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ENTREVISTA COM ABDIAS NASCIMENTO: DESCOBERTAS INSTIGANTES

Elisa Larkin Nascimento[1] e Matilde Ribeiro[2]

A Revista Capoeira, da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), Campus Malês – São Francisco do Conde (Bahia), publica inédita entrevista com Abdias Nascimento. Trata-se de singela homenagem aos 101 anos (de nascimento) desse importante militante, que nasceu em Franca (SP) em 14/03/1914 (26 anos após a abolição da escravidão) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ) em 24/05/2011.

Abdias foi de tudo um pouco: militante, artista plástico, escritor, professor, dramaturgo, gestor público, deputado federal, senador. Formou-se bacharel em economia e seguiu seus estudos pós-graduação em áreas afins.

Em suas ações foi contundente e persistente. Seja como estudioso seja como político, em vida consagrou-se pela defesa intransigente à garantia da dignidade humana e aos direitos da população negra.

1. Inspirações de um sonhador e ativista

O encontro para a entrevista (ou melhor: o diálogo entre três pessoas) aconteceu no apartamento de Abdias e Elisa Larkin Nascimento (sua esposa), no Rio de Janeiro, em 01/02/2007, quatro anos antes de sua morte. Naquele período, a entrevistadora Matilde Ribeiro era ministra da Secretaria Especial de Políticas de Igualdade Racial (Seppir). A entrevista não foi casual, pois teve o objetivo de registrar a memória de um militante que foi pioneiro como gestor de um órgão voltado à igualdade racial no Brasil.

Matilde Ribeiro e Elisa Nascimento tornaram-se cúmplices não só na entrevista, como também na missão de divulgar a vida e obra de Abdias, e por isso elaboram esse artigo.

1.1. Depoimento de Matilde Ribeiro

Com militância iniciada nos anos 1980, em São Paulo, mais precisamente em 1988, no processo organizativo doas contestações e comemorações dos 100 anos da abolição da escravização, afirmo que é impossível uma pessoa com participação política e informações sobre a história do Brasil não se inteirar sobre a atuação de Abdias Nascimento.

Minha aproximação com Abdias começou em 2002, quando fiz parte da Coordenação do Programa de Governo na Campanha de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República. Após a eleição do presidente Lula, Abdias foi unanimemente escolhido como convidado especial, para discursar em nome do Movimento Negro brasileiro, na solenidade de criação da Secretaria Especial e Política de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e de minha posse como ministra, em 21 de março de 2003.

Dias depois da posse, fui ao Rio de Janeiro encontrar Abdias e Elisa. Procurava desvendar, a partir de sua experiência, os caminhos para o papel de gestora da recém-criada Seppir. Após meu pedido de conselhos sobre os desafios que se avizinhavam, foi enfático, dizendo: “Sra. Ministra, siga em frente com coragem, e saiba que ‘não se faz omeletes sem quebrar os ovos’”.

Com o passar do tempo, diante das dificuldades de estruturação de um órgão promotor de políticas de igualdade racial em âmbito federal e também dos revezes da vida política, pude entender a metáfora proferida por Abdias. Nunca me esqueço de sua postura vigilante e persistente, que apresentava o desejo de consolidação das políticas públicas em prol da população negra no Brasil.

Abdias não mediu esforços em chamar a atenção da sociedade, dos governos e do Estado brasileiro para a necessidade premente de passar a limpo a história brasileira de perpetuação do racismo.

Alegava que o princípio da superação do racismo deveria ser o reconhecimento de sua existência. Acreditava na necessidade de gerar oportunidades para a população negra e que a construção da justiça e da igualdade é tarefa de todos, independentemente de cor, raça ou etnia.

Orgulho-me de ter conhecido de perto esse ícone da vida acadêmica, cultural e política brasileira e internacional. Abdias me instigava a sonhar. Em nossas conversas dávamos muitas risadas. Eu me sentia criança e velha, ao mesmo tempo.

É possível constatar, pela vida e obra de Abdias Nascimento, que foi incansável em afirmar que nós, negros, não somos descendentes de escravos, somos sim originários do Continente Africano. Comumente em suas palestras e discursos reproduzia a emblemática frase: “A luta pela liberdade inicia-se desde o momento em que mulheres e homens negros foram escravizados no Brasil, após terem sido capturados na África”.

Como descendentes de africanos que somos, lutamos no passado e no presente pela liberdade, democracia e justiça.

Há quatro anos ficamos órfãos da presença física de Abdias. Tenho saudades de sua voz firme e apimentada. Conforto-me em sentir que sua energia e sagacidade permanecem fluentes em nós.

1.2. Depoimento de Elisa Larkin Nascimento

Quando jovem me engajei no combate ao racismo, à guerra de Vietnã e à exploração de trabalhadores migrantes latino-americanos no meu país, os Estados Unidos. No meio do curso de graduação em Estudos Latino-Americanos em Princeton, após uma viagem ao México e à Colômbia, voltei à minha cidade, Búfalo, em Nova York.

Optei por trocar a “torre de marfim” acadêmica pela participação na defesa jurídica e política dos “irmãos de Ática”, o grupo de presos que se rebelaram na penitenciária e foram acusados, injustamente, das mortes ocorridas na rebelião, todas causadas pela repressão da Guarda Estadual do então governador Nélson Rockefeller, conforme ficou provado no decorrer dos julgamentos. Quase todos os acusados eram negros. A maioria dos advogados e ativistas que trabalhavam na defesa seguia a “linha correta” ideológica que minimizava o racismo, o colonialismo e a questão de gênero como alvos legítimos de atuação política, preferindo o enfoque único na luta de classes. Sabiam que eu discordava, pois as discussões às vezes eram acaloradas.

Nesse período, os ativistas mais próximos também sabiam que havia morado em São Paulo como estudante de intercâmbio, gostava muito do Brasil, e falava um portunhol razoável, tendo estudado castelhano na escola secundária. Então me disseram: você precisa conhecer um professor brasileiro exilado do regime militar, que dá aula no Centro de Estudos Porto-Riquenhos da Universidade do Estado de Nova York (SUNY), campus de Búfalo. Assim conheci e me aproximei de Abdias;isso mudou completamente minha vida.

Naquele momento, Abdias estava envolvido numa série de eventos e iniciativas internacionais pan-africanistas. A experiência internacional lhe mostrava a necessidade de uma assistência para a comunicação, já que ele não se sentia confortável expressando-se em inglês e não falava francês, embora lesse as duas línguas. Passei a traduzir suas falas e ensaios em que denunciava o racismo e partilhava a rica e antiga experiência cultural e história de resistência dos africanos e seus descendentes no Brasil.

Era um momento em que a conceituação do “mundo africano” pouco referenciava a América Latina e o Caribe. O isolamento linguístico fazia parte deste quadro: as línguas francas dos certames internacionais eram o inglês, o francês e o árabe, não figurando nesse contexto o português nem o espanhol. A atuação de Abdias e do etnólogo cubano-jamaicano Carlos Moore ajudava a trazer para o cenário político e intelectual pan-africano a voz dos povos dessa “esquecida” região.

Assim, acompanhei Abdias Nascimento quando foi a Dakar, capital de Senegal, a convite de Carlos Moore para participar do Encontro sobre Alternativas para o Mundo Africano, em janeiro de 1976. Esse evento abrigou a reunião de fundação da União de Escritores Africanos. Ali tive a honra de traduzir não só para Abdias, como também para o teatrólogo venezuelano Alberto Galindez, que proferiu seu pronunciamento em espanhol.

Daí em diante, dediquei minhas forças e energias a essa missão, acompanhando Abdias à Nigéria. Vivemos lá durante um ano em Ilé-Ifé onde ele lecionou como professor visitante na Universidade de Ifé (hoje Universidade Obafemi Awolowo). Participava no recém-criado Departamento de Línguas e Literaturas Africanas, a convite de seu idealizador, o professor Wande Abimbola, babalaô e especialista no corpo literário de Ifá.

Em Ilé Ifé nos casamos pela primeira vez; posteriormente completamos nosso casamento tricontinental com cerimônias realizadas em Búfalo e no Rio de Janeiro.

Mais que um casamento, minha convivência com Abdias foi uma obra contínua a quatro mãos. A partir do momento em que o conheci, participei de seu ativismo e produção intelectual, dando assistência em pesquisas e redações, além da tradução para o inglês de diversos livros, artigos, discursos e ensaios publicados ou proferidos em diversos países e contextos políticos. A motivação inicial dessa participação foi o engajamento político, depois redobrado na relação afetiva, no amor e no compromisso afetivo.

O retorno ao Brasil, depois do exílio de Abdias, me proporcionou o encontro com sua família em São Paulo, e pude conhecer cada vez mais a sua trajetória de vida, partes da qual me contava nos momentos de reflexão, frequentemente provocadas por sonhos. Ele era um sonhador inveterado, convicto. Os sonhos lhe traziam verdades e lhe evocavam realidades.

2. Praticamente um século de resistência

2.1. Construções familiares,culturais, históricas e políticas

Abdias era o segundo de uma família de sete filhos que morava em Franca, cidade localizada no interior de São Paulo. Naquela época as pessoas moravam e trabalhavam nas fazendas, que ainda preservavam estruturas laborais muito parecidas com a situação de escravização. Os imigrantes, muitos italianos, eram considerados trabalhadores “colonos”, mas havia “crias”: negros e negras idosos, adultos e crianças que trabalhavam mantendo o padrão de vida doméstica da casa grande e vivendo nas mesmas condições da escravidão. 

Quando menino, levado pela mãe[3] à fazenda, Abdias conviveu com essa realidade e sempre trazia lembranças das rodas de conversa noturnas, em que ouviu histórias dos tempos do cativeiro.

Além disso, relembrava aspectos específicos dessas idas às fazendas, que demonstravam a hierarquia de relações herdadas do regime de escravização. Abdias e os irmãos conviviam com as crianças das fazendas, filhos dos “colonos” imigrantes. Algumas professoras davam aulas a essas crianças, mas Abdias e os irmãos, que acompanhavam a mãe nas jornadas na fazenda, não podiam assistir a essas aulas. Quando tentavam participar, querendo aprender, eram enxotados pelas professoras e os meninos brancos aos gritos de “Tição”.

Abdias sempre foi muito ativo e curioso, ele procurava entender a política e as grandes questões sociais da época.Ainda adolescente foi morar na capital de São Paulo e participou de atos públicos da Frente Negra Brasileira combatendo a discriminação racial em todas as oportunidades com os recursos que lhe eram acessíveis: quebrava vidros de lojas e barbearias que lhe recusavam entrada ou atendimento, resistia contra a barreira de entrada em estabelecimentos pela porta da frente, recusando-se a se dirigir à porta dos fundos. Naquela época o preceito constitucional ditava que “todos são iguais perante a lei”, mas as autoridades encarregadas de fazer cumprir a lei nunca apoiavam esse preceito. Ao contrário, confirmavam o ato de exclusão e culpavam a vítima da discriminação. Assim, Abdias e o amigo Sebastião Rodrigues seriam excluídos do Exército em função de um desses incidentes de resistência.

Na busca de alternativas políticas teóricas e práticas, Abdias viveu os períodos de estruturação de partidos, em que o negro figurava tão somente como cabo eleitoral de candidatos brancos. Ele lembrava que o próprio tio, em Franca, atuava muito nas eleições, inclusive na candidatura vitoriosa de Júlio Prestes, preterido pelo golpe de 1930. Mas concordava com a Frente Negra Brasileira: o negro precisava ser candidato, protagonista de suas próprias propostas políticas e não apenas cabo eleitoral dos outros.

Essa proposta influenciou em sua atuação política posterior, após o regime do Estado Novo. Em 1944, Abdias criou o Teatro Experimental do Negro (TEN) e organizou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro. O TEN convocou a Convenção Política do Negro e depois a Convenção Nacional do Negro, realizada em 1945 em São Paulo e no Rio de Janeiro. A Convenção publicou um Manifesto, subscrito por vários partidos e lideranças políticas, com medidas de combate à discriminação a ser apreciadas pela Assembléia Constituinte de 1946. O apoio público recebido de diversos setores não se concretizou em votos, e as medidas foram rejeitadas, fato que fortaleceu o posicionamento de Abdias sobre a necessidade de eleger parlamentares negros para defender suas próprias propostas políticas; candidatou-se e incentivou candidaturas negras. O Jornal Quilombo, órgão do TEN, abria suas páginas para entrevistas e matérias sobre candidatos negros de todos os partidos e tendências.

O legado da Frente Negra Brasileira e do TEN, no sentido de afirmar o negro como ator no palco da política partidária, apresentando propostas de ações governamentais, se concretizou para Abdias quando assumiu como primeiro deputado federal negro, atuando na legislatura anterior à Constituinte (1983-87), e quando foi eleito em chapa tripla com Darcy Ribeiro e Doutel de Andrade, vindo a representar o Rio de Janeiro no Senado, pelo PDT, em dois períodos (1991-92 e 1997-99).

