1

PARA QUE FILOSOFIA V: Filosofia acadêmica: ser ou não ser

Gonçalo Armijos Palácios

Para poder ser, às vezes a filosofia tem que sair da academia, daquela em que se entronaram esses que precisam que outros pensem para que eles falem


Uma das discussões comuns sobre a filosofia é se é possível que ela exista fora da academia. A questão, claro, é de que tipo de academia estamos falando. Que devemos entender por ‘academia’. Não devemos identificar academia com ‘universidade’, porque há vários tipos de universidade. E, em segundo lugar, de universidade de que lugares estamos pensando. Pois há uma grande diferença entre uma universidade que não pesquisa, ou nada produz, e outra em que se pesquisa e se produz ciência, tecnologia assim como arte (pintura, teatro, música). A universidade, naturalmente, pertence a algum tipo de sociedade e será por esta influenciada. Aí está o problema. Que tipo de sociedades estimula academias em que se faça pesquisa, se desenvolva a ciência e, claro, se faça filosofia. Se faça, filosofia, não unicamente se teçam comentários sobre ela. Nem em todas as universidades, mesmo nos países mais desenvolvidos, se produz ciência e se faz filosofia. Mas há universidades em que se faz uma coisa e outra. E essas universidades se encontram em certas regiões do planeta em que se estimula — e até se exige — a produção de saber, não a mera difusão de resultados outrora ou alhures conseguidos.

A filosofia não nasceu — nem poderia ter nascido — na academia, inexistente nos tempos dos primeiros filósofos gregos, os pré-socráticos. Um momento importante para a transição da filosofia não acadêmica para a acadêmica o constitui o pensamento de Sócrates. Ele, num sentido, faz do pensamento filosófico, até ele reflexivo e especulativo, um pensamento discursivo. Sócrates passa a fazer filosofia discutindo problemas, em praça pública e com vários interlocutores. Poderíamos dizer que do tipo reflexivo, meditativo e contemplativo, a filosofia, com Sócrates, adquire seu caráter dialético. Caráter que jamais iria perder e marcaria um dos seus traços mais fundamentais. Pois, depois de Sócrates, não se faz mais filosofia se não é pelo diálogo, pelo debate, pela discussão, pela oposição de teses contrárias.

A filosofia acadêmica nasce com Platão. Mas, num sentido, há uma mudança — mudança que por mais importante que tenha sido, não alterou o caráter dado à filosofia por Sócrates. Pois ela continua sendo dialética. Pode ter assumido um caráter sistemático — com o qual ganha muito, evidentemente — mas não perde seu caráter dialético, o aperfeiçoa. Com Aristóteles, a filosofia aprofunda esse caráter sistemático dentro do mesmo espírito dialético, discursivo. É o que mostram seus textos, nos quais vemos inúmeras críticas aos filósofos anteriores, incluído seu mestre. Num sentido, então, o estilo socrático, discursivo, de filosofar, se afia, melhora, progride, na sistematização acadêmica que ganha com Platão e Aristóteles. Mas com isso não se tornou escolar — não se fez escolástica, isto é.

Com o passar do tempo, há lugares em que a filosofia continua existindo como discussão e como debate. A filosofia medieval aprofunda a técnica discursiva e a leva a extremos. Mas também produz a escolarização da filosofia. Isto é, o ensino da filosofia entregue em pacotes dogmáticos, recheados de verdades incontestáveis. É isso, portanto, sobre o que devemos estar claros: de que academia estamos falando? Se for daquela que preserva o estilo platônico, nessa academia faz-se filosofia, cresce-se, avança-se, olha-se para o presente e o futuro, sem desconhecer nem descuidar o legado do passado. Mas naquela que só se contempla o que se faz noutros lugares ou se fez noutros tempos, naquela academia, a que de fato existe em países em que não se produz filosofia, nela se passa gato por lebre. Nela, o ‘mestre’ é o ‘especialista em’, ‘o profundo conhecedor da teoria de’, o ‘grande comentador’.

Esse processo de escolarização (ou ‘escolastização’ da filosofia, permitam-me o neologismo) afasta a filosofia da autêntica maneira de se filosofar e se cria com isso uma elite de ‘conhecedores’, ‘comentadores’, ‘especialistas’, que vivem do prestígio do trabalho criativo dos outros. Eles não criam, não contribuem com idéias próprias, não descobrem ou propõem problemas novos, e desapareceriam, caso, por alguma espécie de milagre, de um dia para outro os livros de filósofos consagrados desaparecessem junto com a memória do que eles fizeram. Seria o acabou-se, o fim dos ‘especialistas’, dos ‘eruditos’, dessa casta de mercadores de idéias alheias. Pois o que estes fazem, e com isso pensam que fazem muito, é, no máximo, descobrir novas interpretações de textos clássicos, as famigeradas, e patéticas, ‘novas leituras de’.

Por tudo isso, todo esforço encaminhado para resgatar o caráter dialógico, dialético ou discursivo da filosofia deve ser bem-vindo. Todo projeto de levar a discussão filosófica à praça pública só faz recriar os fundamentos sobre os quais o pensamento filosófico se afirma e sem os quais a própria filosofia nunca teria existido. Dessa maneira, levar a filosofia aos meios de comunicação é uma das várias maneiras de se combater o academicismo estéril dos comentadores, dos eruditos e dos especialistas. Porque é verdade: quando às pessoas se dá a oportunidade de uma reflexão filosófica, elas as aproveitam. Eu mesmo não estaria ocupando este espaço, ininterruptamente por sete anos, se não acreditasse que o que faço contribui para isso. Tampouco teria aberto um espaço para discutir filosoficamente os assuntos que nos preocupam num programa de rádio.1 Assim, jornal, rádio e televisão podem ser excelentes meios para incentivar o aparecimento ou consolidação da verdadeira reflexão filosófica, aquela que se faz discutindo abertamente com as pessoas, não a falsa filosofia daqueles que só podem falar o que nunca lhes teria passado pela própria cabeça, daqueles que necessitam que outros pensem para que eles falem.

1 O programa se chamava Filosofia no Ar, na Rádio Universitária (870 KHZ, AM), que ia ao ar nas segundas e quartas-feiras às 7:15 da manhã com repetição às 18:00h dos mesmos dias.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. Trazer à luz os ensinamentos dos mestres da Filosofia é um conforto para mim e incentivo para recordar, reaprender e atualizar.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *