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O Iluminismo Pragmatista – Robert Brandom

Robert Brandom

Um Segundo Iluminismo

O pragmatismo americano clássico pode ser visto como um movimento menor, provinciano, teoricamente derivativo, prática e politicamente inconseqüente. Desse ponto de vista – que de certa maneira é o de Russell e Heidegger (dois mandarins falando em nome de culturas filosóficas bastante diferentes) – o pragmatismo seria o eco americano, na última parte do século XIX, do utilitarismo britânico do início desse mesmo século. O que ecoa é a sensibilidade grosseira, própria de feirantes, que enxerga tudo através das lentes redutoras da comparação custo-benefício. Bentham e Mill buscaram um fundamento secular para a moral, para a política e para a teoria social nos hábitos contábil-burgueses de competidores egoístas, para os quais a razão de uma ação assume forma correspondente à resposta da seguinte pergunta: “Que proveito tiro daí?”. James e Dewey surgem mais tarde e adotam essa concepção de razão prática, estendendo-a à esfera teórica da epistemologia, da semântica e da filosofia da mente. A racionalidade, em sentido abrangente, mostra-se como inteligência instrumental: uma capacidade genérica de alcançar o que se quer. Desse ponto de vista, a verdade é o que funciona; o conhecimento é uma espécie da utilidade; a mente e a linguagem são ferramentas. O materialismo instintivo e o anti-intelectualismo brutos do senso comum recebem uma expressão refinada na forma de uma teoria filosófica.

O projeto utilitarista de fundamentar a moral na razão instrumental está obviamente sujeito a sérias objeções, tanto de princípio como na prática. Mas é visto corretamente como progenitor da teoria da escolha racional contemporânea, que exigiu apenas o desenvolvimento do poderoso instrumental matemático da moderna teoria da decisão e da teoria dos jogos para emergir (para o melhor ou para o pior) como o esquema conceptual dominante nas ciências sociais. Nada que se compare pode ser dito sobre a subseqüente influência da ampliação pragmatista, resultante da aplicação do instrumentalismo ao domínio teórico. Na filosofia americana o apogeu de Dewey rapidamente cedeu lugar ao apogeu de Carnap; e a filosofia analítica, nascida do positivismo lógico de Carnap, suplantou e, em grande medida, eliminou sua predescessora. Embora o pragmatismo tenha hoje alguns herdeiros proeminentes – notavelmente, talvez, Richard Rorty e Hilary Putnam – não há muitos filósofos americanos atualmente trabalhando em tópicos centrais da verdade, do significado e do conhecimento que citariam o pragmatismo como uma influência central em seu pensamento.

Mas o pragmatismo americano clássico pode ser visto de maneira diferente: como um movimento de significado histórico universal – como anúncio, início e primeira formulação do credo combativo de um segundo iluminismo. Para os pragmatistas, assim como para seus predecessores iluministas, a razão é a força soberana na vida humana. E para os últimos, assim como para os primeiros, a razão, nessa qualidade, deve ser entendida segundo o modelo fornecido pelas formas de compreensão distintivas das ciências naturais. Mas as ciências de fins do século XIX, das quais os pragmatistas tomaram sua orientação, eram muito diferentes das que animaram o primeiro iluminismo. Conseqüentemente, a imagem filosófica de criaturas racionais, que buscam e desenvolvem essa forma de compreensão de seu ambiente, foi também diferente.

Compreensão e explicação são conceitos coordenados. Explicação é uma espécie de dizer: fazer afirmações que tornam algo inteligível. É uma forma de engendrar a compreensão por meios essencialmente discursivos. Existem, é claro, diferentes abordagens literárias do problema quanto à obtenção desse fim, diferentes estratégias para fazê-lo. Mas também há diferentes concepções operativas do que se deve tomar em consideração a fim de se reconhecer que o fim foi alcançado – isto é, o que se precisa fazer para de fato tê-lo feito. É uma mudança da última espécie (trazendo consigo, é claro, uma mudança da primeira espécie) que os pragmatistas buscam. Para o iluminismo original, explicar um fenômeno (ocorrência, estado de coisas, processo) é mostrar por que o que realmente aconteceu deveria ter acontecido daquela maneira, pois o que é real é (ao menos condicionalmente) necessário. Por outro lado, para o novo iluminismo pragmático, é possível também explicar o que permanece e é sempre reconhecido como contingente. A compreensão cujo paradigma é a física de Newton consiste em princípios universais, necessários e eternos expressos na linguagem abstrata e impessoal da matemática pura. A compreensão cujo paradigma é a biologia de Darwin é uma narrativa concreta e situada de acomodações localizadas, contingentes, mutáveis, práticas e recíprocas entre criaturas particulares e seu hábitat. O século XIX foi “o século estatístico”, que viu o advento de novas formas de explicação nas ciências naturais e sociais. Em vez de deduzir-se o que acontece a partir de leis irrestritas, elabora-se uma forma de inteligibilidade que consiste em mostrar o que tornou os eventos prováveis. As abordagens em termos de seleção natural ou de probabilidade estatística mostram como ordens observáveis podem surgir, contingentemente mas ainda de maneira explicável, do caos – como resultado cumulativo diacrônico e sincrônico de ocorrências individualmente aleatórias.

As leis matemáticas que articulavam a ordem básica do universo eram, para os pensadores iluministas dos séculos XVII e XVIII, o dado último – explanadores fundamentais inexplicáveis – traços estruturais das coisas tão básicos que tal resíduo explanatório poderia mesmo exigir e, portanto, justificar um último, exíguo, cuidadosamente circunscrito e nostálgico apelo ao Criador (como de fato acreditaram os Deístas dessa transição à pós-religiosidade). Charles Sanders Peirce, o gênio fundador do pragmatismo americano elaborou, a partir das novas formas seletivas e estatísticas de teorias científicas, uma visão filosófica que apresenta até mesmo as leis da física como produtos contingentes resultantes de processos seletivos oriundos de uma indeterminação primordial. Elas são hábitos adaptativos, sendo cada um desses, em sentido estatístico, relativamente estáveis e robustos no meio ambiente estabelecido pelo restante. As velhas formas de explicação científica aparecem então como casos especiais ou limítrofes das novas formas. A validade agora restrita do apelo a leis e princípios universais é explicada por contraste ao plano de fundo mais amplo fornecido por novos paradigmas científicos – os que explicam como a regularidade pode surgir da variabilidade e como pode ser por essa sustentada. O “reino tranqüilo das leis” do primeiro iluminismo torna-se, para o segundo, uma população dinâmica de hábitos, peneirada de uma porção bem maior, que até agora escapou da extinção por manter um equilíbrio coletivo e auto-reprodutivo, ainda que mais ou menos frágil. Não se trata apenas de não poder estar seguros de ter captado os princípios corretamente, pois as leis e os princípios corretamente captados podem eles mesmos mudar. Os pragmatistas endossam um falibilismo, ou mutabilismo, ontológico. Dado que as leis somente surgem estatisticamente, elas podem mudar. Nenhuma adaptação darwinista é definitiva, uma vez que o ambiente a que se adapta pode mudar – certamente, em algum momento deve mudar em resposta a outras adaptações darwinistas. E as propriedades das coisas, relativamente estabelecidas e estáveis – seus hábitos, como diriam Peirce e Dewey – devem ser elas mesmas compreendidas como tais adaptações. Os pragmatistas eram naturalistas, mas viram-se diante de uma nova espécie de natureza, uma natureza fluida, estocástica, em que as regularidades são o produto estatístico de diversas interações particulares e contingentes entre coisas e seu ambiente sempre mutável – portanto, emergentes e potencialmente evanescentes, flutuando estatisticamente sobre um mar caótico.