No decorrer desse caminho, a proposta evoluiu na direção de se criar órgãos voltados à implantação de políticas públicas de combate ao racismo no espaço executivo de governo. A primeira experiência foi a criação da Secretaria de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras no Governo do Estado do Rio de Janeiro em 1991, quando Abdias foi nomeado Secretário pelo Governador Leonel Brizola (1991-94). E posteriormente nomeado primeiro titular da Secretaria Estadual de Cidadania e Direitos Humanos (1999-2000).

2.2. Alguns flashes da atuação internacional      

Sua intervenção internacional foi ampla na América Latina e Caribe, na América do Norte, no Continente Africano, em especial na luta contra o apartheid.

Destaca-se a participação ativa no 6º Congresso Pan-Africano realizado em 1974 em Dar-es-Salaam, Tanzânia, e de sua reunião preparatória em 1973, na Jamaica.

Em janeiro de 1977, realizou-se em Lagos o 2º Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas (Festac). Havia preparado em inglês a tese “Democracia Racial” no Brasil: Mito ou Realidade, cuja primeira versão a Universidade de Ifé publicou em mimeógrafo. Nessa situação Abdias sofreu pressões para não participar do Colóquio (fórum intelectual e político) para o qual antes havia sido convidado como um dos principais palestrantes. Mas com o apoio de intelectuais e ativistas de delegações africanas e da diáspora, conseguiu se pronunciar, contrariando a exclusão decretada e as furiosas objeções da delegação brasileira oficial[4]. A tese foi a única daquele Colóquio a ser publicada na íntegra, em série, pelo jornal diário de maior circulação na África Ocidental, o Daily Sketch de Ibadan, que mais tarde a publicou, ampliada, como livro.[5]

Logo em seguida, participou do 1º Congresso de Cultura Negra das Américas, realizada em Cali, Colômbia, em agosto de 1977, a convite do antropólogo e médico colombiano Manuel Zapata Olivella. Lá analisou a retórica da diplomacia brasileira, pretensamente antirracista, confrontando-a com a prática que o Brasil sustentou durante séculos em apoio leal ao colonialismo português na África para depois, a partir do reconhecimento de Angola, se apresentar como amigo “natural” dos novos países africanos, movido por interesses econômicos e comerciais em cujos benefícios a população negra brasileira não participa. Dizia que essa postura diplomática espelhava a hipocrisia das relações raciais no Brasil, onde uma elite branca se autoelogia como antirracista, ao mesmo tempo em que mantém em vigência severas desigualdades e exclusões raciais.

Mais tarde, no 2º Congresso de Cultura Negra das Américas, realizado em 1980 no Panamá, Abdias foi eleito presidente do 3º Congresso e incumbido de sua realização no Brasil. Nesse contexto, em 1981, foi criado o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), que organizou o 3º Congresso de Cultura Negra das Américas, no teatro TUCA– PUC (SP), em agosto de 1982. Foi a primeira vez que o Brasil recebeu um representante do Congresso Nacional Africano da África do Sul (o ANC de Nélson Mandela)e a militante Sathima Ibrahim.

Em 21 de março de 2004, no Seminário Internacional Políticas de Promoção Racial, a Seppir concedeu a Abdias o Prêmio de Reconhecimento pelos trabalhos prestados à nação brasileira. Nessa mesma data, aos 90 anos, recebeu homenagem da Presidência da República, pelas mãos do Presidente Lula, como “expoente brasileiro na luta intransigente pelos direitos dos negros no combate à discriminação, ao preconceito e ao racismo”.

Ainda em 2004, participou do Fórum Cultural Mundial, realizado em São Paulo, como homenageado no painel “Abdias Nascimento, um Brasileiro no Mundo”. Nesse momento foi lançada a Campanha – Abdias Nascimento, Prêmio Nobel da Paz –, ampliando a repercussão da indicação feita por um conjunto de entidades brasileiras.

Foi condecorado pelo presidente Lula com a Ordem Rio Branco, em Salvador (BA) em 2006, durante a cúpula de chefes de Estado da 2ª Conferência de Intelectuais Africanos e da Diáspora e, em 2009, foi indicado oficialmente para o Prêmio Nobel da Paz de 2010.

