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FILOSO (MOÇA)FEMAS – A TORRE DE BABEL

Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

De 26 de Setembro a 1 de Outubro a Nabucodonosoriana Torre de Babel vai transferir-se da Babilónia (onde os historiadores acreditam que tenha  sido construída) para a Matola.

A história daTorre de Babel interpelou todas as religiões monoteístas, originou obras literárias, pictóricas, cinematográficas, suscitou interesse e curiosidade de teólogos, exegetas, arqueólogos, historiadores, e a sua real (ou suposta) arquitetura babilónica, figura entre as sete maravilhas da humanidade. Porém, não é essa dimensão luminosa da torre que se transfere para a Matola mas a sua parte sombria, a pretensão estratosférica do homem e  o consequente mito fundador  da desordem da multiplicidade de línguas (e linguagens e a dispersão desigual da humanidade pela terra/País), que escolheu morada (oxalá só provisória) entre nós.

O que interpela e suscita pavor não é, in primis a Torre (a torre do partidão está, como devido, na Sommershield) mas a confusão do loquere politico  (falas/idiomas) que, contrariando as definições dos linguistas, se apresenta como um sistema  desregrado e  de axiologia (valores)  cacofonizado pela disputa de interesses; monólogos e politógos que não fazem diálogos, não congregam, e por isso mesmo não podem justificar um congresso. Como releva a escritora inglesa Antonia Susan Byatt no romance Babel Tower (1996)  “se os valores da linguagem não são compartilhados, é ilusório pensar que os indivíduos, pelo simples facto de falar e até falar juntos, se possam entender“.

O que interpela e suscita tormento, é a progressiva transformação da dispersão da população pelo território em desigualdade  e em focos de divisão e separação (tribalismo, regionalismo e outros negativos -ismos…).

O que interpela e aflige, é continuarmos submetendo a nossa economia, os nossos projectos de desenvolvimento, o nosso futuro a sonhos faraónicos (aliás, nabucodonosorianos)  da exploração do carvão, gás, petróleo sem o mínimo de quadros nacionais (recursos humanos) e sem termos resolvido problemas primários de agricultura de sobrevivência, habitação minimamente condigna ou, até, latrinas para o saneamento…

O filme Metropolis de Fritz Lang, de 1927, joga com o tema  da falta de comunicação entre os projecionistas da Torre (elites politicas) e os trabalhadores (povo) que a estão construindo. Numa curta cena, o filme mostra como as palavras usadas pelos seus projecionistas para glorificar a construção da torre (a Frelimo é que faz, a Frelimo é que fez) assumiram significados totalmente diferentes e opressivos para os miseráveis trabalhadores (com salário mínimo, ou até menos). Isso levou à sua destruição (e em Moçambique a descontentamentos), uma vez que se levantaram contra os designers por causa das condições de trabalho insuportáveis.

Qualquer profano ou apócrifo exegeta (ou hermeneuta) sabe que não se deve interpretar ad literam a narrativa bíblica de Gen 11, 1-9 (e a Bíblia em geral) como se fosse um relato histórico, uma crónica jornalística, mas buscar nela, etiologicamente, o sentido e significado que a metáfora pretende transmitir. É o que já dizia o velho Galileu Galilei diante do Papa Urbano VIII e do Cardeal Belarmino, “a Bíblia não nos diz como é feito o céu, mas como se vai para o céu”.

Se uma leitura literal nos levasse a imaginar um improvável receio de Deus diante de arranha-céus, teríamos o direito de nos questionarmos quanto à sua demiurgia. Como se sentiria esse “pequeno deus” perante as pirâmides do Egipto, o prédio de 33 andares de Maputo, o Top of Africa de Joanesburgo, o Empire State Building de Nova Iorque, para não  falar  das hodiernas desmesuras de Dubai, apostado a ganhar o ‘guiness’ das alturas? O que sentiria esse minúsculo teos perante drones e aviões de engenheiros aeronáuticos, que voam mais alto que qualquer obra de arquitectura; perante foguetões que há mais de meio século frequentam os céus ou hoje o SpaceShip Two de Richard Branson, o New Sheppard de Jeff Bezos, o SpaceX  de Elon Musk usados até para fazer turismo  espacial ?

Do que sabemos – desde as viagens de Gagarin e Armstrong – é que o céu é diferente da terra do ponto de vista geofísico e da composição dos elementos, mas também que essa diferença modifica as possibilidades físicas e as acções dos homens; uma vez que lá em cima eles são mais ligeiros, com uma gravitação que lhes permite flutuar, com uma vista  homogénea do mundo (do planeta Terra), sem países, fronteiras, raças. Até os americanos, Russos, Chineses, e Europeus que na terra andam sempre à bulha – com estratégias e interesses (Adam Smith) ucraniamente diferentes – lá em cima se redescobriram darwinianamente da mesma espécie, e se solidarizam marxianamente (terranos do Mundo inteiro, uni-vos), a ponto de terem criado (diferentemente do machin / coisa da ONU na terra, como lhe chamava De Gaule) uma estação internacional na qual todos cooperam e falam Esperanto, verdadeiro nome do inglês internacional.

A decisão (pouco divina) de Deus, em confundir os homens com a cacofonia de línguas, deve ser percebida no sentido metafórico senão, que omnipotente seria um Deus que temesse uma sobreposição de pedras para a construção de torres, a ponto de abandonar a divina linguagem adâmica (Dante Alighieri/ De vulgari eloquência) para provocar a confusio  linguarum (confusão de línguas) entre os humanos? Uma vez que o vétero testamentário – onde aparece a história da torre de Babel – é prolífero em nomes de deuses (Yahweh (Jeová/Javé) Elohim, Abba, Adonay…), nos seus atributos ontológicos (criador, omnipotente, omnisciente, omnipresente …) e, sobretudo, nas suas qualificações morais (misericordioso, justo, bondoso…), qual das múltiplas imagens de Deus decidiu tomar morada (mesmo se provisória) na Matola?

Michael Oakeshott que pesquisou as variações históricas da Torre de Babel em diferentes culturas e produziu uma versão moderna de sua autoria em seu livro On History (1983); expressa desdém pelos novos habitantes da torre (mesmo sem conhecer os nossos) e atribui o seu comportamento ao fascínio pela ganância e a falta de autorreflexão, características que a demonologia atribui aos anjos decaídos (imersos no conflito entre o bem e o mal), aqueles  que outrora estiveram do lado da Liberdade e da Justiça mas que, um  equivocado uso do liber arbitrium (lutámos – nós que lutámos – para ser ricos), levou-os a abandonar o Bem e optaram pela gula (Balzabu), pela avareza (Mamon), pela ira (Azazel), pelo orgulho (Lúcifer), pela luxúria (Asmodeus), pela inveja (Leviatã), pela preguiça (Belfegor).

Após uma longa e heróica resistência e guerra contra o imperialismo português (como os hebreus contra o egípcio), caminhando no deserto das dificuldades (cacofonias internas e ingerências externas), sentindo a falta do líder Moisés (Mondlane ou Machel), usurpando o nome do povo, que já tinha sucumbido 500 anos sob projectos escravagistas dos faraós e/ou portugueses, a elite cedeu à aliciamento e ao fascínio dolarocrático. Elegeu uma liderança já cooptada, os nossos sucessivos Arãos que ordenaram: “façam-nos um Deus que caminhe à nossa frente“ (Ex 32,1), “tirem os brincos de ouro das vossas mulheres, filhos e filhas (povo), e tragam aqui“ (Ex 32,2). Com o luxo da (para a) minoria dominante fizeram a estátua de um bezerro de ouro. Desencadeou-se então uma cascata de idolatria; construíram um altar e pararam de marchar no deserto rumo à terra prometida (liberdade). Ao invés de se levantarem e encabeçarem a marcha do povo para caminhar e lutar pelos seus direitos, como na demonologia dos anjos decaídos sentaram-se, não para se reunir / fazer comunhão / comunidade, mas, levados pela concupiscência,  para se divertirem, comer e beber, o que apregoa o sistema (capitalista) de morte da maioria. Era a recaída no sistema do imperialismo egípcio/português/banco-mundialista. Era a recaída e assimilação dos ídolos que tanto nos oprimiram: o modus vivendi  do Egipto/ eurocentrismo opressor.