A ciência em que esse último iluminismo buscou sua inspiração havia mudado muito se comparada à do iluminismo anterior, e mudou não só nos recursos conceptuais que oferecia aos filósofos interpretantes ou admiradores. Nos séculos XVII e XVIII, o impacto científico ainda era, em grande medida, uma questão teórica. Seus devotos sonhavam, prediziam e planejavam grandes transformações sociais e políticas, que eles acreditavam estar sendo prefiguradas e preparadas pelas descobertas da nova ciência. Mas durante esse período aquelas novas formas de pensamento eram, em grande parte, destituídas de conseqüências práticas. Em vez de motores, eram muito mais manifestações da maré montante da modernidade. Por volta da metade do século XIX, contudo, a tecnologia – o braço prático da ciência – já havia transformado o mundo radical e irrevogavelmente através da Revolução Industrial. Do ponto de vista do capitalismo industrial estabelecido, a ciência despontou como a mais bem sucedida instituição social dos últimos duzentos anos, pois não só havia se tornado uma prática mas também um negócio. Ostentava-se o seu êxito prático como garantia de suas reivindicações de penetração teórica. A tecnologia corporifica a compreensão científica. As lições filosóficas mais gerais que os pragmatistas tiraram da ciência a fim de compreender a natureza da razão e seu papel central na vida humana pretendiam, conseqüentemente, entender a compreensão intelectual como um aspecto da agência, buscavam situar o conhecer que (alguma afirmação é verdadeira) no campo mais amplo do saber como (fazer algo). A espécie de razão explícita, que pode ser codificada em princípios, aparece apenas como um caso de expressão, freqüentemente dispensável, da espécie de inteligência implícita, que pode ser exibida no hábito – num hábito habilidoso (pois experimental), flexível à prática, adaptável e que emerge num ambiente particular através de seleção por um processo de aprendizagem.

Como seus ancestrais iluministas, os pragmatistas não eram apenas resolutamente naturalistas em sua ontologia mas também amplamente empiristas em sua epistemologia. Para ambos os grupos, a ciência é a medida de todas as coisas – daquelas que são, que elas são; daquelas que não são, que elas não são. E para ambos, a ciência não é apenas uma espécie de conhecimento mas a própria forma do conhecer: o que ela não conhece não é conhecimento. Mas, em vez de adotar o empirismo sensório-atomista do antigo cientificismo (que veio a ser mais tarde resgatado e ressuscitado pela aplicação de técnicas lógico-matemáticas modernas e robustas, originando assim o empirismo lógico) os pragmatistas optaram por um empirismo prático, menos reducionista e mais holista. As duas versões reservam lugar de destaque à experiência na explicação do conteúdo e da racionalidade do conhecimento e da ação. Mas suas compreensões desse conceito são bastante diferentes, à feição das diferentes características das ciências de que foram contemporâneos.

O antigo empirismo considerou a experiência como uma unidade autocontida, como um conjunto de eventos auto-informativos: episódios que constituem conhecimentos em virtude apenas de sua ocorrência bruta. Esses atos primordiais de consciência são então disponibilizados para fornecer a matéria-prima indispensável a qualquer espécie de aprendizagem (paradigmaticamente, por associação e por abstração). Afastando-se dessa noção de experiência como Erlebnis, os pragmatistas (tendo aprendido esta lição com Hegel) conceberam a experiência como Erfahrung. Para eles, a unidade da experiência é estabelecida por um ciclo de percepção, ação e posterior percepção dos resultados – um ciclo de Teste-Operação-Teste-Saída. Nesse modelo a experiência não é um input do processo de aprendizagem. A experiência é o processo de aprendizagem: a emergência estatística por seleção de variações comportamentais que sobreviveram e tornaram-se hábitos na medida em que são, em companhia de seus pares, adaptáveis ao ambiente em que foram repetidas vezes experimentadas e tiveram sucesso. (Esse é o sentido de “experiência”, como diz Dewey, empregado no anúncio de emprego que especifica “Exigem-se três anos de experiência”). A racionalidade científica é melhor sintetizada não nas ocasiões em que um teórico repentinamente capta algum aspecto da verdadeira estrutura da realidade, mas no processo em que o prático habilidoso obtém observações úteis por intervenção experimental, maneja teorias empregando postulações inferenciais ou extrapolações, e dinamicamente estabelece uma acomodação, mais ou menos estável mas sempre em evolução, entre os resultados provisórios dos dois empreendimentos. A mudança de imagens sobre a mente tipicamente pragmática não é aquela da substituição do espelho pela lâmpada, mas a que substitui telescópios e microscópios pelo volante regulador.

Essas novas formas de naturalismo e empirismo, atualizados a fim de responder às circunstâncias e ao caráter mutável da ciência do século XIX, combinaram-se de maneira muito melhor que suas versões anteriores. Os primeiros filósofos modernos tiveram dificuldades notáveis em adaptar o conhecimento e a ação humanos a sua versão mecânico-materialista do mundo natural. Uma lacuna cartesiana abriu-se entre a atividade do teórico, cuja compreensão consistiria na manipulação de representações simbólico-algébricas, e aquilo que é compreendido por essa atividade: o mundo extenso e geométrico representado por aqueles símbolos. A compreensão, descobrindo e atuando segundo princípios, revelava aos modernos um tipo de inteligibilidade; a matéria, movendo-se conforme leis eternas e inexoráveis, outro.

Na compreensão pragmatista, entretanto, aquele que conhece e o conhecido são analogamente explicáveis apelando-se aos mesmos mecanismos gerais, que extraem ordem do caos e hábitos estabelecidos de variações aleatórias: a estrutura estatística e seletiva, partilhada tanto pelos processos evolutivos como pelos de aprendizagem. A estrutura vincula todos os membros num grande continuum de ser, que se estende a partir dos processos de que emergem as regularidades físicas; passa pelos processos através dos quais o ser orgânico evolui para formas local e temporalmente estáveis; passa pelos processos de aprendizagem, através dos quais os seres animados adquirem hábitos local e temporalmente adaptativos; até à inteligência não instruída do senso comum utilizada pelos que empregam a linguagem comum; chegando enfim à metodologia do cientista teórico – que nada mais é que o refinamento explícito e sistemático dos procedimentos implícitos e assistemáticos, mas ainda assim inteligentes, da vida prática cotidiana. Pela primeira vez as práticas racionais, que de certa forma materializam o tipo paradigmático de razão exercida pelos cientistas na atividade de compreender os processos naturais, evidenciaram-se como contíguos aos processos paradigmáticos daquilo que é compreendido e mostraram-se inteligíveis nos mesmos termos desses processos. Essa visão unificada ocupa lugar central no iluminismo pragmatista.

Algumas das idéias mestras do pragmatismo clássico ressoam claramente temas introduzidos e desenvolvidos pelos românticos como crítica ao primeiro iluminismo. O pragmatismo e o romantismo rejeitam teorias espectadoras do conhecimento, segundo as quais a mente conhece tanto melhor quanto mais mantiver-se passiva e menos interferir, contentando-se meramente em refletir a realidade. O conhecimento é preferencialmente visto como um aspecto da atividade, uma espécie do fazer. O fazer, não o descobrir, é o gênero do envolvimento humano com o mundo. Ambos partilham da desconfiança quanto a leis, fórmulas e deduções. Um princípio abstrato é vazio, a menos que esteja enraizado e se expresse em práticas concretas. A realidade, em primeira instância, é revelada por experiências vivas no mundo da vida. A prática científica e as teorias que ela produz não podem ser entendidas separadamente de suas relações originárias de harmonização habilidosa da vida cotidiana. Conseqüentemente, pragmatistas e românticos concordam em rejeitar a universalidade como traço distintivo da compreensão. Nossa inter-relação cognitiva com as coisas é algo elementar, localizado, datado e contextualizado, mas vários e muitos desses aspectos essenciais são desconsiderados por seus eventuais produtos universalistas. Ambos vêem a necessidade como exceção e lhe atribuem inteligibilidade apenas por contraste ao plano de fundo massivamente contingente da vida humana. Ambos enfatizam a biologia em detrimento da física e vêem no conceito de orgânico os recursos conceptuais capazes de cicatrizar a ferida dualista provocada pela utilização negligente da afiadíssima distinção entre mente e mundo. Enquanto o iluminismo europeu viu na “luz natural da razão” algo universal, no sentido de algo partilhado ou comum, de tal maneira que tudo o que um cientista desinteressado e altruísta pudesse adicionar como um tijolo a mais no edifício do conhecimento, também poderia em princípio ser adicionado por outro, os pragmatistas, atentos à divisão do trabalho do que havia se tornado a moderna economia industrial, viram no empreendimento da razão algo social em sentido bem mais genuíno, articulado e ecológico. As contribuições dos indivíduos não são intercambiáveis ou substituíveis, mas cada uma delas é potencialmente uma contribuição única ao empreendimento comum. Tal empreendimento requer muitos tipos diferentes de habilidades, reações, idéias e ponderações, que, por sua vez, servem coletivamente de ambiente em que cada uma em particular adapta-se e evolui. Aqui também os pragmatistas aliam-se aos românticos em certos temas gerais ao oferecer uma mistura característica de racionalidade, naturalismo e cientificismo estatístico-darwinista a fim de levar a cabo essa abordagem.

No entanto, o pragmatismo não é uma espécie de romantismo. Embora esses dois movimentos de pensamento partilhem da antipatia ao intelectualismo iluminista, o pragmatismo não chega a desistir da razão, a sobrepor o sentimento ao pensamento, a intuição à experiência ou a arte à ciência. O pragmatismo oferece uma concepção de razão que é prática em vez de intelectual, que se expressa em que fazeres inteligentes e não em ditos abstratos. Em lugar do domínio de princípios universais imutáveis, estão a flexibilidade e a adaptabilidade como suas marcas distintivas. É a razão de Ulisses não a de Platão. Mas ambas são consideradas enquanto parte do mundo natural – no sentido em que reconhecem à ciência natural a autoridade suprema em assuntos sobre a natureza. Os pragmatistas são também materialistas – embora o seu materialismo seja darwinista em vez de newtoniano. À parte a história natural evolucionária, a biologia que os inspira é resultado de uma mudança (ocorrida consideravelmente na Alemanha da primeira parte do século dezenove) que atraiu as atenções da anatomia para a fisiologia, da estrutura para a função. O clima criado pelo romantismo na Alemanha talvez tenha fornecido um ambiente propício a esse desenvolvimento, mas a biologia vitalista, que fornecia suas metáforas orgânicas, nada mais era que uma precursora pré-científica, um tanto quanto embaraçosa, do tipo reconhecidamente moderno de biologia desenvolvida nos laboratórios alemães freqüentados por William James.

De fato, o romantismo quase não exerceu influência direta no pragmatismo americano – outro ponto de contrate com as várias formas de materialismo do século dezenove na Europa. Houve uma influência indireta, através do idealismo hegeliano (que foi particularmente importante para Peirce e Dewey), mas o racionalismo de Hegel foi-lhe tão importante quanto seu romantismo. O transcendentalismo de Emerson foi outro condutor de idéias românticas idiossincraticamente filtradas e transfiguradas. Essa variação do transcendentalismo era bem difundida, embora talvez não fosse dominante, no ambiente cultural de Boston, em que Charles Peirce, William James e Oliver Wendell Holmes Jr. (que também era um pragmatista, muito embora tivesse recusado o rótulo por associá-lo à tentativa “sentimental” de James de encontrar um lugar para a religião na visão moderna do mundo) foram primeiramente formados e claramente influenciou, de forma intrincada, seu pensamento. Mas os pragmatistas concebiam-se como continuadores da tradição filosófica iluminista de Descartes, Locke, Hume e Kant – todos esses pensavam que ser um filósofo significava ser um filósofo da ciência, entender sobretudo o que a nova ciência teria a nos ensinar não apenas sobre o mundo, mas também sobre nós mesmos, que o conhecemos e nele agimos. Os avanços científicos do século XIX vieram fornecer as correções necessárias para remediar as patologias conceptuais que haviam acometido os gigantes do iluminismo. Esses avanços, adequadamente entendidos, tornariam possível reconciliar seus dois impulsos elementares – o racionalismo e o materialismo – num irênico naturalismo empirista. Embora seguissem algumas diretrizes anti-iluministas da agenda romântica, por razões outras que as dos românticos, os pragmatistas sempre se consideraram como quem amigavelmente oferece emendas que auxiliem a missão filosófica fundamental de repensar certas idéias herdadas, tais como as de racionalidade, compreensão, ação e ego, sempre à luz da melhor compreensão científica contemporânea do mundo natural.