2.3. Incentivo a pesquisas, estudos e ações políticas

Abdias como grande incentivador das pesquisas e estudos como base para ações políticas teve firme contribuição para a criação do IPEAFRO respondendo a demandas nacionais e internacionais. Hoje o IPEAFRO é presidido por Elisa Larkin Nascimento e trabalha essencialmente com o ensino da história e cultura de matriz africana e das relações étnico-raciais, criando aportes didáticos e atividades e exposições, objetivando também a preservação e digitalização do acervo documental de Abdias Nascimento.

Foi criado pelo IPEAFRO um instrumento visual e o livro A linha do tempo dos povos africanos e Suplemento Didático[6]. A linha do tempo divide em períodos de 500 anos a história dos povos africanos desde 5.000 anos antes de Cristo, mostrando que é ínfimo o tempo em que eles foram escravizados no sistema mercantil europeu.

Fica demonstrado pelos relatos de Abdias e pelos fatos históricos que a opção estratégica do movimento negro organizado, desde o século XIX, foi pela educação como ferramenta para a superação da discriminação racial. A Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental do Negro priorizaram a educação, instituíram escolas com aulas de alfabetização e cultura geral. O movimento negro organizado continua hoje essa prioridade anunciada no esforço da implantação da Lei 10.639.

Remamos contra a maré, enquanto publicações divulgadas por poderosos sistemas de mídia e comunicação reproduzem o discurso da democracia racial, manipulando dados estatísticos e utilizando argumentos francamente desonestos para atacar as políticas de igualdade racial e as ações afirmativas. Assim, por mais que pareça pouco, produções feitas na contramão desse discurso hegemônico podem ser transformadoras.

Entrevista com Abdias em 01/02/2007

Matilde Ribeiro (MR): Abdias, vamos falar sobre o alcance das políticas de igualdade racial no Brasil. Quais são as nossas potências, o que temos que fazer para quebrar barreiras?

Abdias do Nascimento (AN): Na verdade estamos iniciando uma nova era com o Governo Lula. O negro está estudando, por exemplo. Acho que estamos com o pé no estudo para deslanchar, coisas novas estão acontecendo.

MR: O que seriam essas coisas novas?

ANO que está muito firme em minha consciência, a partir da experiência de mobilizações de rua, de protesto, de reivindicação, é que este Movimento Negro não tem volta. As instituições já estão plantadas, a Seppir, a Fundação Palmares, o próprio Ministério da Cultura tem suas ramificações com a questão dos direitos civis; isso só pode ir para frente, pois o povo negro e o Movimento Negro não aceitam mais retrocesso político. Não estou dizendo isso de uma maneira romântica, vejo que já existem certos pilares, não digo apenas na estrutura física, mas com a ampliação das práticas de governo, não dá para aceitar mais retrocesso; agora é seguir em frente. Os apoios que tivemos até aqui foram de certa forma líricos. Daqui para frente os apoios devem ser mais tangíveis, mais concretos, mas isso vai depender de habilidade, de capacidade política nossa, dessa turma que está mais ou menos à frente dos processos, que está mais ou menos com as responsabilidades de conduzir o trabalho.

MR: Você poderia falar um pouquinho mais sobre o que é essa habilidade política que precisamos ter?

ANO desenvolvimento da Seppir é um exemplo. Eu vejo muito dessa habilidade política nesse espaço governamental; você já demonstrou que tem muito dessa capacidade. Já passou por certos pedacinhos e demonstrou que se não tivesse sensibilidade política e capacidade de passar por certas situações bem delicadas, já teria trombado. Você está fazendo coisas, este é um valor, é um capital do Movimento Negro, que devemos respeitar e somar.

Elisa Larkin Nascimento (ELN): Você participou de várias experiências no poder público, como executivo, como parlamentar, como consultor, como professor. Em sua opinião o que marca a trajetória de negros dentro da administração pública brasileira?

ANO que mais nos instiga e ao mesmo tempo nos deixa esperançosos é o desenrolar e a continuidade das coisas. Eu tenho confiança que o movimento não tem retrocesso, mas ao mesmo tempo vejo amarras no andamento das políticas.

MR: Na atuação como gestor público, tinha sensação que trabalhava dobrado ou triplicado?

ANClaro! Quem tem qualquer parcela de responsabilidade pública neste país, para desenvolver políticas para o nosso povo tem que trabalhar muito. Tem que fazer muito, muito mesmo, para poder produzir alguma coisa que fique, que marque, que some.

MR: Há alguns anos aqui no Brasil, nós estamos dizendo (na academia e na política) que derrubamos o mito da democracia racial. O que você pensa disto?

