1

Filosofia, a arena das opções

Os filósofos não erguem seus braços para saudar a tradição, adentram-se  na arena para lutar com sua única arma,  o pensamento, pelas suas opções teóricas

Gonçalo Armijos Palácios*

            Desde o início da filosofia, os filósofos viram a tradição com suspeita. As críticas à tradição, por exemplo, já são claras em Xenófanes. No seu caso, via os poetas com maus olhos. Com efeito, queixava-se de que “Tudo aos deuses atribuíram Homero e Hesíodo, tudo que entre os homens merece censura e repulsa: roubo, adultério e fraude mútua.”[1] Estas queixas reaparecem em Heráclito e se tornam sistemáticas em Platão. Sobre Hesíodo, Heráclito diz o seguinte: “A maioria tem por mestre Hesíodo. Estão convictos ser o que mais sabe — ele, que nem sabia distinguir o dia da noite. Pois é uma e a mesma coisa”.[2] E sobre Homero: “Os homens se enganam no conhecimento das coisas visíveis, como Homero, o mais sábio dos helenos”.[3] Mas torna-se mais duro com quem acredita-se ter sido seu mestre, Xenófanes: “Muita instrução não ensina a ter inteligência; pois teria ensinado Hesíodo e Pitágoras, Xenófanes e Hecateu”.[4]

            E pela razão que leva Heráclito a criticar Hesíodo — pelo fato de o poeta não saber que noite e dia são a mesma coisa —, ele próprio é criticado por Parmênides. Pois pensar que as coisas são e não são, dizia o filósofo de Eléia, é mostrar uma mente confusa, ignorante. Vejamos o que Parmênides dizia acerca de quem dessa maneira pensava:

Pois é a ausência de meios que move, em seu peito, o seu espírito errante. Deixam-se levar, surdos e cegos, mentes obtusas, massa indecisa, para a qual o ser e o não-ser é considerado o mesmo e não o mesmo, e para a qual em tudo há uma via contraditória.[5]

            Os primeiros filósofos, aqueles que ainda não mencionei e que são contemporâneos de Xenófanes (Tales, Anaximandro e Anaxímenes), dão início à filosofia por precisamente discordar radicalmente da tradição mitológica. A própria filosofia, em síntese, nasce como uma compreensão alternativa das coisas. Os mitos reunidos nas obras de Hesíodo e Homero mostram um tipo de racionalização do mundo, da vida, dos homens, que não poderia ter agradado a pessoas com maiores anseios lógicos. Se há uma lógica nos mitos, a lógica da filosofia a ultrapassa ao não permitir que nada fique sem uma resposta devidamente fundamentada. As razões, e não a imaginação, estão por trás do pensar do filósofo. Assim, Aristóteles pode inferir que para Tales é a água o princípio de tudo, porque a vida não se mantém sem água. E é racional pensar que o mais maravilhoso do mundo seja a vida. Nada mais racional, então, que supor a água como fundamento de tudo, por ser o fundamento do mais grandioso. Por outro lado, é incompreensível que Urano tenha querido eliminar seus filhos, ou que Cronos tenha mutilado seu pai e engolido os seus. Há um ponto, portanto, em que o mito não explica mais e deve ser abandonado. A filosofia demora muito mais em chegar ao inexplicável. A diferença está em que a filosofia sempre dá esperanças de superar o insuperável.

            Talvez tenha sido a ambição do homem ocidental por saber, por conhecer e por entender cada vez mais e por superar o insuperável que o levou a que abandonasse o mito, criasse a filosofia e inventasse a ciência. Provavelmente é esse desejo por encontrar respostas cada vez mais satisfatórias sobre suas dúvidas mais transcendentes. Dúvidas que nos obrigam a alargar e aprofundar nossas capacidades racionais.

            Esse caminho, contudo, não é o caminho da unanimidade nem da paz, muito pelo contrário. É a trilha do embate, da luta de teorias, das explicações contraditórias e as teses paradoxais. É essa a imagem que quem quer se adentrar na filosofia deve esperar encontrar. Não a do sereno templo das verdades eternas, mas a do agitado terreno das lutas teóricas intermináveis entre esses gladiadores da vasta arena romana que são os clássicos do pensamento filosófico. Não há grande filósofo que não tenha erguido sua única arma, o pensamento, para lutar pela sua opção filosófica.


[1] “Xenófanes”. Trad. de Anna L. A. de A. Prado. In: Os Pensadores. São Paulo : Abril Cultural, 1973.

[2] Os Filósofos Pré-Socráticos. Gerd Bornheim, tradutor e organizador. São Paulo: Cultrix, 1999.

[3] Gerd Bornheim, ibidem.

[4] “Heráclito de Éfeso.” Trad. de José Cavalcante de Souza. In: Os Pensadores. Ed. cit.

[5] Trad. de Bornheim, op. cit.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. A filosofia não é a posse da sabedoria, mas a sua busca. Nesse caso, cada filósofo possui uma forma e método a partir de sua visão de mundo para a busca do conhecimento.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *