Severino Ngoenha, Filomeno Lopes, Carlos Carvalho
Quando nos aproximamos da música lírica, sobretudo da ópera, como Stela Mendonça e Sónia Mocumbi nos têm estado pedagógicamente a conduzir, para além dos motivos religiosos, clássicos e românticos que inspiram os principais temas musicais, por vezes, de repente, deparamo- nos com um motivo insólito, surpreendentemente político e actual, que nos leva «toute proportion gardée» ao trágico continuum da nossa história: o Nabuco de Verdi, e o seu conhecido ‘coro dos escravos’.
O canto de escravos judeus – no terceiro acto do Nabuco (Nabucodunosor II) – escrito por Giuseppe Verdi no momento mesmo em que o seu país sucumbia à colonização política, foi um marco na história da arte e na estética política. A escravatura judaica tinha já inspirado a inteira tradição dos spirituals e gospels – o mais famoso dos quais é o Let my People Go, popularizado primeiro por Paul Robeson e depois por Louis Armstrong – servindo a resiliência e depois a luta dos afro-americanos. Servirá, a partir da estreia do Nabuco de Verdi, de incentivo e leitmotiv da revolta dos italianos contra a ocupação austríaca do norte do país.
Os negros que se juntavam para cantar os gospels, sobretudo nas igrejas do Sul dos Estados Unidos, conheciam a opressão por vivê-la no quotidiano; iam às igrejas não necessariamente por um apelo de fé ou pela eloquência de qualquer Crisóstomo (boca de ouro), mas porque as igrejas eram os poucos espaços de liberdade, de construção da comunidade e do destino que lhes eram permitidos. Por detrás da historia da fuga dos hebreus do Egipto eles invocavam surrateiramente a Moisés negra (Harriet Tubman), o Underground Railroad e a fuga dos escravos negros do Sul
Também os italianos na segunda metade do século XIX aclamaram não as óperas de Rossini, Bellini, Donizetti, nem as de Verdi da Traviata ou da Aida mas a do Nabuco, porque se reconheciam ou reconheciam naquele “segundo hino nacional” uma invocação da sua então realidade histórica.
Para boa parte do movimento de pensamento da arte política, os indivíduos parecem dominados porque considerados incapazes de compreender, enquanto os artistas (pastores e abolicionistas durante a escravatura e Verdi durante a ocupação do norte da Itália pela Áustria) seriam pedagogos (Cheik Anta Diop, Theofilo Obenga, Assante, Omotunde…) que explicariam os eventos de uma maneira menos rebarbativa. Existia a ideia de que a arte seria política, a partir do momento em que introduz pedagogias que criam uma tomada de consciência.
Jacques Rancière rompe com esta perspectiva. Não existem de um lado ‘os que sabem’ e do outro ‘os que sucumbem’, os parvos que engolem estupidamente as imagens de uma parte e os que as pensam do outro: todos somos iguais na partilha do sensível. Assim, depois da era da suspeita (Nietzsche, Marx, Freud) abre-se uma nova sequência para o espectador: a emancipação (participativa). Aliás, apesar de se reclamar do marxismo, a ideia brechtiana de aprender a ver, de se libertar das aparências, data do mito da caverna de Platão.
Uma obra existe, como um estudante que observa, seleciona, compara interpreta e liga o que vê com o que ele viu em outras cenas anteriores. Uma obra existe através das múltiplas reconstruções feitas pelos espectadores. O que se passa na cena é inserido numa cadeia construída por cada um e corresponde a um percurso próprio. Walter Benjamin quiz politizar a arte opondo, contra a estetização da política praticada pelo fascismo, a politização da arte proposta pelo comunismo. Hoje, depois dos ensaios de ataques cibernéticos a bancos, instituições de defesa, infiltrações e manipulações em pleitos eleitorais vivemos em directo – ao que somos intimados a participar – a primeira total ciber-guerra; com imagens artísticas construídas por repórteres, fotógrafos, propagandistas, profissionais da manipulação de massas que enchem quotidianamente os nossos écrans porque, como o Francis Coppola do Apocalipse Now, acreditam na existência do belo nas destruições e mortes com que as bombas não cessam de ofuscar os nossos écrans de televisão. Realismo estético ou manipulação artística ?
O que dizer dos generais, jornalistas, comentadores que lutam por se substituírem nos canais de televisão, jornais, rádios redes sociais – quem mais, mais – sobre as razões para continuar a encher de bombas os arsenais dos adversários, em nome da uma paz – que só pode ser bélica – e sempre mais militarizada? Como definir os que lutam para diminuir nos orçamentos dos estados, os gastos para a saúde (que a COVID e os Big Farmas mostraram quão exíguos são, até entre os mais ricos) a favor do fortalecimento da indústria bélica e dos armamentos das nações? Como classificar aqueles que não aprenderam das experiências africanas, que as sanções servem simplesmente para matar os que já estão a morrer? Aqueles que não vêem que os únicos a lucrar com as armas são os que as produzem?
Os copolas do esteticus ad bellum ou da Ius ad bellum não se limitam à mobilização total dos próprios meios para a cyber-guerra em acto: querem nos coagir a aderir com a razão da força, que eles propalam como a força das suas razões. Como diria Kant, nós também somos chamados a subir ao palco, resta saber se das convicções ou das ilusões, por razões da força ou por força da razão…
A nossa época se quer cibernética mas ignora que a informação é diferente do conhecimento (Michel Serres). Viver a nossa época significa não se contentar com as suas aparências mas descer às profundezas das suas fossas (Castiano) e aceitar receber na cara os seus excrementos (Agamben). Mas o que significa isso: contentar-se em pensar com ela, mesmo nos seus absurdos e contradições (para evitar os seus excrementos na cara) ou ousar pensar contra ela? A ordem dominante não reprime o dissenso mas obra para que ele não se constitua, faz com que o pluralismo da povoação global se resolva num monólogo de massas. Por isso, dissentir significa opor-se ao consenso imperante, para restituir vida à possibilidade de pensar e ser de maneira diferente.
Conhecemos o poder das mentiras da verdade, sabemos que sem um séria vigilância crítica, sem uma adesão prudente e desconfiada, sem disponibilidade para lutar, tudo, literalmente tudo, pode nos ser impingido: guerras contra armas que não existem, conflitos ideológicos (guerras de dezasseis anos) quando nós nos queríamos não alinhados, devastações por ganâncias de petróleo sob o pretexto de um (Petro-) jihadismo criado por gente para quem as nossas vidas nunca tiveram valor.
O que têm em comum os espirituals e a ópera, o que nos podem ensinar James Cone ( The Spirituals and the Blues) e Giuseppe Verdi face aos dramas e dilemas actuais? Os epifenómenos da comum origem do estilo destas músicas no longínquo século XVI? A analogia entre os melodramas – na origem da ópera – durante os entreactos que permitiam a intervenção de algumas personagens e o Zip in dos espirituais que favoreciam a manifestação lírica dos diferentes membros da comunidade, como no famoso Kumbaya o Lord (Senhor) cantado ainda entre nós nas igrejas cristãs? A consagração de ambos os géneros no século XIX (1842 Va, Pensiero, e em 1872 o verso de abertura pelo Jubilee Singers da Universidade Fisk)?
Essas revoltas não podem ser reduzidas a um paradigma unitário, mas apresentam, como horizonte comum, a reivindicação contra a injustiça da ordem constituída. Eles manifestam e podem nos transmitir a veemente recusa e oposição ao obediencionismo opressivo que hoje, como mentiras da verdade (Azagaia), se dissimula no informacionismo, na impostura de numa falsa era de comunicação e de saber. Judeus, italianos do Nabuco têm em comum, com os afro-americanos dos spirituals, a convicção, a coragem e a ousadia de buscar a liberdade apesar e não obstante as circunstâncias : Va, pensiero…
Mas o pensamento não é arbitrário (Edmundo Husserl), não se pode pretender a liberdade submetendo-se sempre e de maneira consentida à vontade de outrem, não se pode obter a liberdade sem buscá-la, sem se dar/ter os meios para a conquistar.
Não é novidade que estamos na dita era da informação, não é novidade que essa informação é produzida, tratada, transmitida com fins ideológicos e económicos precisos, não é novidade que ela é produto de especialistas, não é novidade que ela usa a nossa atracção pelo belo para nos atrair e manipular, que ela abusa da nossa credulidade para nos enganar. A novidade reside na dimensão ciber-global das notícias que narram factos, dão informações, plasmam consciências para acreditarem, sem levarem necessariamente ao conhecimento; a novidade está no facto de fazerem de nós caixas de ressonância do que não sabemos, vulgarizadores e sofistas do que ignoramos, exegetas de factos sem a busca – filosófica – da sua vericidade e, por isso mesmo, hermeneutas sem a exigência da tradução da informação em comunicação, condição sine qua non para o conhecimento ( Michel Serres).
Muitos descendentes dos escravos hebreus, dos italianos que se referem a Verdi, dos afro-americanos que exaltam a coragem da Harriet Tubman ignoram, esqueceram ou fingem esquecer a história; alguns demonstram não ter consciência de que o que é humanamente condenável não é esta ou aquela forma histórica de opressão, a escravidão deste ou daquele povo ou raça; o que é humanamente condenável é a escravatura em todas as suas formas, são as ideologias de esquerda ou de direita, religiosas ou laicas que a pressupõem, acompanham e alimentam.
Inch Alah que a unanimidade encontrada contra a guerra e as mentiras discursivas que a acompanham, seja o renascer de uma África, enfim, reunida, pan-Africana (união para a resistência, lema do primeiro congresso de 1900) com vontade e pensamento próprios (dos povos africanos) e capaz de cantar sincronizada e com harmonia – dos guetos de Cabo Delgado, de Bissau, de Kinshasa, da Somália até às periferias da Baía e de Harlem (…) – numa só voz e em uníssono: We Shall Overcome…
Seria um reconhecimento devido aos que deram a vida por esta causa (Du Bois, Garveys, Nkrumahs, Mondlanes, Cabrais, Lumumbas, Nyereres, Macheis, Marcelinos…) uma boa prenda para o vinte cinco de Maio (dia da África e aniversário do martírio de George Floyd), uma esperança para as gerações futuras…
We Shall Overcome, We Must Overcome…
ensaio de Severino Ngoenha, Filomeno Lopes, Carlos Carvalho