AN:  Bom, penso que, como mito, a democracia racial está completamente desmoralizada. Ainda existe uma elite que vive este sonho em falar de democracia racial e ainda enganar os negros e os brancos. Mas eu acredito que ela não tem mais força, não tem mais raiz, não tem mais credibilidade.

MR:  E o que estamos construindo a partir da queda do mito da democracia racial?

AN: Está faltando aos negros que pensam politicamente ocupar um lugar que ainda está vago na sociedade. O Movimento Negro é uma coisa desarticulada que não tem objetivos concretos, em curto e médio prazo. É preciso definir uma estratégia para atingir esses objetivos a mais longo prazo. Falta mais decisão, mais unidade por parte do Movimento Negro para enfrentar as posições contrárias. E isso é muito grave!

ELN: Ficam evidentes duas vertentes sobre quem é contra ou a favor das ações afirmativas e das cotas nas Universidades. Uma vertente afirma que a questão é social e ponto. Outro setor diz que entre os pobres existem os negros, os direitos não são iguais, então as cotas têm que ser raciais. Quem você acha que está ganhando o debate e o que a gente deve fazer para manter viva a proposição de mudança?

ANA turma que atua no movimento negro e os negros sem movimento devem buscar coesão. Neste ponto eu sou um crítico impiedoso em chamar a elite para o debate. É necessário construir uma maior organicidade por parte do movimento negro para dar respostas mais contundentes e defender nossos direitos. Precisamos parar com este negócio de ficar pisando no mesmo lugar por tanto tempo.

MR:  A partir de sua vivência de décadas como agente político, sob seu olhar, quais foram as principais conquistas que tivemos no Brasil desde a época da escravização dos negros?

AN: A Lei 10.639 foi uma conquista fundamental! Depois da famosa Lei Áurea, essa lei mostra a contraface. Isso é um ganho muito grande para a comunidade negra.

ELN:  A lei 10.639 indica a alteração da lógica do ensino no Brasil. O que temos hoje de concreto, na sua implementação?

AN:  São poucas as estratégias de inserção do negro no poder. É preciso uma relação maior da comunidade negra, como fortalecimento das lideranças.

MR: Como é que foi criada a Secretaria de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras? O que motivou o Governo Brizola criar a Secretaria no início dos anos 1990?

AN:  Bom! Vários casos de racismo explícito motivaram a criação de um órgão para dar apoio e dar continuidade às ações policiais e jurídicas, para defender a cidadania do povo negro. Junto com a Secretaria passou a existir, também, a delegacia dos crimes raciais que teve pouco fôlego. A Secretaria criada no Governo Brizola durou de 1991 a 1994 e foi fruto da experiência do Partido Democrático Brasileiro (PDT) que, desde 1982, vinha discutindo esta questão no interior do partido. Assim, o governador, mesmo com muitas críticas, teve a dignidade de nomear três negros para Secretários de Estado.  Houve na Convenção do PDT, em 1982, a proposta de criação de uma Secretaria de Estado para tratar da questão racial e a proposta de criar o Projeto Zumbi dos Palmares na Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Isso tudo aconteceu por minha insistência e de outros que me apoiavam durante a primeira administração de Brizola, que teve sensibilidade excepcional, numa atitude que nem sempre faz parte da ação dos quadros principais dos partidos, mas ele teve apoios de muitas lideranças.

MR: Você que conviveu com o Brizola; ele era um homem visionário na política?

AN: Visionário e romântico, mas executivo também. Montou um bom time, e virou várias coisas de cabeça para baixo. Antes desse momento, os movimentos sociais da Aliança Nacional Libertadora tentaram fazer alguma coisa. Também a Frente Negra Brasileira (FNB) nos anos 30, mas naquela época era ainda uma questão de provar que o negro podia ser mais do que um cabo eleitoral, que ele podia ser candidato.

MR: Você nasceu em 1914 e a abolição tinha acontecido apenas havia 26 anos. Como a sociedade se comportava na época em que você era criança e jovem? O que marcou sua vida nesse sentido?

AN: Recebi o tratamento que davam aos doentes mentais. Minha avó foi internada no sanatório, no Juqueri, que era asilo de loucos em São Paulo e aquilo ali era um massacre, era uma fábrica de loucos, um desrespeito total aos negros que eram a maioria dos desprotegidos. Isto me marcou muito! Depois a minha avó foi morar conosco lá em Franca, vivia atormentada pelas lembranças da senzala, do regime escravocrata, as torturas do sanatório.

MR: Sua avó comentava o que vivia no sanatório?

ANA minha avó era muito desgarrada. Ela foi abalada por tudo que viveu. Toda a loucura era fruto dessa pressão social, do desrespeito ao ser humano, que era tratado como gado. Mas é preciso fazer uma investigação, uma pesquisa sobre o que acontece nos sanatórios. Lá no Congresso Nacional tentei fazer a Comissão do Negro, que chegou a ser aprovada, mas nunca funcionou.

MR:  A comissão era para investigação do passado?

ANEra para investigação de toda a situação do negro. Inclusive na área da saúde mental. Mas nunca funcionou. Mas outras pesquisas que vieram por outros campos, outras agências, comprovaram que essa desigualdade racial existe no atendimento dos órgãos de saúde, especificamente nos hospitais psiquiátricos.

ANVivi a minha infância em Franca, cidade do interior de São Paulo, que era região de produção do café; minha mãe era uma pessoa muito respeitada na cidade pelo conhecimento que ela tinha das ervas, das curas tradicionais. Ela era doceira, mas tinha uma terceira função que era ser ama de leite. Me lembro que quando éramos levados à fazenda, tínhamos tratamento aparentemente igualitário com os filhos dos fazendeiros, mas é claro que era uma forma de dourar a pílula. Na verdade, nós éramos tratados de maneira falseada. É daí que vem minha rebeldia, porque eu não aceitava certos tratamentos.

MR:  O tratamento falseado era voltado às crianças ou envolvia também os adultos?

AN: Os adultos também recebiam tratamento falseado; as crianças levavam mais na chacota. Mas o negócio era com os adultos, era também com os professores. Porque lá os professores eram contratados para ensinar os filhos dos fazendeiros, a classe média e a elite. Mas, na realidade, era mostrado aos negros o papel que desempenhavam ali na fazenda. Depois da escravidão os negros passaram a viver uma espécie de subclasse.

MR: Você tinha certamente idade equivalente à dos filhos dos fazendeiros e não frequentava as aulas das professoras que eram contratadas?

AN: Não frequentava as aulas, era tratado como neguinho, Tição.

MR: Mas você não ia à escola?

AN: Fui à escola de maneira regular mais tarde. Quando era criança, tinha um tipo de escola onde eram dadas aulas por aquelas professoras, mas elas já estavam instrumentalizadas para executar as políticas de exclusão; portanto, eu e meus irmãos não íamos às aulas de maneira frequente. Mas por outro lado desenvolvi um pensamento: não somos escravos de ninguém. Então desde esse tempo (com cinco a seis anos), era malcriado, indisciplinado, negro ingrato (como diziam).

MR:  A sua mãe foi escrava?

AN: Não era escrava, mas a maneira que era tratada tinha muito a ver com a escravidão. Ela foi ama de leite. As negras eram vigiadas, tudo estava sob a batuta das donas das fazendas.

MR:  O esquema da Casa Grande e da Senzala funcionava. Você percebia isso na sua infância?

AN: Sim, esse esquema funcionava. Minhas lembranças de criança quando vivia nas fazendas se repetiam com cenas que vivi depois na cidade. Havia uma ruína de um antigo engenho que foi incendiado e ficou abandonado. Eu assistia à chegada das lavadeiras negras que vinham de lá vestidas de branco, parecia uniforme.Ao mesmo tempo eu achava lindo, mas era um pouco fantasmagórico. Apareciam essas negras vestidas de branco com aquelas trouxas na cabeça, elas vinham buscar e levar roupas.

MR: Elas andavam em grupo?

AN: Sim, andavam em grupo com uma dignidade. No engenho, nos tempos de colheita de milho, era uma festança. Faziam coisas do arco da velha: comidas, salgados e doces. A mamãe era uma das principais mentoras do negócio. Agora eu não tive tempo hábil para estudar a história daquela comunidade.

MR: Sua vivência foi de sofrimento, mas também de rebeldia, de peraltice. Você acha que isso foi sua primeira fase de ação política?

AN: Foi, sem dúvida. Destaco, também, o aprendizado com a minha mãe, ela me atiçava. Me dizia sempre “filho meu não traz desaforo para casa; se for ofendido na rua, tem que revidar na hora”.

MR: Na época de infância e adolescência havia algum indício de participação política em sua família? 

AN: Um tio nosso era respeitado na cidade, tocava na banda militar e atuava como cabo eleitoral. Outro, o Chico Veneno, era irreverente e brincava com as crianças. Ele se rebelava contra a rigidez das regras de etiqueta, o que não deixa de ser algo político.

MR: Anos mais tarde foi criado o Teatro Experimental do Negro (TEN). Era um teatro contestador?

AN: Sim, o TEN visava combater o racismo. Confrontamos os intelectuais que tinham interferência no Congresso, como era o caso de Gilberto Freyre. O TEN vivia muito em função de desmoralizar a ciência e a política que depreciavam o negro. 

MR: Hoje existe o trabalho cultural de teatro com recorte racial e étnico nas comunidades, pelos quatro cantos do Brasil. Isso é sequência de ações antigas como o TEM? Qual sua opinião sobre isso?

AN: O TEN era um espaço de espontaneidade, criatividade e troca de experiência histórica. Por isso não reduzíamos a nossa presença no palco aos estereótipos das negras bundudas, o cotidiano dos pobres e assim por diante. Contávamos as nossas histórias cotidianas, os nossos dramas em linguagem nossa. Isso eu aprendi no Brasil e na África, na Nigéria e também em Angola. Dei um curso de teatro para os jovens em Angola, quando estava lá como consultor da UNESCO, onde passei em revista toda a teoria de Stanislavsky.

MR: Me chama atenção que nós ainda continuamos tendo que quebrar barreiras cotidianamente. Como você vê isso?

AN: Ah! Infelizmente a memória da escravidão ainda está presente. Ainda é um fantasma assombrando a vida dos negros e da sociedade brasileira. E isso tem que mudar. A Lei 10.639 é um bom exemplo de mudança.

MR: Para uma atuação mais ampla, quais novos conselhos você tem?

AN: É bom fazer as coisas sem ter juízo. Quem tem juízo não anda, fica paralisado. É preciso não ter juízo para poder enfrentar esta doideira que é o racismo no Brasil. É difícil enfrentar a máquina pública com o racismo institucional; imagine a loucura que deve ser o governo federal?


Elisa Larkin do Nascimento

Doutora em Psicologia e Mestre em Direito e em Ciências Sociais. Preside o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Entre suas publicações destacam-se: O sortilégio da cor (2003), cinco volumes da Coleção Sankofa (2009) e a biografia de Abdias Nascimento na coleção Grandes Vultos que Honraram o Senado (2014).

Matilde Ribeiro

Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); desde 2014 é professora na Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Integra o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), o Conselho África do Instituto Lula, o Conselho Nacional de Formação Política da Fundação Perseu Abramo e o Conselho Consultivo da Revista Estudos Feministas. Foi Secretária Adjunta na Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial da Prefeitura de São Paulo (2013-2014) e Ministra da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Governo Federal (2003/2008).

RERERENCIA:

RIBEIRO, Matilde; NASCIMENTO, Elisa Larkin. ENTREVISTA COM ABDIAS NASCIMENTO: DESCOBERTAS INSTIGANTES. Capoeira-Humanidades e Letras, v. 1, n. 3, p. 91-104, 2015.


[1] Doutora em Psicologia e Mestre em Direito e em Ciências Sociais. Preside o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Entre suas publicações destacam-se: O sortilégio da cor (2003), cinco volumes da Coleção Sankofa (2009) e a biografia de Abdias Nascimento na coleção Grandes Vultos que Honraram o Senado (2014).

[2] Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); desde 2014 é professora na Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Integra o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), o Conselho África do Instituto Lula, o Conselho Nacional de Formação Política da Fundação Perseu Abramo e o Conselho Consultivo da Revista Estudos Feministas. Foi Secretária Adjunta na Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial da Prefeitura de São Paulo (2013-2014) e Ministra da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Governo Federal (2003/2008).

[3]A mãe de Abdias chamava-se Georgina Ferreira do Nascimento; era doceira e ama de leite e tornou-se conhecida como Dona Josina.

[4]Daí surgiu este texto de Abdias Nascimento:Sitiado em Lagos. Autodefesa de um negro acossado pelo racismo (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981).

[5]Abdias Nascimento, “Racial Democracy” in Brazil: Myth or Reality?Tradução de Elisa Larkin Nascimento. Ibadan, Nigéria: Sketch Publishers, 1977. O livro foi publicado em português, no Brasil, como:O genocídio do negro brasileiro.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

[6]Disponíveis em www.ipeafro.org.br.

Marcos Carvalho Lopes

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