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Erotismo e ética do cuidado em África

Luís Kandjimbo |*

Escritor

O seminário sobre “Estudos Culturais – Construção da Subjectividade”, unidade curricular que oriento no Mestrado em Psicologia Social da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, tem sido um laboratório nos últimos cinco anos.

No âmbito dos debates que as sessões permitem, conto com as experiências de estudantes, mulheres e homens, oriundos das diferentes províncias do País. Por isso, as propostas que formulo sobre a sexualidade das mulheres, partindo de um conceito endógeno de cultura, parecem ter algum eco.

Nesta matéria, a imagem e as representações da mulher que a minha memória regista são construções resultantes da experiência de um rapaz que, durante anos aprendeu a olhar para as mulheres à sua volta, a partir do modelo fornecido pela família. Essas imagens são predominantemente marcadas pela presença da femininilidade avaliada através dos papéis que as mulheres desempenham, no âmbito de uma divisão social do trabalho.

Por isso, no contexto familiar aprendi a identificar práticas, discursos e instituições que sustentam a identidade social das mulheres, destacando-se aí a literatura oral, a música, as canções e as danças. Tais práticas ocorriam aos fins- de-semana. No quintal da nossa casa, a minha mãe realizava o comércio de uma bebida tradicional, em  tertúlias animadas por música e dança.

Entre outras, foram também estas as minhas fontes de aprendizagem de canções, da execução rítmica das músicas e da coreografia de danças. Quando recorro à memória percebo que uma boa parte dessas canções eram eróticas, nas quais se inscrevem personagens e vozes de mulheres. Às mulheres são atribuídos papéis determinantes na relação sexual. Comportam-se como sujeitos que têm domínio do seu próprio corpo. Distinguem-se pelo seu sentido de cuidado cuja expressão é a Ética Africana do Cuidado.

No entanto, para o que era dado a observar, não era esta a imagem que a sociedade colonial lhes reservava. Por conseguinte, retenho na memória dois modelos da imagem da mulher. Um que me é fornecido em casa e na família. O outro proporcionado pela escola colonial, a catequese e a moral cristã, segundo o qual a mulher tem exclusivamente a vocação para contrair matrimónio, obedecer ao marido, cuidar da família e dos filhos, sendo-lhe exigida uma formação escolar mínima.

O primeiro contraste dos dois modelos tem no centro a figura de uma mulher que, tendo realizado os estudos primários, diplomando-se com uma formação profissional, é desencorajada a prosseguir os estudos liceais, devido aos preconceitos e valores dominantes na década de 60 do século XX, cujo fundamento ideológico institucional é o racialismo colonial, a marginalização da mulher e a desigualdade social. Enfim, a categorização do “segundo sexo”, a subalternidade.

Ritos da sexualidade 

Mas, a mulher a que me refiro, gozava de distinção no meio social pelo seu bem sucedido percurso de estudante do ensino primário e a formação profissional em corte e costura, orientava o seu comportamento moral em obediência a padrões de conduta, práticas e instituições culturais da sua comunidade, em que se inclui a família. Por exemplo, revelava um sólido conhecimento acerca da autonomia decorrente dos papéis atribuídos às mulheres.

A sexualidade era um dos domínios da vida a respeito da qual tinha muita segurança. Foi ela que pela primeira vez me levou a assistir uma manifestação do rito de iniciação de mulheres casadas, denominado “ovikaviula”, em língua Umbundu. Para quem estava habituado a assistir espectáculos de festivais de  “ovingandji”, dança e música de mascarados, em apresentação pública de rapazes, na sequência dos ritos de iniciação masculina, o desfile de “ovikaviula” trazia à luz do dia uma prática secreta das mulheres.

Tratava-se de um rito de mulheres casadas a que têm acesso apenas as iniciadas, obviamente. O conhecimento do corpo, as técnicas da prática sexual e a imaginação erótica, como o alongamento dos lábios vaginais ou uso de poções afrodisíacas, são algumas das matérias ministradas durante o retiro das mulheres que se submetem ao referido rito.

É um fenómeno que se regista em todo o continente africano, tendo, por essa razão, denominações diferentes. A título de exemplo, em Angola, são conhecidos o “cikumbi” (Kikongo), a “efundula” (Ovambo), a “mukanda” (Cokwe). Portanto, o pensamento sobre a sexualidade feminina e a prática do erotismo em África manifestam-se como um dispositivo de afirmação das mulheres, não se justificando assim a sua negação ou a apologia da falocentria e a fatal dominação dos homens como pretendem fazer crer aqueles que negligenciam o conhecimento de experiências das mulheres africanas. Pode dizer-se que, para o caso de Angola, ainda está por ser divulgada a literatura oral e a poesia erótica das diferentes comunidades angolanas.

Na verdade, estão aí também subjacentes as problemáticas téoricas da sexualidade em que se inscreve o conhecimento de uma complexidade de fenómenos respeitantes às relações íntimas do homem e da mulher, ritos, escolhas, consentimentos, atitudes, identidades, poder, domínio e símbolos.

As canções mencionadas cuja melodia ainda reproduzo exaltam os poderes da vagina, escarnecendo o falo que, na cultura ocidental, ocupa um lugar central na sexualidade humana.

