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Entre A República e O Príncipe

A encruzilhada entre a proposta política de Platão e Maquiavel continuam relevantes para pensar os caminhos de Moçambique

ensaio de Severino Ngoenha, Samuel Ngale, Augusto Hunguana, Giveraz Amaral e Alcino Nhumaio

Bis repetita. Voltar à sondagem de 2004 da BBC, em que se convidaram os ouvintes a designar o maior filósofo de todos os tempos, é pertinente para o enredo deste ensaio. Também é importante recordar que os membros da International Plato Society, sentindo o que pareciam ser os ventos do Olimpo a mudar de direcção, convidaram todos os seus seguidores a votarem: era para eles necessário que Platão continuasse a reinar sobre o mundo das ideias. A massinguita de então foi que Karl Marx ganhou com 27,93 % de votos e Platão ficou em quinto lugar, com 5,65 % de votos, muito atrás de David Hume, Ludwig Wittgenstein e Friedrich Nietzsche.

Esta derrota foi, contudo, considerada anedótica, porque ninguém parece poder abandonar os diálogos socráticos. Há séculos que notre cher Platão – diz Alain Badiou – governa a Filosofia, que todos pensamos com ele ou contra ele. Aliás, o primado popular de Marx (e a grande influência que ele teve sobre os maiores pensadores do século XX) deve-se, provavelmente, ao facto de ser percebido como a encarnação intelectual moderna do ideal platónico de justiça. O Das Kapital, nascido nas circunstâncias que Charles Dickens chamou “tempos difíceis”, é, em abono da verdade, uma denúncia à usurpação do que devia ser comum (cum-munia, partilha de bens) por uma oligarquia pecuniocrática (que Marx chamou capitalista ou burguesa) e uma tentativa de repor os valores republicanos da igualdade entre todos os cidadãos.

O que faz correr a Filosofia, desde Platão, é a utopia (“verdade de amanhã”, de Victor Hugo) de buscar a eudemonia (felicidade) para todos, realizando a justiça (que segundo Derrida está sempre à nossa frente), construindo uma sociedade sem mestres e escravos (Hegel), sem exploradores e explorados (Marx), através da edificação de um sistema político e instituições que garantam que todos gozem dos mesmos direitos e tenham as mesmas obrigações. A esta primeira utopia da história (muito antes de Thomas More e da Cidade do Sol de Campanella) Platão chamou República (Πολιτεία em grego e Politeia em latim).

O ideal da República é apresentado sob forma de diálogo socrático sobre a justiça (δικαιοσύνη). Sócrates discute o significado da justiça e se interroga se um homem justo é mais feliz do que o injusto. Depois de considerar a natureza dos regimes políticos então existentes e compará-los entre si, ele decide-se pela Calípolis (Καλλίπολις), uma utópica cidade-estado governada por um rei-filósofo.

O argumento de Sócrates é que, numa cidade ideal, um verdadeiro filósofo, com compreensão da natureza humana e das vicissitudes da existência, facilitará a cooperação harmoniosa entre todos os cidadãos. A governação de uma cidade (polis) é comparada ao comando de um navio, sujeito a atravessar as intempéries dos tempos. Por isso, o rei-filósofo deve ser inteligente e confiável e estar disposto a levar uma vida simples, qualidades que raramente se manifestam por conta própria e, por isso, precisam de ser encorajadas através de uma educação (cultura/kultur) imbuída de valores – morais e estéticos – de bem (Herbert Marcuse). Ao serviço deste objecto Platão concebeu uma ciência e uma técnica chamada politiké, um saber e um conhecimento verdadeiros sobre os homens e a cidade, da sua unidade e do seu possível aperfeiçoamento.

Contra a personagem de Trasímaco, que declara que “a justiça não é nada mais do que o interesse dos mais fortes”, Sócrates afirma a vantagem do justo sobre o injusto. Rejeita as definições comuns de justiça (pagar as dívidas e ajudar os amigos em detrimento dos inimigos) por carecerem da universalidade exigida pela definição.

Se a votação da BBC tivesse sido feita entre governantes leviatanos (autocratas, fascistas, monarquistas, ditadores, patrimonialistas, tiranos, revogares das constituições…), o vencedor – até com score soviético – seria, sem dúvida, Maquiavel, cuja obra-prima – O Príncipe – serviu de livro de cabeceira a muitos napoleões pelo mundo fora. Aliás, muitas politologias libertinas e pseudoliberais (contrárias ao liberalismo político tal como foi teorizado por Locke, Stuart Mill ou Montesquieu) e adeptos da real politik consideram-no o pai das doutrinas políticas modernas.

Enquanto para Platão o sujeito político era a cidade, no centro das preocupações e pensamento do florentino não está a res pública (coisa pública), mas a solipsista pessoa do príncipe; as qualidades exigidas para ocupar lugares de poder não são a virtude, mas a maldade, a hipocrisia, a duplicidade. No lugar dos diálogos socráticos, o poderoso príncipe (e toda a acção política) se autoriza o uso da violência. Contra a verdade, o príncipe usa de artimanhas e esperteza: há sempre um simplório que se deixa enganar. Governar é, assim, suscitar e gerir conflitos, e nunca atingir um equilíbrio; as intrigas e divisões são proveitosas para o poder.

Contrariamente à visão platónica, para a qual governar é militar pela realização da natureza profunda do Homem e a Filosofia uma constante vigilância crítica da política efectiva, em Maquiavel o príncipe – e todos os seus sequazes –  é um conspirador, dramatiza os factos para atrair a atenção para si, provoca medo e faz crer ao povo que a necessidade é mais importante do que todo e qualquer princípio, que ele executa simplesmente o que lhe dita a necessidade, que não existe outra escolha. O príncipe é um homem de táctica que joga diariamente com as sombras, o seu poder é essencialmente tirânico, destinado a assegurar a sua dominação. Maquiavel afasta-se do pensamento político clássico de Platão – mas também de Aristóteles – e cria as condições da existência do Estado fundado, não sobre a virtude, mas sobre a força. O príncipe tem que saber ser malvado, fintar, aldrabar, driblar, enganar, mentir, atacar de surpresa, mostrar-se cruel e sem piedade; hipocrisia e duplicidade são consideradas características da função (…).  Como diz Foucault, o que Maquiavel quer preservar não é o Estado, mas uma relação imutável com aqueles sobre os quais o príncipe exerce a sua dominação.

Maquiavel insistiu que uma sociedade ideal não é um modelo pelo qual um príncipe se deve orientar. Ele aconselha o príncipe sobre a maneira de conquistar o poder e mantê-lo mordicus, independentemente da eficiência e bondade do projecto de construção de uma República justa. Maquiavel ensina ao príncipe que ele não se deve preocupar em ser amado ou odiado, mas em ser temido.

Já que os fins justificam os meios, a fraude e o engano são tidos como a norma e como necessários para o uso do príncipe. A violência pode ser necessária para a estabilização bem-sucedida do poder. A força pode ser usada para eliminar rivais políticos, destruir os resistentes e instituir a existência do medo como modo de relação com o poder.  Lá onde Platão – e com ele a Filosofia – afirma, desde o início, a Basileia contra a paideia, Maquiavel privilegia a figura do príncipe (o grande homem), cujas ideias se supõe estarem no centro da acção e da vida política do Estado.

A noção da adulação do homem grande vai também contra o sonho de Platão de construir uma nação justa, na qual o cidadão alcança satisfação. Maquiavel, colocando o príncipe para lá da moral (Nietzsche, Para além do bem e do mal), esmaga o projecto da democracia – em que os cidadãos são o centro da acção e da tomada de decisões – a favor do oligarca que acumula todos os despojos do povo.

Para materializar o sonho de Platão de uma sociedade justa, de uma nação equitativa, onde os cidadãos tenham uma palavra a dizer sobre o bem-estar colectivo, é necessário discutir programas, ideias e projectos, em vez de discutir pessoas e indivíduos. Quando o foco está no programa, a concentração desloca-se do príncipe para a análise epistemológica dos objectivos, sua aplicabilidade e validade. Quando o foco está no príncipe, os esforços são sobre a pessoa individual, seus (contra)valores, seus caprichos e vontades, por mais precários e voláteis que sejam.

