Severino Ngoenha, Carlos Carvalho e Luca Bussotti
Apesar das escatologias da Basiléia platónica, de A Cidade de Deus de Agostinho, da Cidade do Sol de Campanela, da Utopia de T. Moro, do melhor mundo possível de Leibniz, de O Capital de Marx a história de facto continuou impregnada de uma dialética hegeliana de luta de contrários (teses e antíteses) até que, com a da caída do muro de Berlim, Fukuyama pretendeu (ser?)o fim da história. Era um apocalipse (now) mais de Francis Ford Coppola que de João, o evangelista. O curto 11 de Setembro, feito da violência de kamikases, não propunha nenhuma antítese credível susceptível de pôr em causa a síntese final, como uma aparusia consumada. Hoje a questão é, a Rússia de Putin é uma tardia antítese histórica contra a tese liberal que, como fénix, faz renascer o espectro de Marx (Jacques Derrida) das cinzas da URSS do “eunuco” Gorbatchov ou é uma paranóica distopia anacrónica e retrógrada?
História era, para Heródoto (a voz pré-filosófica de Atenas e pai da antropologia para Lévi-Strauss) a via da sabedoria que consistia em viajar, investigar a fim de saber como as diferentes humanidades (nomois) davam razão à existência. O fundador da ciência histórica dava particular relevo à necessidade da viagem dos legisladores e dos juízes para que, através daquilo que os antropólogos chamam hoje de observação participante, pudessem, de retorno às origens (éclairage de retour), elaborar leis mais justas. Todavia, em pleno século do Iluminismo, Rousseau – na Origem sobre as desigualdades entre os seres humanos – critica e desconfessa as viagens europeias pelo mundo, porque imbuídas de um narcisismo que os impedia de ver a diversidade dos costumes e se transmutava na imposição das próprias leis e costumes, entre as quais a predação e a guerra.
Para Roma a sabedoria residia na capacidade do direito de fazer confluir (ecumene) pessoas de proveniência, crenças e raças diferentes; é a Concordia Romana de Lívio, que de facto já estava presente no primeiro livro da história de Roma, Ab urbe condita. O direito internacional moderno (desde os sábios de Salamanca Soares e Vitória até hoje, passando por Kelsen) usa e abusa, pretextualmente, da Ius predicanda evangelium (como substrato do direito) para impor – extra muros – as suas ambições de conquista, e se autoriza a Ius ad bellum (direito à guerra justa) contra todos aqueles que ousam reivindicar autonomia e justiça que o direito é suposto garantir. E’ a jurisdização da razão cínica (Sloterdijk), de um mundo feito de mestres e escravos (Hegel): de um lado temos o huxleyano Admirável Mundo Novo (com ciência, técnica, riquezas, desenvolvimento , liberdades políticas e sociais) que, por outro lado, se constrói nas costas de escravos e colonizados oprimidos, inevitavelmente acompanhados pela ignorância, miséria e fome; tudo sob vigilância permanente do chicote, e depois ditaduras teleguiadas, insurreições telecomandadas, golpes de estado, invasões militares, bombardeamentos, sanções econômicas (…).
O terceiro pilar do triunvirato axiológico do espírito ocidental é composto por Jerusalém, não a do vetero testamentário, mas daquilo que Agostinho chamou de Civitates Dei em nome do qual, o universalista Paulo de Tarso não hesitou a se contrapor ao judeu-centrista Pedro, em razão de uma catolicidade (universalidade) cristã que ia para além das tribos e barreiras judaicas.
O De dignitate hominis (Pico della Mirandola), e sobretudo a razão Iluminista, laicizou a axiologia cristã e traduziu os seus valores em liberdade, igualdade, fraternidade. Só que os dois últimos irmãos siameses foram assassinados e o que resta deles é exclusivo para o ocidente, que por sua vez não hesitou escrever as suas cartas liberais na negação da humanidade dos índios – para os holandeses – e negros – para os americanos – e hoje a erguer muros de cimento armado, impregnados de discriminação cultural, racial, económica contra todos os Condenados da Terra.
A teologia da história, desde a patrística, sobretudo com Agostinho de Hipona, e muito antes dos filósofos da história (Karl Lowith), formulou o conceito de Kairos, como sentido e direção universal da história. Dos iluministas (enciclopedistas e Kant) até Heidegger, passando pelos idealistas alemães, o kairos foi reduzido ao eurocentrismo sem o qual, nas palavras de Emmanuel Levinas, a história seria atabalhoada, sem rumo nem telos. No século mesmo em que a escola dos Annais libertava a história da tirania do kronos dos impérios, grandes nações, imperadores e ditadores, as ideologias messiânicas do século XX em oposição, se arrogaram demiurgos, fazedores da história com sentido escatológico e, ao mesmo tempo os seus militares intérpretes.
Foi da secretaria do estado do vencedor americano da guerra fria que se proclamou, logo depois da vitória sobre o inimigo socialista, a nova teleologia da histórica-mundo. Para Fukuyama essa vitória era escatológica, consumação dos tempos, súmula de tudo que, desde Herodoto, tinha caracterizado o pensar histórico da humanidade. Fazendo uma hermenêutica da derrocada socialista através da leitura hegeliana de Kojève, o ideólogo americano sentencia, apocalipticamente, o fim da história. Ele até era confortado por aqueles que mudam de camisa para estar sempre ser no bom lugar e se precipitaram a aderir à superestrutura ideológica vencedora: ex membros do Pacto de Varsóvia, partidos históricos como os comunistas italianos (de Gramsci, Berlinguer, Togliatti, …) e franceses (Maurice Thorez, Roger Garaudy, Althusser) que desapareceram do mapa político; Ortegas da teologia de libertação que se descobriram ditadores ou comissários políticos (guebuza) que se converteram à pecuniocracia.
Porém isso não era história, era o atrelar-se de pessoas, partidos, sociedades à nova ordem do discurso (Norman Fairclough). Os desvios heréticos ao novo dogma político-ideológico provém do apóstata Xi-Jinping – que pretende fazer um capitalismo-socialista, fazendo coabitar o liberalismo económico com a centralidade e controlo do partido comunista – e do petista Llula, adepto de um capitalismo distributivo.
Se até a Comédia de Dante, que era Divina, não conseguiu evitar a descostura (separação) post-mortem entre céu, paraíso e inferno, imaginemos a comédia humana guiada pelo liberalismo que, desde a sua génese (revoluções liberais) é um confesso adepto de uma liberdade – só para alguns homens e nações – órfã da igualdade e da fraternidade da Revolução Francesa. O fim da história liberal só pode viver nas discrepâncias radicais entre pequenas Atlântidas de felicidade, muitos purgatórios (de pequenas economias subservientes) e miríades de corpos a queimar no inferno da miséria. Depois da abdicação gorbashoviana, o liberalismo acrescentou o prefixo “neo” na sua gramatologia para justificar o sufixo económicista que, de uma maneira científica (Thomas Piketty) e divulgativa (revista Forbes), tem demostrado: uma ulterior concentração das riquezas do mundo e das nações nas mãos de um cada vez mais pequeno grupo de bilionários, e uma discrepância sempre crescente entre as elites e a matula de miseráveis do mundo.
Todo e qualquer Lula ou Dilma, com veleidade de redistribuição, é apostrofado e perseguido como um inimigo a abater; todo Xi-Jinping que pretenda compatibilizar o capitalismo com a justiça distributiva é considerado inimigo do liberalismo – económico e pouco político – ciumento da ditadura da liberdade de indivíduos mas avessa à igualdade e à fraternidade.
Se a manipulação dos humanos pensada pela distopia de Huxley estivesse já em acto, com uma pílula a provocar felicidade na miséria, os problemas estariam resolvidos. Natura non facit saltus, felizmente. Antes que as big farmas façam lucro com essa droga, os pobres dos purgatórios e infernos do mundo, mesmo nos subúrbios e periferias das atlantidas de felicidade, não se conformam com a danação e continuam buscando mordicus, e de formas diferentes a igualdade: ressurgem PODEMOS na Espanha, Camisas Amarelas na França, novas esquerdas na América latina, movimentos anti-imperialismo francês na África Ocidental, malemas anti-Apartheid económico na África do Sul e até pobres pro trumpianos, desiludidos de ter sido excluídos da eudemonia dolarocrática da nova América neo-liberal.
Neste marasma generalizado de bocas e estômagos vazios, os radicalismos encontram terrenos férteis para proliferar e implantar as suas ideologias. Quando aconteceu o 11 de Setembro, o anti papa Samuel Huntington, cujo evangelho relativista (contra o falso universalismo de Fukuyama) tinha até então sido condenado ao silêncio, de repente, ressurgiu: não era o fim da história porque no lugar do inimigo socialista infiltrou-se o latente conflito de civilizações, não a dos obesos contra a dos esfomeados, mas aquele, histórico e longo, que rima com a diversidade de crenças (cristianismo contra islão, catolicismo e protestantismo versus ortodoxia), de história política (democracia contra o totalitarismo).
