Luís Kandjimbo |*
Escritor
A leitura da “Instrução de Ptahhotep”, texto clássico que propus na conversa passada, permite concluir que a história da filosofia africana é apenas uma como tantas outras filosofias existentes à escala global. Isto quer dizer que o estudo histórico da filosofia africana é um imperativo universal de igual modo. Por conseguinte, a história da filosofia africana é hoje uma disciplina académica, apesar do espectro negacionista com que se confronta a sua consagração universitária em alguns países africanos. É o caso de Angola onde por inércia institucional a iconografia e os conteúdos programáticos do ensino da disciplina, em diferentes exemplos, ainda obedecem aos determinismos ocidentais e eurocêntricos.
História da filosofia e retórica antiga
No século III, quando o historiador romano Diógenes Laércio (200-250) traça as trajectórias biográficas de filósofos gregos, no seu livro “Vida e Doutrinas de Filósofos Ilustres”, o Egipto tem uma presença impressionante. Entretanto, foi a partir do século XVIII que na Europa, após o importante trabalho de Jacob Brücker, através do qual os primórdios se situavam nos tempos da “filosofia bárbara”, a história da filosofia começou a registar a eliminação das referências aos contributos civilizacionais antigos dos Africanos dos discursos de filósofos.
A este propósito, o fio condutor da historiografia da filosofia vem abandonando aquela orientação que, no século XIX, lhe tinha sido conferida pelo filósofo alemão F.W. Hegel, ao negar a existência de fundamentos históricos de uma racionalidade filosófica em África. No Ocidente, o modelo eurocêntrico da história da filosofia enfrenta hoje enormes desafios.
Um deles diz respeito à secular reivindicação exclusiva de determinadas práticas discursivas, tais como a oratória, a retórica e a argumentação. Já na primeira década dos anos 90, o historiador britânico Martin Bernal publicou dois volumes originariamente publicados em inglês do livro “Black Athena. Les racines afro-asiatiques de la civilisation classique” (A Atenas Negra. As raízes afro-asiáticas da civilização clássica).
O autor chama a atenção dos leitores para o subtítulo do primeiro volume: “A invenção da Grécia Antiga.1785-1985”, desmistificando a visão helenocêntrica, centrada na Grécia, como berço da filosofia.
Se o historiador da filosofia Émile Bréhier, francês, denuncia o embuste segundo o qual “os gregos foram os primeiros filósofos”, já as norte-americanas Carol Lipson e Roberta Binkley, são duas investigadoras e especialistas da retórica que se têm dedicado à denúncia do paroqualismo ocidental. Chamam a atenção dos especialistas e do público para a problemática em dois livros de que são co-editoras: “Rhetoric Before and Beyond the Greeks” [A Retórica Antes e para lá dos Gregos, 2004] “Ancient Non-Greek Rhetorics” [Retórica Não-Grega Antiga, 2009].
Com os referidos livros as autoras reafirmam a necessidade de divulgar a retórica antiga em culturas não-ocidentais, nomeadamente, China, Egipto, Índia, Japão, Mesopotâmia, América Central e do Sul, afastando qualquer referência aos modelos gregos clássicos. Associa-se a isso o facto de se registar um crescente interesse de filósofos pelos problemas relativos às práticas retóricas e argumentativas de outros continentes.
Outras retóricas e ética argumentativa
No primeiro livro editado por aquelas autoras, há um capítulo “Ancient Egyptian Rhetoric: It All Comes Down to Maat” [A Retórica do Egipto Antigo: Tudo se resume a Maat], assinado por Carol Lipson, no qual se produz uma síntese das releituras e interpretações de fontes antigas, tal como já recomendava Cheikh Anta Diop, na década de 50 do século XX. Aliás, é ele que assinala o momento da ruptura, a este respeito, em 1954 com a publicação do seu livro “Nations Nègres et Cultures. De l’Antiquité nègre égyptienne aux problèmes culturels de l’Afrique Noire d’aujourd’hui” [Nações e Culturas Negras. Da Antiguidade Negra do Egipto aos Problemas Culturais da África Negra nos nossos dias] de Cheikh Anta Diop.
Carol Lipson destaca a importância de trabalhos de outros investigadores, designadamente Michael Fox com a sua proposta dos cinco cânones da retórica egípcia antiga e George Kennedy com o seu livro pioneiro dedicado à retórica comparativa em que a retórica egípcia é uma referência obrigatória.
Quando, em 1906, foi publicada em inglês uma das primeiras traduções da “Instrução de Ptahhotep” e a “Instrução de Kegemni”, Battiscombe Gunn, o tradutor e autor da introdução, considerava que se estava em presença dos mais antigos livros no mundo. Em termos relativos nada se lhes compara.
A “Instrução de Ptahhotep” apresenta uma estrutura digna de estudo, tendo em conta a diversidade de matérias em que se desenvolve. Mas é a ética argumentativa que chama a atenção, especialmente as virtudes que devem orientar o comportamento verbal de quem se dirige a um interlocutor.
A quarta máxima constitui a síntese do comportamento virtuoso, destacando-se o silêncio como uma qualidade apreciável. Mas quando se procede à leitura das três primeiras máximas compreende-se que o domínio da psicologia da actividade discursiva interpessoal é um pressuposto. As lições de Aristóteles na sua “Retórica” trazem ecos longínquos das quatro máximas cuja releitura a seguir recomendo.
Primeira Máxima – Um oponente superior
Se encontrares um oponente agressivo, aquele que é influente e é melhor que tu, baixe os braços e dobre as costas, pois se o confrontares, ele será impiedoso.
Deverás menosprezar seu mau uso da palavra. Não o contraries com veemência. Como resultado ele será considerado ignorante, na medida em que o teu silêncio será adequado à sua pobreza de recursos.
Segunda Máxima – Um oponente igual
Se encontrares um oponente agressivo, teu igual, aquele que tem a tua própria posição social, prove que és mais correcto do que ele, permanecendo em silêncio, enquanto ele fala vingativamente. A deliberação dos juízes será sombria, mas teu nome merecerá estima na sentença dos magistrados.
Terceira Máxima – Um oponente de baixa condição
Se encontrares um oponente agressivo, um homem de condição social inferior, aquele que não é igual a ti, não o assalte devido à sua humilde condição. Deixe-o em paz e ele encarregar-se-á da sua própria autocondenação. Não lhe responda para desabafar a tua frustração. Não descarregue a tua raiva sobre o teu oponente. Miserável é aquele que humilha alguém que é inepto. Tudo acontecerá de acordo com a tua vontade e ele será censurado pelos magistrados.
Quarta Máxima – A virtude (Maat)
Se fores um governante responsável pelos destinos do povo, procure por todas as formas para fazer o bem, para que não haja falhas em tuas acções. Grande é Maat e seus fundamentos estão firmemente estabelecidos. Não foi abalado desde o tempo de Osíris, E aquele que viola as leis deve ser punido. Aos olhos do homem ambicioso, passa despercebido que a riqueza pode ser perdida pela desonestidade, e que a transgressão não resulta em sucesso.
Ele diz: “Eu vou procurar (riqueza) para mim.” Ele não diz: “Eu vou procurar (riqueza) através da minha diligência.” Mas a longo prazo é Maat que perdura. Um homem (honesto) pode declarar: “Esta é minha propriedade ancestral”. Não inspire medo às pessoas, ou Deus punirá em igual medida. Um homem pode decidir viver dessa maneira. Mas (eventualmente) faltará pão para a sua boca.
Nas três primeiras máximas, verifica-se que a polarização representada pela presença do proponente e oponente, configurando uma diferença de pontos de vista, pode legitimar o início de uma conversa argumentativa.
Mas é imprescindível conhecer a estrutura de personalidade do oponente, em obediência ao princípio da alternância no uso da palavra. Por exemplo, nas três primeiras máximas desenham-se perfis psicossociológicos de oponentes: superior, igual e baixa condição. Em todo o caso, dependendo do modo como se aproveita esse conhecimento, a força argumentativa pode ser não-verbal.
O silêncio é referido como dispositivo eficaz, embora se reconheça que argumentar é uma actividade verbal, social e racional destinada a convencer um interlocutor igualmente racional a respeito da aceitabilidade de um ponto de vista.
Portanto, se quiséssemos aprofundar o estudo dos cânones do Egipto Antigo, o objecto seria constituído pelos actos de fala da oralidade, a produção escrita, os esquemas argumentativos e a avaliação do discurso. Tal como se formula na quarta máxima, a justiça e a verdade (Maat) constituem o fim último da actividade argumentativa.
* Ensaísta e professor universitário
Fonte: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/etica-argumentativa-e-desmistificacao-do-eurocentrismo/ Publicado em 10/10/2021