A Semântica Pragmática.

Porém bem mais importante que a constatação de sua resistência aos influxos românticos, é a observação de que o pragmatismo foi um movimento intelectual especificamente americano. O trabalho magnífico de Louis Menand, The Metaphysical Club: A Story of Ideas in America (1), ensinou-nos recentemente o quanto o pragmatismo é tributário de suas raízes históricas e culturais. Os próprios pragmatistas tenderam a situar e a motivar suas posições referindo-se à tradição especificamente filosófica. Afinal, todos eles (com exceção de Holmes) foram, ao menos em algum ponto de suas carreiras, filósofos profissionais. (No caso de Peirce, um filósofo profissional quase sempre desempregado – mas esse mero detalhe não altera a essência do que foi dito). Seus intérpretes, igualmente filósofos profissionais, geralmente acompanham também essa prática. O grande feito de Menand é ampliar o foco cultural e aprofundar o fundo de cena em que os pragmatistas atuaram.

O contexto apresentado por Menand estende-se muito além das considerações filosóficas e científicas esboçadas acima à guisa de introdução. Ele mostra o que mais existe na história das idéias além da história somente intelectual. A ascensão da democracia de massas, a predominância do capitalismo industrial, a profissionalização institucional da educação universitária e, mais genericamente, da cultura superior e a descentralização e mudança do centro de gravitação cultural do país para fora de sua sede original em Boston, tudo isso é mostrado como molde do desenvolvimento do pragmatismo a fim de estampá-lo indelevelmente como um fenômeno especificamente americano. Menand habilmente retrata as relações entre essas importantes forças históricas e as particularidades, peculiaridades e personalidades dos heróis do pragmatismo. Uma das peças fundamentais de sua argumentação concerne à significância da experiência da guerra civil para o nascimento e desenvolvimento do pragmatismo.

Antes da guerra, o debate político na região norte pautava-se pela oposição entre abolicionistas e unionistas. Os abolicionistas viam a escravidão em termos de princípios morais absolutos: a escravidão era um malefício e, portanto, o país deveria pagar qualquer que fosse o preço de sua eliminação – ainda que para isso fosse necessário separar-se do Sul a fim de manter-se a pureza da União. Os unionistas, por outro lado, reconheciam a maleficência da escravidão, mas alegavam que seria preciso encontrar meios de eliminá-la gradualmente, por um período de décadas, em reconhecimento dos interesses econômicos e culturais dos sulistas brancos, e assim manter a integridade da União. A secessão do Sul debilitou o argumento unionista ao unir os dois partidos como defensores da União. O ataque ao Forte Sumter tornou inevitável uma guerra que a maioria dos abolicionistas, tanto quanto os unionistas, não havia previsto, muito menos desejado. A terrível violência que seguiu-se daí transformou para sempre o pensamento dos rapazes da jovem geração de Harvard que partiam para a guerra cheios de ideais. Holmes, que havia sido um abolicionista convicto, foi gravemente ferido mais de uma vez. James não participou dos combates, mas dois de seus irmãos mais novos foram combatentes e um deles foi ferido gravemente. Peirce, como os demais, teve amigos e colegas mortos ou mutilados.

Eles viram na guerra civil, sobretudo, um fracasso monumental da democracia americana. As instituições democráticas das quais os americanos sempre se orgulharam, mostraram-se incapazes de lidar com assuntos tão incendiários quanto a moralidade e os interesses econômicos da escravidão. Insolúveis no plano político, as disputas degeneraram em conflito militar. Holmes, o mais próximo dos combates, também foi o mais explícito a respeito das lições que tirou de sua experiência e do efeito dessa sobre o curso de seu pensamento durante toda a vida. Tal como Menand descreve, “A lição que Holmes levou da guerra para casa pode ser sintetizada em uma única frase: as certezas conduzem à violência” [61]. Mas Menand também apresenta argumentos persuasivos de que uma dinâmica similar levou os outros fundadores do Clube Metafísico a extrair a mesma conclusão geral. O que estrangulou a democracia foi o compromisso inflexível e intransigente com certos princípios. O que era preciso à época era uma atitude diferente com relação a nossas crenças: uma atitude menos ideologicamente confiante, mais tenteadora e crítica; uma atitude que as tratasse como resultados sempre provisórios da inquirição dos dados, sempre sujeitos a teste experimental e a revisão à luz de novas evidências e experiências, como passíveis de obsolescência devido a alterações de circunstâncias, mudanças de contexto ou modificações de interesses. Embora a questão não seja assim colocada no livro, a guerra civil americana desempenha um papel na configuração do iluminismo pragmatista comparável ao desempenhado pelas guerras religiosas na formação do iluminismo europeu.

Menand apresenta argumentos bastante plausíveis para justificar como a atmosfera de idéias em que surgiu o pragmatismo foi insuflada pela experiência de convicções políticas passionais, que soterraram as instituições democráticas e resultaram, aparentemente de maneira inevitável, no tipo de carnificina absurda que Holmes presenciou (e conseguiu sobreviver) em Ball,s Bluff, Antietam e Spotsylvania. Mas Menand não é muito claro quanto a que tipo de conexão exatamente ele vislumbra entre esse ímpeto histórico e os conteúdos das teorias filosóficas que os pragmatistas vieram a sustentar. Algumas questões precisam ser separadas. Pois, ainda que admitamos que o pragmatismo não teria surgido sem a influência da guerra civil, dispomos ainda de uma mera condição necessária, que é de pouco auxílio na compreensão do pensamento a que deu origem. Afinal, uma das condições materiais indispensáveis para o surgimento do jazz – outro fenômeno cultural tipicamente americano – foi a enxurrada de cornetas baratas e outros instrumentos de bandas militares que sobraram depois da mesma guerra. Mas o conhecimento desse fato não dirá muito sobre o que faz da música algo especial.

Em primeiro lugar, o panorama que imediatamente surge das conclusões sobre o fracasso das práticas político-democráticas (mais ou menos) antibélicas envolve a questão de como alguém sustenta crenças básicas orientadoras de ações. O que exclui o compromisso, a acomodação e a adaptação recíproca é uma espécie de convicção inabalável que não tolera nenhuma oposição, não admite condições, ignora a possibilidade e a importância de conflito com outros princípios importantes, e não se preocupa com as conseqüências práticas de seu absolutismo perante os objetivos dos outros, possivelmente tão valiosos quanto os seus, ou ante a estabilidade da estrutura institucional da comunidade. Mas os pragmatistas não extraíram conclusões apenas sobre o ato de acreditar – em termos gerais, de que o falibilismo é uma atitude melhor que o fanatismo. O eixo de sua teoria filosófica era a abordagem dos conteúdos acreditados ou acreditáveis. Para extrair a essência explanatória da instrutiva e fascinante história contada por Menand, precisamos saber algo a respeito da possibilidade de se conceber o entendimento do ato ou da atitude de acreditar como determinante do entendimento dos conteúdos desses atos ou atitudes.

Novamente, mesmo ao nível de como as crenças devem ser sustentadas, a lição imediata parece referir-se a crenças políticas: as que usamos para orientar nossos empreendimentos práticos, particularmente aqueles que envolvem cooperação ou decisões sobre o que todos nós faremos. Não é óbvio que considerações relacionadas com nossos juízos a respeito dos aspectos admissíveis, desejáveis ou defensáveis de nossos compromissos prático-políticos devam também ser aplicadas a compromissos doxológicos e teóricos – que possamos transitar de afirmações sobre o que deveríamos fazer a afirmações sobre como as coisas são no mundo natural.

Se, tal como Menand persuasivamente argumenta, as idéias pragmatistas fossem de fato motivadas pelo espetáculo de princípios políticos abstratos e absolutos mostrando-se impalatáveis às instituições democráticas e conduzindo ao mais violento tipo de resolução de conflitos que se possa imaginar, não seriam eles culpados de estender ilegitimamente uma lição apropriada à esfera prática – das decisões sobre o que deveríamos fazer – à esfera teórica – das decisões sobre quais crenças são verdadeiras? Aqui está uma maneira de se pensar esse movimento. Na esfera prática da moralidade, o iluminismo europeu ensinou-nos que não precisamos considerar a autoridade de nossos princípios morais como derivada de uma conformidade com (ou de um reflexo especular de) uma realidade precedente, eterna e não-humana. Em vez disso, podemos, e assim deveríamos, pensar esses princípios morais como produtos de nossa própria atividade racional – como algo de que devemos nós mesmos, em última instância, assumir a responsabilidade. Tal como Kant coloca a questão em “O que é o Iluminismo?”, é pelo reconhecimento dessa responsabilidade que a humanidade deixa a época de tutela da autoridade paterna auto-imposta para entrar na fase adulta de maturidade autônoma. Um segundo iluminismo pode então repetir essa lição, só que agora no lado teórico. Fazer isso seria enxergar as normas para a crença, tanto quanto para a ação, como sendo construções nossas e nossa responsabilidade, sem que precisem refletir a autoridade de uma Realidade alienígena e não-humana, que acaba por assumir feições místicas, dispensáveis, e afinal de contas tão juvenis quanto as de Old Nobodaddy parecem ao erudito. Richard Rorty, inspirado por Dewey e James, vem insistindo em que essa é exatamente a concepção a ser exigida para a finalização do trabalho do primeiro iluminismo (2). Ele argumenta que a transição do pensamento sobre as normas morais em termos de mandamentos divinos para o pensamento sobre as mesmas em termos de pacto social deveria ser seguida por uma transição do pensamento sobre a verdade das crenças em termos de correspondência com a realidade para o pensamento da mesma em termos de acordo com os pares.

Essa concepção é vulnerável à acusação de que numa tal assimilação do teórico ao prático, suprime-se a distinção entre intenções e crenças. As intenções tem uma direção de adequação mundo-à-mente: o objetivo é o de que o mundo conforme-se a nossas atitudes. As crenças tem uma direção de adequação mente-ao-mundo: o objetivo é o de que nossas atitudes conformem-se ao mundo. Em seu trabalho clássico, Intention (3), Anscombe ilustra a diferença com a parábola de um homem comprando coisas relacionadas numa lista, seguido por um detetive com a atribuição de anotar em sua própria lista tudo o que aquele homem comprar. As duas listas ilustram as duas diferentes direções de adequação. Se o que é comprado não corresponde ao que consta na lista, no primeiro caso, o erro está no que se compra; no segundo, está no que é escrito (cf. sombras de lâmpadas e reflexos de espelhos). O primeiro iluminismo pode então ser visto como uma emancipação do uso inapropriado do modelo teórico-espectador na esfera prática – do equívoco de se pensar que nosso raciocínio sobre o que deveríamos fazer devesse, assim como nosso raciocínio sobre como deveríamos acreditar ser as coisas, refletir uma realidade antecedente cuja autoridade estabelecesse sua correção. A antiga representação empregara a direção errada de adequação para assuntos práticos; mas certamente seria um erro de interpretação tomar essa lição em sentido extremo, simplesmente virar de ponta-cabeça a antiga representação e tratar o teórico como se, a despeito de tudo, tivesse a direção de adequação apropriada ao prático; e, portanto, a mesma estrutura de autoridade e responsabilidade.

Mas os pragmatistas não fazem isso. Eles rejeitam o dualismo de uma esfera prática com uma única direção de adequação e uma esfera teórica com apenas a direção complementar. Eles começam com a idéia de um processo cíclico de intervenção e aprendizagem, de percepção de uma situação inicial, atuação sobre essa, e percepção do resultado, que leva a uma nova ação (inclusive à torção tanto dos fins como dos meios), sendo as voltas desse circuito repetidas até que haja convergência ou abandono. Isso é o que eles chamam de “experiência”. Para eles faz sentido falar de crenças e intenções apenas como fases ou aspectos abstratos desse processo. Nossas crenças têm conseqüências práticas e nossas intenções contêm condições teóricas. No empreendimento de inquirições reais e de projetos práticos, não se encontra uma direção de adequação sem a outra. Nesse plano, os pragmatistas não estão moldando o teórico segundo os modelos práticos, tal como essas categorias foram concebidas pela tradição, mas reconceptualizando ambos em termos de processos ecológico-adaptativos de interação organismo-ambiente do tipo sintetizado pela evolução e pela aprendizagem.