Na militância do estômago em que estamos mergulhados, se a sondagem da BBC fosse feita hoje, entre os camaradas da OMM e OJM que, na celebração do 48.º aniversário da independência de Moçambique saíram às ruas, não para saudar a independência, a nação, Mondlane ou Machel – os quais se distinguiram no processo moçambicano de fazer história – ou mesmo o partido, mas para exaltar fanática e hipocritamente os feitos do camarada presidente, a vitória de Maquiavel seria também garantida.

Depois de os bajuladores da corte terem levado Machel a acreditar que era descendente de Ngungunhane e o novo Monomotapa, depois de Guebuza se ter autoerigido – bokassianamente – imperador, agora o primeiro dos discípulos – o Pedro sobre o qual se edifica a nova igreja e doutrina –, num elã de idolatria e blasfémia, compara o New Man (seu mestre) com o que Yuval Harari chamaria de Homem-Deus. Os tempos em que o partido estava acima do Estado, em que o poeta Kalungano – na Poesia de Combate – dizia que o seu lugar era onde o partido o mandava, foram substituídos por cultos ad personam/ad hominem em que crédulos discípulos e prosélitos invadem as ruas das cidades para vociferar: Ave Caesar, morituri te salutant. São militantes que preferem a adulação do chefe à discussão sobre a validade de suas ideias, que aliás se lhes conhecem muito poucas, quase nenhumas.

Mentes fracas discutem pessoas, mentes médias discutem eventos, mentes fortes e lúcidas discutem ideias (Sócrates). A Filosofia, desde a sua génese, interrompe o regime autoritário da verdade que se dá, quando a verdade de um enunciado depende, não do argumento que o sustenta, mas da posição daquele que enuncia. No último livro das leis está escrito: o mais belo poema trágico fomos nós que o escrevemos e é o projecto da Basileia filosófica (Platão), que consiste, como recorda Heidegger em 1936, não na instalação dos filósofos no poder, mas em a Filosofia vigiar o Estado a partir da aletheia (verdade).

A escolha entre A República e O príncipe, entre Moçambique e um ídolo, releva do absurdo. Apesar dos pesares, Mondlane foi assassinado e a Frelimo teve que continuar, Machel foi acidentado, Chissano deixado andar, mas Moçambique teve que seguir em frente. Por maiores que sejam a figura e a heroicidade de um homem, elas não se podem substituir nem antepor à nação. Imaginemos quando a figura desfigura et parvus (pequena) est

Com Craveirinha, nós continuamos a pertencer a um país que ainda não existe, um país de trinta milhões de almas que devemos (todos) ainda construir. Um país onde todos os namanhumbires de Moçambique não precisarão de juízes ingleses para proteger os seus direitos; um país que não será governado por gente – que juízes americanos apostrofem – de pior espécie.




ensaio de Severino Ngoenha, Samuel Ngale, Augusto Hunguana, Giveraz Amaral, Alcino Nhumaio

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. MacIntyre disse que perder é ganhar, ganhar é perder. No mito da caverna, o homem que foi anunciar a verdade, correu o risco de ser morto. Perdeu! É a dificuldade do rei filósofo governar.
    Se Platão perdeu, é porque o seu projeto político de justiça estava acente na coisa grande e valiosa, na polis Grega, não na coisa pequena. Ou seja, lia a justiça pelas letras grandes para depois lê-la nas pequenas, entre a polis e o indivíduo. Enquanto a sociedade moderna- contemporânea inverte a leitura.
    Esse método de leitura 📚 cria uma oligarquia, uma forma de degenativa que produz tiranos; que não sabe o que é bom para si, nem para os outros, tiraniza-se a si mesmo e tiraniza os outros.
    A utopia ocupa um lugar central no seu projeto político, tanto que vemo-lo a descer para uma cerimônia, significa que estava em cima, então, filosofia é soube e dece; assim reza a ave da minerva.
    Se a utopia é um modo de vida do filósofo, então, encontramos um mobil, onde homens e mulheres buscam entre seus mitos e opiniões cooperam buscando algo inteligível. É nessa busca que os torna felizes. Portanto, a felicidade não é um projeto individual, é algo haurido dentro da comunidade cooperativa. A República é fundada na ideia de cooperação. Não é uma ideia nova que Rawls nos apresenta na sua teoria da justiça ⚖️. Sem essa ideia utópica de cooperação no diálogo na busca da realidade por meio de ideias, a cidade real de Platão não seria real.

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