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FILOSO (MOÇA)FEMAS – (O) Crystal  Palace

ensaio de Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

Numa espécie de rêverie rousseauniana de 150 páginas, Driss Chraïb pinta um quadro literário de uma transmutação improvável da tradição versus a modernidade. La Civilization, ma Mère (1972) é a história de uma senhora modesta que se transfigura, do ser ao ter; encarnada por uma mãe órfã, transformada em doméstica e casada muito cedo com um homem muito mais velho. Esta mãe simples, guardiã das tradições do Marrocos dos anos coloniais, sofre uma importante metamorfose graças aos seus filhos que a iniciam na civilização através dos seus aspectos e tentações (luminares) – viagens, literacia, emancipação, gosto pela  liberdade – que vão fazer dela uma activista a favor da modernidade. Perante a fulgurante transfiguração da esposa, o velho marido, que até então era o arauto da modernidade familiar, vê-se regredido ao estatuto de tradicionalista.

O texto foi ambientado nos anos trinta, época em que, nos Estados Unidos, Harlem estava em voga e, na esteira do Renascimento Irlandês, militava por um Renascimento negro, um twoness (L. Hugues), mestiçagem entre a tradição e a modernidade. Em Paris, Senghor, Césaire e Damas davam os primeiros passos (ainda no Estudante Negro, com Étienne Léro) do movimento da Negritude.

Chraïb apresenta à sua mãe a modernidade como uma civilização idílica, desprovida de todo e qualquer aspecto negativo, muito longe das dúvidas de W.E.B. Du Bois – que denunciava na América uma civilização materialista interessada unicamente por dólares – mas sobretudo de Cheikh Hamidou Kane que, por boca de uma outra mulher, a Grande Royale, levantava dúvidas quanto ao bem fundado da modernidade europeia, que ela apostrofou de ‘arte de ganhar sem ter razão’.

Mas o grande ludíbrio é que os filhos em nenhum momento dizem à mãe que o Crystal Palace (a modernidade) é um clube privado, no qual os donos se reservam o direito de admitir quem querem; nem dizem à pobre senhora que, por muito que ela se sofistique – estude e se emancipe das suas tradições marroquinas, árabes – muçulmana e africana que ela é, nunca será admitida no elitista Crystal Palace.

O modesto clube inglês que ostenta o nome de Crystal Palace foi originariamente conhecido por Glaziers (vidreiros), em alusão aos seus fundadores e construtores do Palácio de Cristal que serviu de palco à Great London Exposition (Exposição Mundial de Londres) de 1862.

Peter Sloterdijk (fenomenólogo alemão, considerado um dos grandes renovadores da filosofia contemporânea), depois de ter provocado uma grande polémica com a publicação da palestra sobre as “Regras para o Parque Humano” – relacionado com o destino do ser humano na época da bioengenharia – intitula o seu livro sobre a globalização (que ele considera como a afirmação unilateral de uma Europa em expansão pelo planeta) “Palácio de Cristal” (2004).

Segundo o filósofo alemão, este edifício vitoriano que “visava abarcar o mundo exterior numa interioridade circunscrita, protegida e dotada de um clima artificial”, faz dele a profecia do mundo actual dominado pelo ocidente que, através das suas obras filosóficas, políticas, literárias, espirituais se imagina uma bolha, que o mantém ao abrigo da história e o protege das vicissitudes exteriores.

Para  Sloterdijk, o escritor Russo Fedor Dostoiévski foi o primeiro a compreender e a formular este devenir-mundo da era da globalização, em seguida à sua visita ao palácio (de cristal) da exposição universal de Southern Kensington (símbolo do triunfo do construtivismo  e da modernidade primitiva) onde apreendeu imediatamente, as incomensuráveis dimensões simbólicas e programáticas do palácio.

Antes da sua visita a Londres, Dostoiévski tinha lido – como a maior partes dos intelectuais russos da sua geração – o romance de Nikolai Chernyshevsky (“O que Fazer”  – 1863). Figura do ocidentalismo russo, Chernyshevsky pretendia, na esteira de Pedro, o Grande, construir um segundo Castelo de Cristal que  integraria a totalidade da vida social numa grande construção, onde a história seria abandonada  a favor do controlo generalizado da vida. Neste Palácio de Cristal reinaria uma eterna primavera de consensos, pré-anúncio do homem novo que, uma vez resolvida a questão técnica do social, viveria num palácio comunitário de vidro e metal.

Associando as impressões negativas que lhe tinham provocado a leitura de Chernyshevsky  e a visita que fez a Southern Kensington, Dostoiévski formulou as primeiras críticas ao modernismo; ele descobrira que o mundo Ocidental estava em vias de se transformar numa gigante esfera, onde o metabolismo absoluto tornava o conteúdo vital e primário. Este pioneiro da crítica da modernidade, intitula um dos capítulos do seu livro “Baal”, nome da divindade conhecida pela sua capacidade de devorar os homens. O culto do Baal é o consumismo a favor do Deus-capital e tem no palácio de Cristal a sua própria Catedral e na metáfora do capitalismo, mas também do comunismo da sociedade pós-luta de classes – que serviu de inspiração a toda uma geração de revolucionários nomeadamente Marx, que aprendeu o russo para ler “O que Fazer” na língua original e Lenine, que leu a obra cinco vezes antes da revolução de Outubro – a nova escatologia como dogma do consumo.

O comunismo, pré-post-luta de classes, alargou-se até rebentar pelas costuras, devido (entre outras razões)  à gulaguização siberiana  dos seus sujeitos que pecavam por continuar a conceber a história como o  espaco dialéctico da luta pelo sentido. Do outro lado do Baal, não obstante as catástrofes das guerras passadas e presentes (consideradas simples acidentes históricos), a elaboração desta construção enorme progride com  a integração (anexação) da(s)  Alemanha(s) e o resto do Leste europeu, como anexos da grande construção de vidro – em conflito com o antitético palácio gémeo – ao mesmo tempo se erguem muros de betão, culturais e económicos contra os (talvez até na animalidade/humanidade) concebidos como radicalmente outros…

No Livro “Entre le cristal et la fumée” (1979), o biólogo Henry Atlan explica que o palácio de cristal supõe uma grande fumée. Enquanto o cristal conota um estado de transparência e rigidez, a fumée, para além do impacto mortal, é o caos (do Iraque, Libia, Mocambique, Ucraina…) que não deixa traços e nunca toma forma. A modernidade – de esquerda ou de direita, americana ou russa – são espaços bi-dimensionais, com o Palácio de Cristal e a fumée ( e excrementos) no seu exterior…

Intra murus (no interior do Palácio),  “The Good Society” – Walter Lippmann (1937) – que de um lado,  organiza, pragmaticamente, as condições de uma adaptação permanente dos homens e das instituições em relação aos movimentos de ordem económica, fundada sobre a concorrência generalizada, e confia o poder a uma elite competente (lideres, peritos, propulsionados pela manipulação da pelos médias de massa), indiferente às paixões (e  sofrimento) do povo; do outro lado, as massas obrigadas a aderir às escolhas, doravante necessárias, da mobilidade, flexibilidade, de adaptação aos dados económicos. As desigualdades que daí decorrem são naturais, como reza o darwinismo social (Barbara Stiegler) .

Extra murus – na danação de sujeitos amorfos, no reino do caos político e social pensados, programados e alimentados – non salus; os sujeitos subalternos podem fazer da sua subalternidade uma teoria epistemológica, desde que não saiam da sua posição de subalternos.  Os dependentes podem transformar a própria situação numa teoria crítica (Samin Amin), na condição que permaneçam existencialmente nela. Os pós-coloniais – mas ainda colonizados – podem se constituir em escola crítica, na condição que se subordinem ao estádio actual  da colonialidade. O importante é manter, uns e outros, sob a alçada do duplo Odeur du Père (Mudimbe): filosoficamente  com aparente (nietzchiano) desdém ao castelo (mas  ávidos de comprar o acesso que não lhes pode ser permitido) sem que a modernidade traia a sua essência dual e maniqueísta. Na política, o perpetuar  de regimes autoritários, impostos e tutelados – golpes de estado, intervenções militares, sistemas de dívidas eternizantes, sanções económicas, migrações de talentos e mão d’obra – na grande (meta-) narrativa moderna (cheia de escravos, colonizados, oprimidos, descartados) do duplo princípio da realidade como epifenómenos. Neste sentido, a narrativa moderna,  nas sua vertentes liberais ou marxistas, apresenta-se como um pensamento fraco (Vattimo). A Europa pós-guerra, por quanto admirável, é um Palácio de Cristal que releva de  um pensamento fraco, uma micro narrativa que só admite no seu seio católicos e protestantes, e exclui, huntingtoniamente, ortodoxos, muçulmanos, pretos (…). Mas sobretudo, é uma Europa  OTANizada, que se constrói em nome de uma nietzcheana vontade de potência. Por isso, surpreender-se com a guerra hoje na Europa  (um dos maiores produtores de armas e instigador e fazedor de guerras pelo mundo fora) é revelador do espírito maniqueista e da razão cínica (título de um outro livro de Sloterdijk). Com o seu histórico (passado-presente) de fazedor e exportador de conflitos (políticos, económicos e militares) o que devia de facto surpreender, não é que a Europa Leviathana e “civis ad bellum”, seja assolada pela guerra, mas que a guerra (produto mais rentável das suas exportações comerciais) tenha (injustamente) chegado a ela só agora. Pode se criar e prosperar numa civilização de violência e guerra e estar-se, ad eternum, protegidos dela na bolha  confortável do castelo? O que assistimos hoje na Ucrânia não serão os limites do sadismo dos castelãos felizes?

O campeão da desconstrução da falsa universalidade do Iluminismo, Jacques Derrida, na sua “Lettre à la vieille Europe”, invoca a sua dupla memória, a ‘luminosa’ (a ideia da filosofia, da democracia, o Iluminismo, a secularização) e a ‘sombra’ (mémoire nocturne), a história dos seus crimes, as formas de hegemonia, o colonialismo, os totalitarismos; porém,  é ainda a ela (à Europa da dupla memória) que ele recorre, quer para se contrapor à hegemonia americana (que não respeita o Direito Internacional), à teocracia fundamentalista, à China;  quer  para construir o  alter- mundialismo.

Derrida é ainda demasiado eurocêntrico para aceitar que a Europa,  que ziguezagueia entre um universalismo etnocêntrico e um pensamento vattianamente fraco (étnico/rácico),  seja  incapaz de um outra história que não seja de Baal. Ele quer continuar a acreditar que o modernus ocidental, profundamente enraizado nas suas especificidades e determinações culturais, possa se emancipar do contexto que a viu nascer e das suas práticas, para se transformar no que ele chama uma Nouvelle Internationale. O globus (de geógrafos e navegadores) é um campo de batalha que se constrói com descobridores e descobertos, conquistadores e conquistados, vencedores e vencidos. O alter mundialismo e a nova internacional são mundus (filosóficos) que pressupõem a construção, a infieri, de uma comunia humana; para além das fronteiras de países,  impérios, blocos (político-económicos)  hegemónicos.

Se Derrida tivesse sido radicalmente consequente com a sua desconstrução, teria buscado alternativas ao(s) Palácio(s) de Cristal, talvez nesta pobre África, não a dos etnólogos mas a dos pensadores africanos. Ele teria descoberto que a produção intelectual africana, desde a sua origem,  é uma tentativa de incorporar a África e o mundo nos tempos históricos e nos valores do universal, fora das fumées dos castelos de cristal (prisões voluntárias) em que as epistemologias e políticas racialistas encarceram uns e condenam outros.  Para isso o pensamento africano não hesitou em pensar num projecto para escancarar as portas do castelo e obrigar a requalificação da história universal (Cheikh Anta Diop); a postular a necessidade de recivilizar uma humanidade descivilizada pela barbárie de genocídios e guerras (Césaire); a incorporar a contribuição de todos os povos na civilização do universal (Léopold Sedar Senghor), na modernidade (C.L.R. James), nas lutas pela emancipação e pela cidadania (Aimé Césaire, C.L.R. James, E. Glissant).

Desde o Haiti, ícone das liberdades negras, o pensamento africano proclama a universalidade da liberdade, dissociando a raça da humanidade e reclamando um lugar, para todos, na mesa do mundo. A radicalidade da revolução haitiana sobre a questão da universalidade é sem precedentes. Ela vai para além da revolução americana contra a dominação colonial e para além da revolução francesa pela justiça social: revolução dos direitos humanos para além da raça e do território. É neste sentido que deve ser lido “O Caderno de um Retorno ao País Natal” de Césaire, reforçado por F. Fanon, quando lança um olhar sobre aqueles que combateram Toussaint Louverture. Aliás, a única resposta científica à “Desigualdade das Raças Humanas” do Comte  de Gobineau foi escrita pelo haitiano Antenor Firman, “Sobre a Igualdade das Raças Humanas”, onde propõe uma concepção não racialista nem essencialista do universal e recusa-se a explicar a diferença cultural de maneira inata ou genérica, e faz-se advogado de uma modernidade híbrida, o que torna a diferença racial obsoleta. Depois, Senghor defendeu a negritude e a arabidade, Nyerere o socialismo Ujaama, A carta africana dos direitos compreende o indivíduo e os povos, para terminar com a cruzada  mandeliana da reconciliação e do Ubuntu.

Driss Charaïb teve razão em emancipar a mulher da subalternidade da tradição. Todavia, homens e mulheres têm o árduo existencial desafio  de abandonar a realidade ou miragem do castelo e de todos os centrismos, todas as lógicas de contrários e  de oposição a fim de costurarem, juntos, um universal alternativo, lateral (Jean-Godefroy Bidima), de “tout le monde” (Édouard Glissant).

Enquanto o Crystal Palace se mantiver um elitista e trapaceiro (batoteiro) clube de hooligans de quarteirão, será o principal responsável moral das zaragatas do campeonato-mundo (História e Humanidade).

ensaio de Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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