Mas o que dizer a respeito da outra acusação, a de que os pragmatistas deslizam de uma visão sobre como as crenças devem ser sustentadas (tentativamente, provisoriamente, negociavelmente) para uma visão sobre o que são as crenças – de uma intuição a respeito da atitude de acreditar para uma afirmação sobre os conteúdos acreditados? Uma vez mais, os pragmatistas (acompanhando as raízes hegelianas do pensamento de Peirce e de Dewey) buscam reconceptualizar a crença e o significado a fim de resistir aos dualismos de força e conteúdo, fazer e pensar, pragmática e semântica. Pode-se pensar sua estratégia como um desenvolvimento em duas fases. Primeiro, o acreditar ou o saber que as coisas são assim-e-assim (a categoria das atitudes teóricas, estáveis e explícitas que nos são características) deve ser entendido em termos de saber habilmente como fazer algo (a categoria das capacidades práticas, desempenháveis, implícitas, inteligentes ainda que não racionais, típicas de nossos primos mamíferos e de nossos ancestrais). A tese dos pragmatistas é a de que devemos estar aptos a fazer a fim de que se nos reconheçam como detentores de crenças conceptualmente substanciais. E sua resposta visa o papel daquelas crenças no raciocínio prático, a sua capacidade de servir como razões para uma ação. O segundo passo é oferecer uma espécie de funcionalismo aos conteúdos das crenças, uma abordagem do significado em termos do uso. Os conteúdos das crenças e o significado das orações devem ser entendidos segundo os papéis que desempenham em processos de adaptações organismo-ambiente inteligentes e recíprocas, em que a inquirição e a persecução de metas são aspectos que estão inextricavelmente entrelaçados. As estratégias funcionalistas (e mais recentemente, as teleosemânticas) predominam em filosofia da mente desde a metade do século XX. Mas os pragmatistas merecem o reconhecimento de ser os pioneiros dessas estratégias.

Se esse pioneirismo não é geralmente reconhecido, isso se deve em parte ao fato de os pragmatistas não terem alcançado o tipo de clareza da autoconsciência metodológica que lhes teria permitido separar a estratégia geral do funcionalismo quanto a relações entre pragmática e semântica (o que é feito com as palavras e o que elas significam ou o papel das crenças na economia comportamental de quem acredita e os conteúdos daquelas crenças) da tática conceptual específica que empregaram para desenvolver essa estratégia. E, nesse ponto específico, suas idéias apresentam sérios problemas. Pois eles oferecem uma semântica instrumentalista, abordam o conteúdo da compreensão em termos das condições de sucesso em vez de adotar as condições de verdade. Essa não é uma idéia disparatada. Mas, após um século de intenso trabalho em semântica filosófica, estamos em condições de reivindicar maior clareza sobre os critérios de adequação que tais abordagens devem atender e sobre as vias que podem conduzi-las ao erro. Desse privilegiado ponto de vista, podemos ver que o programa instrumentalista dos pragmatistas incorre em quatro erros distintos.

Primeiro, ao pensar o papel funcional da crença como interações recíprocas e harmonizações entre os que acreditam e seu meio-ambiente, os pragmatistas apenas olharam correnteza abaixo, para as conseqüências práticas das crenças. Isso significa dizer que eles olharam para o papel das crenças apenas como premissas de inferências práticas. Eles não olharam, em contrapartida, rio acima, para os antecedentes da crença, para o seu papel de conclusões de inferências ou de resultados de outros processos de formação de crença. Sob esse aspecto eles simplesmente inverteram a ênfase isolada na origem experiencial da crença, típica da semântica do empirismo tradicional. Mas cada uma dessas abordagens unilaterais da semântica deixa em aberto o outro aspecto complementar do papel funcional das crenças. Pois independentemente do fato de se considerar o papel das crenças como nó em uma rede de relações causais factuais ou de relações inferenciais normativas – as duas nuanças do funcionalismo – deve-se olhar tanto para os antecedentes como para as conseqüências.

O significado conferido a uma expressão devido a seu papel num jogo de linguagem pode ser identificado com o par de suas circunstâncias de aplicação apropriada, especificando-se quando ela é apropriadamente proferida, e as conseqüências adequadas de sua aplicação, especificando-se o que se segue adequadamente de seu proferimento (4). Nenhuma delas isoladamente é suficiente, pois os enunciados podem ter as mesmas circunstâncias de aplicação e conseqüências de aplicação diferentes; ou as mesmas conseqüências de aplicação e circunstâncias de aplicação diferentes. Como exemplo da primeira espécie, poderíamos regimentar o emprego de “prever” a fim de que o enunciado “Eu prevejo que vou escrever um livro sobre Hegel” é adequadamente asserido (a crença por ele expressa adequadamente adquirida) exatamente nas mesmas circunstâncias de “Eu vou escrever um livro sobre Hegel”. Mas esses dois enunciados têm sentidos diferentes, pois coisas diferentes decorrem deles, como fica claro se pensarmos sobre os status bem diferentes destes dois condicionais: “se eu vou escrever um livro sobre Hegel, então eu vou escrever um livro sobre Hegel” e “se eu prevejo que vou escrever um livro sobre Hegel, então eu vou escrever um livro sobre Hegel”. A primeira inferência, repercutente, é tão segura quanto poderia ser. A segunda, depende de quão bom eu sou em previsões (e se não serei atropelado por um ônibus). Para ver o segundo ponto, perceba que é possível saber o que decorre da afirmação de que alguém é responsável por alguma ação, ou de que a ação é imoral ou pecaminosa, sem que por essa razão considere-se compreendidas as afirmações ou conceitos em questão (captado o significado das palavras) no caso de não se saber nada a respeito das circunstâncias em que foi apropriado fazer aquelas afirmações ou aplicar aqueles conceitos. As teorias semânticas empiristas, verificacionistas, confiabilistas e assertibilistas são deficientes porque ignoram as conseqüências da aplicação de expressões em favor de suas circunstâncias. As teorias semânticas pragmatistas são deficientes porque cometem o erro complementar de ignorar as circunstâncias em favor das conseqüências. Mas, se bem considerados, os dois aspectos são essenciais ao significado.

O segundo erro que os pragmatistas cometem é o de olhar para o papel das crenças apenas nas justificações ou produções de ações. Porém, seu papel em justificar e produzir crenças adicionais é igualmente importante para a articulação de seu conteúdo, e não há boas razões para pensar que as últimas possam ser reduzidas a termos das primeiras ou ser nesses plenamente explicadas. Tentar definir os conteúdos de estados internos somente em termos de relações de outputs ao sistema (ou mesmo – retomando-se o último ponto – em termos de inputs e outputs) é uma estratégia amplamente behaviorista. E se há algo que aprendemos, nesses últimos quarenta anos ou mais, de tanto ruminar essas coisas, é que levar em consideração inclusive as relações de estados internos uns com os outros produz uma explicação mais robusta e plausível. Esse é precisamente o acréscimo explanatório que o funcionalismo tem a oferecer, em filosofia da mente, a mais que o behaviorismo. Embora o funcionalismo seja perceptível nas considerações gerais que motivaram a abordagem dos pragmatistas, quando desenvolvem suas idéias, eles o fazem em termos behavioristas, já que as diversas considerações similares ainda não haviam sido devidamente discriminadas e classificadas.

Mesmo que essas duas dificuldades da semântica instrumentalista dos pragmatistas sejam relevadas, confrontam-se eles com uma terceira dificuldade. Ao tentar transitar (da falha ou do sucesso) das ações aos conteúdos das crenças, eles ignoraram um terceiro componente necessário à equação: os desejos, as preferências, os objetivos ou as normas. Sua ação de fechar o guarda-chuva subscreve a atribuição da crença de que parou de chover somente contra o segundo plano anteposto pela pressuposição de que você não quer se molhar. Se, ao contrário, você tem aquele desejo de Gene Kelly de cantar e dançar na chuva, o significado daquela ação para uma caracterização do conteúdo de sua crença será muito diferente. E a questão é plenamente geral. As ações racionalizadas ou produzidas pelas crenças dependem dos desejos, objetivos e disposições a elas coligados (5). As condições de sucesso de nossas ações dependem do que queremos tanto quanto dependem do que acreditamos. A teoria contemporânea da escolha racional incorpora essa descoberta. A combinação dessa observação fundamental com o insight de que os conteúdos semânticos das crenças e dos desejos também estão igualmente fora de alcance (ao contrário da abordagem da escolha racional que os toma como dados, como inputs de seus processos) conduziu Donald Davidson a sua sofisticada versão interpretativa das abordagens estreitas do pragmatismo em semântica. Torna-se claro, em retrospectiva, que sem alguma reformulação estrutural semelhante, a estratégia pragmatista não funciona.

O quarto problema está intimamente vinculado ao terceiro. Pois embora os pragmatistas tenham falhado em apreciar a importância do fato de que os desejos possam variar independentemente das crenças, eles não ignoraram os desejos simplesmente. Antes, equacionaram o sucesso das ações com a satisfação de desejos e pretenderam atribuir às crenças que conduziam à satisfação e, portanto, ao sucesso uma propriedade especial e desejável: sua noção sucessora do conceito clássico de verdade. No sentido por eles atribuído, as crenças verdadeiras seriam aquelas que conduzem à satisfação de desejos. Mas as noções de desejo e de sua satisfação requeridas por sua estratégia explanatória são fatalmente equivocadas. Elas assumes inclinações imediata e conceptualmente articuladas com a forma criticada por Wilfrid Sellars (para o caso das crenças em vez do dos desejos) sob a rubrica de “o mito do Dado”(6). Pois, por um lado, os desejos são considerados tais como comichões e sede: pode-se questionar se os desejos nesse sentido não seriam satisfeitos simplesmente por tê-los, uma vez que, se alguém não é compelido a fazer algo, o desejo já está satisfeito. Se – colocando o ponto anterior entre parênteses – alguém pudesse inferir do sucesso de uma ação em satisfazer um desejo, nesse sentido, a verdade de uma crença, a estratégia semântica pragmatista seria correta. Mas os desejos que, junto com as crenças, desempenham um papel na racionalização das ações não são tais como a comichão e a sede. Eles têm a mesma espécie de conteúdos proposicionais conceptualmente explícitos apresentados pelas crenças. Não posso dizer apenas por ter sensações brutas que meu desejo de que a bola passe por entre as traves será satisfeito – sem falar de meu desejo de que o problema mecânico tenha sido resolvido ou de que tenham aumentado as chances de se alcançar a paz mundial. Pois descobrir se desejos dessa espécie foram satisfeitos é justamente descobrir que diversas afirmações são verdadeiras: que a bola passou por entre as traves, que o problema mecânico foi resolvido ou que aumentaram as chances de se alcançar a paz mundial. A satisfação desses tipos de desejos, que são elementos das razões para uma ação, não nos fornece uma porta de acesso imediata, não-conceptual ao domínio conceptual dos conteúdos das crenças. A única razão para pensar que se ganha fundamento explanatório começando-se com a satisfação de desejos (sucesso de ações) na tentativa de se explicar a verdade das crenças – isto é, a única razão para se buscar a estratégia instrumental em semântica – está na confluência dessas duas espécies de desejo. Pois para fazê-la funcionar seria necessário algo que fosse como uma comichão naquela espécie em que se pode dizer que essa foi coçada sem que haja necessidade de se decidir o que seria verdadeiro, e que fosse como um desejo conceptualmente articulado naquela espécie em que esse combina-se inferencialmente com crenças proposicionalmente substanciais para fornecer razões para uma ação. Mas não há nada que possa fazer as duas coisas simultaneamente (7). A concepção tradicional moderna de experiência como Erlebnis pretendia atender às duas formas. (Essa dificuldade é perpendicular àquela causada pela elisão do que Sellars chamou de “a notável distinção ar/ado” entre atos de experienciAR e os conteúdos experienciADOS.) É exatamente nesse ponto que os funcionalismos disposicional-causal e inferencial-normativo concordam. O desafio por trás da classificação do Dado como mito é uma questão que Kant nos ensinou a fazer: a experiência (ou o que quer que seja) meramente nos inclina (disposicionalmente); ou justifica-nos a fazer uma afirmação, a extrair uma conclusão?

De nosso ponto de vista privilegiado, localizado sobre o acúmulo de uma centena de anos ou mais, podemos ver que a estratégia semântica instrumentalista dos pragmatistas para explicar credenda em termos de agenda é defeituosa; e, portanto, também é defeituosa sua teoria do significado e da verdade. Obviamente, isso não significa dizer que eles não tiveram boas idéias, ou que não fizeram progresso nenhum, ou que não tenhamos nada a aprender com eles. Considero que também sabemos agora ser a estratégia semântica do empirismo lógico, que sucedeu o pragmatismo na filosofia acadêmica americana, igualmente inviável, e suas concepções de significado e de verdade também erradas. A questão aqui é que forjar, a partir dos insights de ambos, uma teoria que atenda com sucesso aos padrões contemporâneos, alcançados com enorme esforço e em grande parte por críticas às tentativas antecedentes, exigirá seleção, suplementação e reconstrução significativas. É um exercício bastante útil dividir as motivações dos pragmatistas, e as respostas conceptuais a essas motivações por eles elaboradas, em duas categorias: compromissos amplos, direcionadores e estratégicos de um lado; e, por outro lado, compromissos setorizados, executivos e táticos. (Exemplo do gênero: a ontologia semântica de Descartes divide o mundo em representantes e representados. Ele então preenche essa imagem com uma teoria em que os representantes seriam episódios imediatamente auto-intimativos e em que os representados seriam extensões em movimento. Mesmo nessa maneira de se colocar as coisas, esta é uma boa questão: sendo o seu paradigma da relação representante/representado a relação entre equações algébricas discursivas e as figuras geométricas extensas que elas especificam na geometria algébrica cartesiana, seria esse fato um compromisso genérico e estruturante ou parte de um preenchimento de tal imagem?) Minhas críticas dirigem-se sobretudo aos últimos: às formas mais detalhadas com que os pragmatistas tentaram justificar seus compromissos estruturalmente mais abrangentes.

