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FILOSO (MOÇA)FEMAS – Os Contra heróis de Fevereiro

Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

Os países, todos, à parte o Canadá (onde para se viver nas suas temperaturas glaciais é necessário ser herói) têm uma praça de heróis, do soldado desconhecido, um panteão para deuses – conhecidos  e desconhecidos – (gregos e romanos), ou para os grandes homens (França), dos quais, muitas vezes ninguém se recorda os nomes e ainda menos os seus feitos. 

A história legou imagens díspares de figuras de grandes homens. A antiguidade tinha o evegertismo (prática de fazer doações significativas como edifícios, infraestruturas para a comunidade  que, por sua vez, retribuía com um reconhecimento);  a cristandade criou a figura do santo do qual, o Agostinho das confissões é um exemplo emblemático; o ateísmo Iluminista contrapôs  com as figuras dos grandes homens; o século XIX criou a figura do filantropo (cujo amor à humanidade para nós se transformou em colonialismo); o século XX inventou fundações (filantrópicas) sem fins lucrativos.

 Os nossos tempos, os tempos da ditadura da informação (que os filósofos de Frankfurt, Adorno e Horkheimer, consideravam alienantes) glorifica e mata, a uma velocidade vertiginosa; a fama e a reputação de alguns dura o tempo de um reality show para, logo depois, levar os mais infelizes, à descida a um inferno  proporcional à subida da montanha russa.  Parece que a velocidade do tempo na Modernidade liquida (Zygmunt Bauman), não engole só os espaços mas também a reputação dos homens. Até os  poderosos sucumbem à  lei do tempo: o  pós-franchista e democrata Juan Carlos da Espanha, vive hoje no exílio (dourado) dos  Emirados Árabes Unidos; o Gorbachov da perestroika é um cadáver ambulante, desprezado na Russia e não só;  Bush filho, vencedor de Saddam Hussein, é hoje um “infrenquetável”, lembrado simplesmente pelas suas mentiras; Sarkozy, campeão anti-Líbia de Kadafi, passa de um julgamento ao outro como um comum criminoso; o campeão do Brexit Boris Johnson é quem mais os ingleses querem pôr na rua…

Até os monumentos  não escapam às regras do tempo: inauguradas ao som de fanfarras as estátuas socialistas de Cesusescu, Lenine (…) foram demolidas ao ritmo de martelo.  Depois  do joelho kukuksklaniano  contra Jorge Floyd,  a estátua de Theodore Roosevelt foi retirada da entrada principal do Museu de História Natural de Nova Yorque, a do rei Loepoldo foi derrubada na Bélgica, e a estátua de Cecil Rhodes contestada no Cidade do Cabo. Na reposição do que se arrogava sacrilegicamente  sagrado,  em  Inhambane a estátua de Vasco da Gama – que outrora tronava sobre a cidade descoberta – a ‘boa gente’ pô-la entre as sucatas dos chapas e no seu lugar trona Machel, um dos nossos  icónicos heróis.

Para os moçambicanos, Fevereiro – apesar de se inspirar no sacrifício de Mondlane – invoca e simboliza  todos os heróis,  aqueles que selaram os valores e os princípios de independência e unidade nacional, sobre os quais a nossa nação foi fundada, e recorda-nos o passado glorioso do qual eles  próprios emergiram como  heróis.

Fevereiro deveria ser, por isso, uma ocasião para meditarmos, com realismo, a partir da tumba dos heróis, onde nasceu a nossa moçambicanidade, às quantas andamos e, com coragem ousarmos um confronto com eles afim de obtermos subsídios e energias para fazermos frente aos desafios do presente. Descansam (jazem) na nossa cripta heróis, de quem só conhecemos o nome e pouco mais, nos quais – talvez até por  desconhecimento – não nos podemos inspirar, nem tê-los como modelos ou referências. Há personagens, como José Craveirinha, que a maioria dos moçambicanos conhece porque, num certo momento, toda a criança e todo o jovem escolarizados, foram iniciados na sua poesia. Alguns Heróis, apesar das suas gestas, estão de tal maneira imbricados com o próprio tempo (Hegel) e as circunstâncias (Ortega e Gasset) que não são mobilizáveis para outros tempos (os nossos) e situações. Outros, ao invés, são de um passado de tal maneira cheio de futuro que o presente recorre a eles para pensar e re-imaginar o devir. Trata-se de figuras imemoriais – heróis intemporais – que resistem às vicissitudes do tempo; enterrados, desvirtuados, manipulados, quais fénixes, ressurgem das suas cinzas, sempre que necessário, e sempre que o imperativo da pátria chama, tal como quando a corrupção se instalou como um manto institucional e individual dos moçambicanos, Machel recomeçou a vociferar e a lançar anátemas contra  o guebusianismo até nos chapas e barracas; quando a Frelimo, como um camaleão, se adaptou  às cores liberais dos novos ritmos de exploração, Marcelino dos Santos ressurge para lembrar a cor-povo das origens do partido; quando interesses de partes  preterisam ou secundarizam Moçambique em nome de uma qualquer pseudo primazia comunitarista -étnica, tribal, religiosa ou rácica-, Mondlane ressurge com a chama da unidade. Quando a política autoritária ganha fôlego, até se invoca, no nome da democracia, o paradoxal Dlhakama.

Em cada três de Fevereiro, Mondlane e os nossos heróis ressurgem – quais Cristos – parabolicamente interrogativos: o que temos feito com o tesouro da liberdade duramente conquistada? Iteramo-lo ou o fazemos frutificar? Mondlane e Machel -os mais representativos dos nossos heróis- foram mortos; o primeiro num conluio entre os que queriam continuar a dominar-nos e os que queriam direcionar ideologicamente a liberdade, e o segundo porque representava o maior empecilho para o retorno de políticas de espoliação e exploração. Ambos foram depois parqueados e usados, quando necessário, para caucionar políticas e ideologias que nunca partilharam; mobilizados – como bombeiros – para apagar fogos e, depois do incêndio. encerrados no esquecimento. Porém, Mondlane e Machel – sobretudo eles – como gatos de muitas vidas ressurgem sempre. Para alguns o primeiro como uma espécie de Clovis, fundador mítico da  França, ou Guilherme Tell dos suíços; o segundo como um guerreiro napoleónico, mas também reformador; depois Marcelino é visto como um maquiavélico estratega nacionalista  e Dlhakama, comparado a um Pétain da Republica Francesa de Vichy.  Mas serão essas  figuras retóricas  adequadas para compreender os ícones da nossa história?

Mahandjane,  Chilembene  e Maringuè só servem para peregrinações oportunistas; não era só o Marcelino de quinzinhas que não era santo, mas todos eles, não porque os ateus e os protestantes não têm santos, mas porque a vida de todos eles foi um grito terenciano “homo sim nihil quid humanamente a me alieno puto”; se até o intelectual Mondlane não era  um Pico de la Mirandola ou enciclopedista diderodiano, os outros o eram ainda menos; as fundações que ostentam os seus nomes não são instituições de “bien faisance” (beneficência) mas ímanes  para atrair e continuar a encher “bolsas – já saturadas – de coisas sujas e inconfessáveis” (J. Rebelo): a miséria do povo.

 Então de que grandeza  foram os nossos heróis ? Os poetas e artistas dizem em poucas palavras – e de maneira clara e distinta – aquilo que os filósofos dizem, muitas vezes, de maneira hermética e, por vezes, atabalhoada. A geração pós independência cresceu ritmada ao som da música revolucionária. Em cada 3 de fevereiro o dia nascia e se desenrolava ao ritmo do “Vindem, vindem moçambicanos, exaltemos Mondlane, morto pela liberdade do nosso Moçambique (…)”. O compositor anónimo ( sobre o qual os etnomusicólogos se deveriam debruçar) através de Mondlane exaltava uma geração de homens destemidos que, em coordenação com outros nacionalistas africanos – sobretudo no quadro na CONCP, Cabral, Neto e outros – lutaram pela liberdade dos seus povos.

O três de Fevereiro  é uma metáfora através da qual o poeta mergulha Mondlane nos heróis (todos) – e não os heróis em Mondlane – conhecidos e anónimos que, de maneiras dispares, fizeram da liberdade a busca essencial da própria existência. Foram esses heróis, todos, e para além dos binómios revolucionários-reacionários, camaradas-inimigos (xiconhocas),  dentro da cripta – ou fora dela – que criaram a nação moçambicana.  Existem, por isso, buscas da verdade que justificam que invoquemos de uma maneira dialética, nas suas diferenças mas no seu comum “lutar por Moçambique”, todos os nossos heróis. Não para celebra-los, museologicamente, como decorativos objectos de arte ou, arquivisticamente, como objectos ou livros raros que ficam trancafiados e armazenados  nas gavetas da memória  histórica, mas, por um lado,  para recordar o espírito que norteou a génese da nossa identidade comum e os sinuosos sendeiros  da marcha pela liberdade, independência e também democracia, mas também para tirar lições e aprender dos erros, que levaram à intolerância política e à transformação de diferenças de ideias em beligerâncias e antagonismos.

 O diálogo que a  burrice política portuguesa negou em 64 acabou por ter lugar em 74 pela força das armas; a casmurrice da Frelimo em reconhecer e aceitar diferenças de pensamento em 75 teve que ser corrigida ao preço de muitas mortes em 90;  a recusa da justiça e do imperativo moral da redistribuição comunitária pelas elites económico-partidárias desaguam hoje no vergonhoso processo político da BO; a falta do sentido político na redistribuição económica, na descentralização política e no povoamento do poder e seus símbolos pelo país inteiro, favorece a guerra terrorista de Cabo Delgado.

O nosso heroísmo e anti-heroísmo (todos pilotados e subordinados a ideologias exógenas) podem nos ensinar quanto à necessidade de um maior diálogo e uma maior solidariedade intra-moçambicana;  de uma maior prudência, com as ruandaserias, chinesuarias dos falsos amigos, que se apresentam sempre com caras bustianamente simpáticas, com argumentos convincentes e propósitos altruístas (camaradas, cooperantes, doadores, parceiros) na defesa implacável dos seus interesses (os recentes acordos anti-China, entre a potente UE e a insignificante UA, não são excepção). A  má gestão das controvérsias do passado  talvez nos devam levar a mais tolerância, mais  palavra, mais diálogo, mais compromisso, mais cooperação, mais busca de consensos como maneira de estar em sociedade e de fazer política. 

 O  compositor anónimo do “Vindem vindem moçambicanos”, na segunda estrofe, ao lado da liberdade, metia pão e paz. Celebrar o 3 de Fevereiro e dar razão à heroicidade dos muitos Mondlanes anónimos que consagraram (sacrificaram) a vida, resulta em questionamento sobre o que fazemos com a liberdade que nos foi legada; se estamos de facto engajados numa dinâmica de liberdade (com todas as sua implicações em termos de responsabilidade ), no pão para todos (que implica trabalho e solidariedade)  e com a paz (com os suas exigências de tolerância e justiça). Diante dos nossos níveis inauditos de dependência, dos níveis nacionais de subnutrição, do nosso estádio (história) – anti kantiano – de guerra perpétua, as palavras do poeta soam como um oximoro

Este ano o presidente celebrou o dia dos heróis em Mueda, na presença do presidente Sul Africano, o que denuncia a guerra que assola o país com os seus demónios de terrorismo religioso mas também de conflitos étnicos, de discrepâncias e assimetrias sociais. Logo a seguir o presidente esteve em Adis, numa reunião da União Africana onde foi -estranhamente- condecorado como “campeão da gestão de desastres” (talvez também das dívidas ocultas) e, por fim, em Bruxelas numa peregrinação que parecia um acto de vassalagem. No seu discurso do sacramento da confissão e de prestação de contas, o nosso ‘supremo Chefe’ descreveu os avanços da DDR, no mesmo momento que, em Maputo, o presidente da Renamo denunciava o engano do qual se dizia vítima; enquanto o presidente descrevia o avanço da democracia, o enfeudado poder judiciário – para o qual todos fazemos preces de uma muito maior independência – dava o espectáculo da sua imaturidade e pretextos para impedir aqueles que o querem ter sob sua tutela prestem declarações. Entretanto, o ex-futuro herói, Armando Guebuza, se preparava para explicar no tribunal se a sua responsabilidade no rombo nacional está na sua costela gananciosa ou na incompetência. No seu ”martelanço”, como leão (sem dentes) remetera toda a responsabilidade ao Rosário, o comissário P.  ( p de pecuniocratico) fê-lo para o ifigeniamente in-declarante. 

O Covid parece estar no fim da corrida, mas se não  fez ainda mais estragos foi, em parte,  graças à heroicidade da classe médica e do MISAU que nos recordaram o trabalho, a abnegação e o sacrifício  de  outros tempos. Porém a verdadeira pandemia está mais forte do que nunca, ela reside no contra heroísmo de toda uma geração que se espalha à velocidade do Omicron mas com a letalidade do Delta. Não foi só o SISE que traiu os “Mondlanes do Interior” mas a postura de toda uma geração que parece não saber o que fazer com a herança da liberdade duramente conquistada pelos heróis de Fevereiro…

ensaio de Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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