Nkiru Nzegwu, a filósofa nigeriana

A este propósito, trago à conversa a reflexão de Nkiru Nzegwu, uma filósofa nigeriana, professora na Universidade de Binghamton, nos Estados Unidos da América, que, curiosamente, em 2009 visitou Luanda e Benguela, tendo proferido uma conferência na Universidade Katyavala Buyila sobre estética e arte africana, incidindo sobre o valor das obras de mulheres africanas. Escrevendo para um volume dedicado à sexualidade em África, “African Sexualities: A Reader” (Sexualidades Africanas. Guia de Leitura), organizado pela jurista ugandesa Sylvia Tamale, Nkiru Nzegwu debruça-se sobre o que designa por “osunalidade” ou erotismo africano, numa alusão à deusa yoruba Òsùn que representa a sexualidade e a fertilidade centrada na mulher.

No capítulo do referido livro, Nkiru Nzegwu indaga-se acerca da pré-existência de uma concepção de erotismo nos universos sexuais africanos antes da hegemonia europeia. As respostas exigem um recurso ao conhecimento da história. Donde se conclui que a concepção de erotismo em África remonta ao Egipto Antigo, tal como o prova o Papiro Erótico de Turim do Período Ramessida (1292-1075 a.C.) e a poesia de amor do Novo Império (1567-1085 a.C.)

Partindo da genealogia que distingue o erotismo africano do erotismo ocidental, Nkiru Nzegwu sublinha a necessidade de desvendar os esquemas sexuais do prazer e da realização sexual para mulheres e homens e o modo como eles se efectivam, nas culturas africanas. Neste sentido, entende que a compreensão da sexualidade em África, onde a vagina é percebida como um órgão importante, distingue-se da que se tem no Ocidente. Para a filósofa nigeriana, essa agentividade reconhecida à vagina está ausente nas noções ocidentais de erótico.

No continente africano, existe a ideia dominante da vagina como um agente devorador na relação heterosexual, opondo-se à subalternidade da mulher. De acordo com um provérbio Igbo da Nigéria, “o pénis fica erecto como se quisesse matar, mas é a vagina que o engole e controla”. Tal imagem resulta da observável invisibilidade do pénis durante a cópula a que se associam conotações veiculadas pelas canções eróticas ou ainda pelas narrativas das mulheres pertencentes à comunidade étnica luba, dotadas de lábios vaginais alongados, cujos méritos permitem dar testemunho do prazer sexual. Nada de exótico se pode apontar a este respeito.

Filosofia da sexualidade

Ora, a filosofia da sexualidade, tal como é entendida na Europa e nos Estados Unidos da América, encontra um dos mais importantes temas de estudo no conceito de objectificação cuja ilustração são os anúncios de mulheres atraentes e semi-nuas, a pornografia, a atractividade sexual das mulheres. Este é o ponto de vista da filósofa canadiana Patricia Marino. Ao considerar que a objectificação é um problema comum na maioria das sociedades contemporâneas, admite eventualmente que seja impossível reconhecer que tais modelos de cognição são exportados para outros continentes através dos dispositivos, instituições e discursos sedutores do Ocidente.

Isto quer dizer que com a pretensa universalização da problemática ela perde de vista o facto de existirem diferentes problemas em outros contextos culturais. Os próprios conceitos de sexualidade e sexo revelam-se difíceis de definir para muitos que se dedicam ao seu estudo. É que a compreensão da sexualidade exige um conhecimento sólido das diferentes tradições morais. De tal modo que, perante a perspectiva vaginocêntrica das práticas eróticas africanas, tal como propõe Nkiru Nzegwu, o tema da objectificação da mulher traduz-se simplesmente como uma demonstração evidente do império falocêntrico masculino. 

Para a filosofia em geral, o mal conhecido erotismo africano é o tema da sexualidade que parece ser mais digno de atenção do que as formas de desumanização a que as máquinas de comunicação publicitária do capitalismo neo-liberal ocidental submetem as mulheres e os homens. Em todo o caso, o pensamento filosófico ocidental sobre a sexualidade não é monolítico nem exclusivo. Há honrosas excepções, quando se percebe que a ética do cuidado e o ecofeminismo cujo centro gravitacional é a mulher, mobiliza psicólogas e filósofas contra a dominação patriarcal masculina, tal como o demonstram as norte-americanas Carol Gilligan e Sara Ruddick ou a indiana Vandana Shiva.

Para concluir a nossa conversa, não hesito em afirmar que em África, a filosofia da sexualidade é um domínio do pensamento que vem prosperando no espaço académico e fora dele, ultrapassando as limitações que foram sendo impostas pelos vários tipos de feminismos. A produção reflexiva da filósofa Nkiru Nzegwu a que se juntam a de outras mulheres, tais como a psicóloga Amina Mama, e a socióloga Oyèrónké Oyĕwùmí, são hoje parte significativa das mais destacadas referências dos Estudos sobre Mulheres no nosso continente.
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* Ensaísta e professor universitário

publicado originalmente no Jornal de Angola em 10/01/2021  <https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/erotismo-e-etica-do-cuidado-em-africa/>

https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/erotismo-e-etica-do-cuidado-em-africa/

Marcos Carvalho Lopes

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