Porém, a idolatria do bezerro é um separador de águas. Apesar das Chissanadas com fachada de honestidade – e guebusi-nyusianismos descarados – a idolatria do bezerro é um encerrar-se na concha do egocentrismo, é a instauração de políticas genocidas que causam morte e retrocesso em todas as partes e áreas. Parte das elites (banco-mundialistas, percentualistas, bustanistas) não somente adora o bezerro de ouro, mas também „hostes no céu „( 1 Rs 22,19;  Jr 7,18; 18,13) o que denota estrelas e outros corpos celestiais que governam os seus movimentos (At 7,42).

A Torre de Babel desabou por causa da incompreensão entre os construtores, as torres gémeas por aquilo que Huntington chamou de choque de civilizações. O nosso  Moçambique sonhado (Mondlane, Machel, Marcelino) está como os glaciares do Antártico a descongelar/fundir, à vista desarmada, mas nós, apesar dos Idais e kénedys (económicos, militares e sociais) continuamos hipocritamente cépticos às mudanças climáticas/políticas  devido a um misto de obedecionismo, subalternismo, apimentados  pela diabólica concupiscência.

Jorge Luis Borges escreveu a Biblioteca de Babel. Este livro, essencialmente metafísico, fala de uma realidade em que o mundo é constituído por uma biblioteca infindável, abrigando uma infinidade de livros. O narrador, um dos muitos bibliotecários, supõe que os volumes da biblioteca contêm todas as possibilidades da realidade. Alguns não fazem o menor sentido, ou o fazem usando ideias há muito abandonadas (unidade, trabalho, vigilância). Outros são meras repetições de um mesmo sintagma (“nosso povo”, “do Rovuma ao Maputo”, “futuro melhor”, “a Frelimo é que fez”).

Entre as várias interpretações possíveis do conto de Borges, uma dá conta que se trata de uma grande metáfora em que mundo e literatura se confundem. Ler um texto é tentar decifrá-lo, mas se considerarmos que o próprio mundo está impregnado de linguagem (camaradas milionários e povo miserável), a própria realidade pode ser considerada como uma grande biblioteca cheia de textos à espera de quem os decifre. É aqui que os jovens que vão ao congresso têm a possibilidade (efémera, débil) de resgatar os valores que construíram o nosso sentimento de moçambicanidade.

Eles são a nossa esperança de restaurar o magnífico sonho que foi (é?) Moçambique. Mas só o farão se invés de se investirem da missão de uma falsa intelectualidade orgânica (Gramsci), num órgão (partido) promíscuo e em desfalecimento moral; se em lugar de nhangumelianos discípulos da mortificante torre efémera da pecunocracia se erguerem – quão dignos continuadores dos ideiais da FRELIMO de 1962 e 1975 – com vontade firme de resgatar a luta para libertar a terra (do Rovuma ao Maputo) e os homens (todos os moçambicanos), sem distinção de raças, crenças, etnias ou regiões.

Ah, quanto era grande, foi grande e pode ser(?) grande o sonho (romântico) da pequena e aconchegante pedra angular  (séria, honesta, solidária, moral) da nossa Torre ainda por construir, Moçambique por todos, de todos e para todos!

Porém, sem lideranças autênticas – politicamente competentes, tecnicamente capazes e moralmente honestas – a marcha libertária não pode prosseguir…

Marcos Carvalho Lopes

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