O fim da primeira guerra mundial viu a criação da Sociedade das Nações, com o americano Woodrow Wilson a jogar um papel preponderante. O fim da segunda guerra levou à criação da ONU, com o americano Franklin D. Roosevelt a assumir um papel importante. No fim da guerra fria, Boutros Boutros-Ghali pensou, erradamente, que os tempos estavam maduros para uma nova ordem mundial, mais solidária, mais inclusiva, mais participativa; os africanos queriam deixar de ser figurinos em dramas protagonizados por outros, como se lhes pede de novo hoje. O democrata Bill Clinton (o mesmo que em Durban – para dar um ar da sua graça – pedira perdão pelas políticas americanas (só) do passado), exigiu a sua cabeça: quem era aquele pequeno faraó para impor uma nova ordem mundial aos vencedores? mais tarde foi a cabeça de Lula, o proletário – pequeno Marx – apóstolo de um Brasil menos desigual que, sobretudo, ousava combater a miséria. Este pecado grave mais do que a venial forma do regime político – a Europa e o ocidente aceita e coabita em muitas partes do mundo com ditaduras, teocracias mas não com a igualdade e a justiça – risca fazer da China a verdadeira anti-história do século XXI.
Eis-nos diante de um aporético ocaso histórico, um fim da história que roça e se aparenta a uma nova ordem mundial de globalização de riscos ( Ulrich Beck) que se constrói numa contínua produção e partilha de riscos – virológicos, ecológicos, militares – mas relutante em partilhar as suas benesses. E’ uma ordem mundial compulsiva, com programas de ajustamentos estruturais, sanções económicas, golpes de estados, intervenções militares (sempre em nome da liberdade e democracia) alargamento da OTAN/NATO, braço armado da supremacia ocidental (comandada/dominada pelos EUA).
A maioria dos países africanos votaram pela neutralidade na guerra da Ucrânia, não por indiferença à brutalidade da guerra, não por considerarem o sofrimento dos ucranianos menos dramática que o sofrimento dos seus povos, nem sequer por conivência com Putin e o seu regime. Todavia, é indecente pedir a vítimas da grande turbulência – de balas, de golpes de estados, de bombardeamentos, de fome, de miséria – para condenar a brutalidade da guerra só quando é praticada na Europa e sobre populações brancas; isso equivale a pedir-lhes para caucionar a existência de uma diferença antropológica entre eles e os europeus. E’ arrogante exigir aos africanos um (re)alinhamento numa nova guerra entre a Rússia e os Estados Unidos, países que já capitanearam a guerra fria a que os africanos, desde Bandung, não quiseram alinhar, mas foram forçados a fazê-lo, pagando depois com os seus territórios transformados em campos de batalha da parte quente da guerra, um preço elevado.
O joelho racista e policial do ocidente sobre os nossos pescoços impede-nos de respirar. Mesmo quando gritamos, floydianamente I can not breeth eles são indiferentes à nossa morte (Mandela). E’ surpreendente que no nosso estado de sufoco, nos agarremos a tudo o que de perto ou de longe se parece com oxigénio e boia de salvação, mesmo quando provém da Rússia de Putin? A posição dos africanos tem que ser vista não como um apoio ao não-democrático Putin, mas como uma condenação moral da razão (joelho) cínica e opressiva do ocidente.
Em suma, talvez os dois ideólogos do pentágono tenham ambos razão. A história acabou desde que, contra o Heródoto de Atenas, ela deixou de ser busca sábia sobre a maneira como diferentes nomois dão razão à própria existência e passou a ser uma propaganda e imposição da maneira ocidental (depredadora) de estar no mundo e (opressora) de estar com os outros; a história acabou desde que o direito passou a ter dois pesos e duas medidas; desde que Jerusalém retribalizou e abandonou a ideia Paulina da catolicidade.
Mas Huntington também tem razão porque a história não se pode reduzir, fukuyanamente, a uma confrontação ideológica. Mas se ela continua, também não é por razões de conflitos civilizacionais do passado – infelizmente não ultrapassados – mas porque nenhuma opressão ou dominação pode impedir que, em qualquer locos humano, alguém se erga – oxalá sem os aviões de 11 de Setembro, nem as bombas de Putin – para dizer que outra história é desejável.
O que seria a filosofia se não se fizesse arauto desta Basiléia humana: Ubuntu e Ujaama – mundos a infieri a construir?
Severino Ngoenha, Carlos Carvalho e Luca Bussotti