Entre os aspectos mais amplos de seu pensamento os que considero positivos são os seguintes:

– Eles eram darwinistas, naturalistas evolucionários, que pretendiam reconstruir o mundo, a nós mesmos, e nosso conhecimento do mundo em termos disponibilizados pelas novas estruturas explanatórias típicas da melhor ciência [atualizada] de seu tempo.

– A serviço de um empirismo renovado que metodologicamente acompanhasse seu naturalismo em ontologia, eles desenvolveram o conceito de experiência como Erfahrung em vez de Erlebnis: tão situado, incorporado, transacional e estruturado quanto a aprendizagem, como um processo em vez de um estado ou episódio. Seu slogan poderia ser “Não há experiência sem experimento”. Representação e intervenção eram para eles os dois lados da mesma moeda conceptual – ou, de maneira menos imagética, conceitos de sentidos mutuamente dependentes, pertinentes a aspectos de processos que exibem a estrutura seletiva, adaptativa e comum à evolução e à aprendizagem.

– Eles apreciavam a prioridade explanatória da semântica sobre os temas epistemológicos – uma das grandes lições de Kant. Assim, procuram eles entender conteúdo em termos de experiência (como eles a constroem), isto é, em termos do papel na aprendizagem – rejeitam conceber a meta condutora como aquisição de conhecimento, tal como se essa fosse um estado estático e permanente, em favor da concepção de um processo dinâmico de adaptação.

– Eles compreenderam o caráter normativo dos conceitos semânticos: que eles devem subscrever juízos de correção e incorreção, verdade e falsidade, sucesso e fracasso. O instrumentalismo semântico acima criticado é a estratégia mais específica que os pragmatistas adotaram na sua tentativa de fornecer uma abordagem naturalista a essa dimensão normativa dos conceitos semânticos.

– Em semântica eles tentaram desenvolver teorias do conteúdo que não fossem mágicas mas, sim, científicas; em oposição a teorias das “idéias”, que são inerentemente receptivas a preocupações céticas quanto ao sucesso das idéias em se referir às coisas do mundo – da intencionalidade – mas não quanto a seu conteúdo. Os pragmatistas tentaram descobrir quais são as coisas que fazemos –contínuas às que criaturas pré-conceptuais podem fazer – que redundam em pensamento e conhecimento, ainda que de forma malsucedida. Ao pensar sobre os conteúdos dos conceitos que articulam estados intencionais, foram eles amplamente funcionalistas: visaram o papel que os estados relevantes desempenhavam na economia integral, sincrônica e evolutivamente comportamental de um organismo a fim de entender os conceitos que eles envolviam.

– Apesar de dar lugar de destaque em sua representação de nosso mundo à razão e à espécie de inteligência que em última instância resulta em temas teórico-científicos e tecnológicos, eles se deslocaram decididamente para além do intelectualismo e do platonismo que haviam infectado o primeiro iluminismo. Os pragmatistas privilegiaram o saber-como prático em detrimento do saber-que teórico em suas explicações.

Nesse nível de estratégias explanatórias bem gerais, percebe-se que falta aos pragmatistas partilhar conosco da preocupação filosófica com a linguagem típica do século XX – isso é o que mais os separa de nós – e com as descontinuidades impostas à natureza pela linguagem. As linhagens filosóficas dominantes nesse século estão embebidas do sentido de centralidade da linguagem: tanto a linha Husserl-Heidegger-Gadamer e as linhas estruturalista-pós-modernistas que se juntam em Derrida, como, por outro lado, a linha Frege-Russell, que passa por Carnap, Sellars, Quine e Davidson, incluindo Wittgenstein e Dummett. Em parte isso se deve ao assimilacionismo dos pragmatistas quanto ao conceptual: sua ênfase nas continuidades entre os usuários de conceitos e a natureza orgânica. Essa ênfase também tem boas credenciais e considero justo dizer que ainda agora não conseguimos distinguir adequadamente as tensões entre o assimilacionismo naturalista e o excepcionalismo normativista nas práticas discursivas que nos são mais características. Mas também considero que o caminho filosófico a seguir, a partir das idéias dos pragmatistas americanos, deve ser o de um pragmatismo lingüístico, aliado às contribuições do segundo Wittgenstein e da primeira parte de Ser & Tempo de Heidegger.

NOTAS:

1. Farrar, Strauss and Giroux, New York, 2001.

2. Ver o artigo de Rorty “Universality and Truth”, primeiro capítulo de Rorty and His Critics, Robert B. Brandom (ed.) [Blackwell Publishers, 2000].3. G. E. M. Anscombe [Cornell University Press, 1957. Reimpresso pela Harvard University Press, 2000]

4. Discuto mais detalhadamente esse modo de se pensar a semântica no primeiro capítulo de Articulating Reasons [Harvard University Press, 2000]

5. No capítulo dois de Articulating Reasons, desenvolvo um argumento em favor de uma construção inferencial do papel expressivo das afirmações de preferência ou disposições <pro-attitudes> e do vocabulário normativo em geral. Mas essa reconstrução não altera a constatação de que há ainda outro elemento em jogo, além de crenças e ações ou atitudes, cuja variabilidade mina a possibilidade de qualquer inferência direta a partir de coisas feitas a coisas acreditadas.

6. Em sua obra-prima, Empiricism and the Philosophy of Mind [reimpressão da Harvard University Press, 1997].

7. Dewey, ao menos, chegou a apreciar e a articular essa distinção crucial – mas mesmo ele não conseguiu perceber as conseqüências dessa distinção para as linhas mestras de sua própria diretriz metodológica.

© Robert Brandom da University of Pittsburg

Tradução de Jorge Luiz Pennafort Palma. Republicado do Centro de Estudos em Filosofia Americana

Marcos Carvalho Lopes

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