é o ser que nos consome, e ao nos consumir nos realiza, tentamos perseverar, ficar, querendo aprisionar no presente aqueles momentos que nos enganam na sua volátil presença. Porque cada aspecto foge de nós, para sempre, quando piscamos, quando viramos o rosto, quando exalamos e inalamos. Exalamos o que acabamos de ser inalando aos poucos quem seremos. Inadvertidamente. E assim deixamos escapar nossos “somos” que desapercebidos viram “fomos” ficando perplexos com os “seremos” que vão nos invadindo e que, dia após dia, mês após mês, ano após ano, subitamente, descobrimos no espelho. Esse desconhecido que nos mira e no qual devemos nos reconhecer.
Quem realmente somos? Quem estamos sendo e quem queremos ser? Não sabemos. A vida é um constante esforço por reconhecer essa pessoa que nos olha impávida do outro lado do espelho e que jamais mente. Que não oculta que o que achamos ser não é mais, que não está mais ali, nem como uma mera imagem, nem sequer como lembrança. Pois a esse eterno escorregar de instantes estamos submetidos; e cada gota, e cada segundo, e cada instante é a gota que cai num lago que não respinga, é um segundo de um relógio que não clica e o instante de um momento que não parece ter começo nem fim e que nos ilude no seu aparente permanecer.
Mas as aparências nos iludem e ainda pretendemos ser o que já fomos e achamos já ser o que seremos. Mas não somos mais quem fomos e ainda não somos quem seremos. As aparências nos iludem e pensamos que somos sempre nós, idênticos, na unidade e na permanência enganosa da nossa curta história. E nos confundimos sendo aquele conjunto disforme de lembranças e planos e projetos. E não sabemos se somos nós os que proferimos, os que prometemos, os que conjuramos. Não sabemos se somos os que sofremos ou os que temos esperanças. Os iludidos, os fracassados ou os bem-sucedidos e abençoados. Quem somos dentro desse labirinto de instantes, de desejos e frustrações, de fantasias e temores? Quem realmente? Será que nos preocupamos mais pelo que somos ou pelo que aparecemos. Os que aparecemos perante nós e nossas consciências ou aqueles que aparecem para os outros. Os transparentes ou os mascarados.
Caminhamos por sendeiros que não sabemos aonde nos levam, mas sabemos bem de que lugar nos trazem. Pois desses lugares nos afastamos irremediavelmente, para bem ou para mal. E assim, à medida que passa o tempo vamos nos distanciando de quem um dia fomos, de quem um dia quisemos ser, de quem, provavelmente, nunca chegaremos a ser. E a nostalgia da perda e a frustração do fracasso farão parte, mais uma vez, dos nossos peitos errantes e se instalarão em nossos corações desiludidos. Ou, quiçá, não…
Porque lutamos em permanecer e lutamos por ser. Insistimos em ser quem queremos ser, quem talvez já fomos e quem ainda seremos. E, assim, vamos lutando, sem perceber, para nos mantermos fiéis ao nosso passado ou ao nosso futuro, às nossas conquistas ou às nossas fantasias, felizes, infelizes, confiantes, duvidosos… Nem santos nem demônios, nem heróis nem vilões, apenas nós, seres condenados a ser, deixar de ser e vir a ser ou, o que é pior, a nunca ser, a jamais deixar de ser nem, algum dia, vir a ser…
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005 |