0

Fevereiros em Santo Amaro

Existem filmes que só se pode rever. Em alguns essa característica é um defeito: são aqueles filmes tão banais e repetitivos, que muitas vezes, quando estamos em casa, deixamos pela metade, nunva assistindo o fim e sabendo que pouco importa. Outros filmes te impactam de um jeito que te deixam sem palavras, esse silêncio precisa ser trabalhando, traduzido, lapidado… esse silêncio pede que o filme seja visto novamente. O documentário de Fevereiros de Marcio Debellian, que teve sua exibição pública na Praça da Purificação em Santo Amaro na noite do dia 31 de Janeiro, aposta na construção de um tipo de epifania que me deixa em dúvida se é possível aqui vê-lo, sem revê-lo. É que ao fim do filme, quando se volta pra casa, a cidade que foi retratada se presentifica como linguagem e ritmo: díficil que essa pulsação não se transforme em canção e que essa canção não traga junto a projeção do privilégio de viver Santo Amaro.

Esse tipo de epifania é um tipo de religação que a modernidade cultivou em diversas formas de arte. De repente, você sente que tudo ganha um sentido, como uma revelação do que sempre esteve alí diante dos seus olhos. No caso de Santa Amaro esse tipo de sensação quanto ao lugar é cultivada como orgulho de pertencer e fazer parte de uma comunidade, cheia de idiossincrasias, histórias em comum e invenção de felicidade. A sensação mentirosa da epifania ( e dessas descrições auto-indulgentes) não deixam de guardar alguma ironia, mas que não leva ao niilismo paralizante: é uma forma de seguir em frente recuperando o legado do melhor naquilo que é comum.

Neste documentário, Maria Bethania é descrita como uma pessoal que conseguiu sintetizar a formação católica com a vivência do candomblé, de um modo respeitoso e orgânico. Neste sentido, ela, como filha de Santo Amaro, ela “incorpora” a Festa da Purificação, de um modo que é neste espaço de fé múltipla que smpre busca sua religação com o sagrado.

Nesta direção, na resenha de um disco de Márcio Valverde, parti da premissa de que “existem pelo menos duas Santo Amaro: a de Caetano Veloso e a de Maria Bethânia. A de Caetano é aquela em que o demônio local desafia o poeta, tentando impor seus limites. O bom poeta precisa enfrentar esse “não” e nega-lo (dizer não ao não), fazendo-se maior, transformando o ressentimento em sua força. Como aparece em Verdade Tropical, é esta uma relação ambígua (o grego falaria em Prometeu, o Yoruba em Ogum e o Igbo em Agwu). De todo modo, ser herói tem seu preço e custo. Já Maria Bethânia cultiva outra relação com a cidade: religiosa, é Santo Amaro que a religa, lhe dá energia e senso de realidade (na forma de um bocado de canções, orações e amor à palavra).” Essa premissa, tomava os dois irmão como tradutores da cidade, porém o documentário Fevereiros mostrou que nesta duplicidade existe uma unidade de sentido. Como numa placa que existe em frente a casa de Dona Canô em que, de um lado a cidade celebra Caetano Veloso e do outro Maria Bethania: isso simboliza bem como os dois andam juntos. A voz de Caetano se junta com a sobriedade casmurra de Mabel Veloso (que com uma frase abala as teses mulatas mostrando o colorismo da supremacia branca: “era era considerada muito escura para ocupar lugar de anjo na festa”) para descrever, não somente Maria Bethania, mas a vida em comum neste lugar que traduzem, inventam e celebram.

O documentário faz uma ponte entre Santo Amaro e o Rio de Janeiro através do ritmo, da cadência e religiosidade de sua base cultural negra, que está na origem do samba. A vitória da Mangueira no carnaval de 2016, justamente quando celebrava Maria Bethania, cantando sua filiação a com Iansã/Santa Bárbara é descrita no documentário de uma forma encruzilhada: de repente numa esquina de Santo Amaro você passa para Marques de Sapucaí, de um modo mágico e orgânico. O ritmo e as imagens fazem isso… mas é preciso rever esse filme, talvez para o ver pela primeira vez. É que o lugar teima em escapar, teima em desafiar e pedir mais e mais traduções, canções, filmes, palavras… e que ainda é fevereiro em Santo Amaro. Depois do Carnaval, quem sabe…

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *