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Francis Bacon e os filósofos gregos

Em vez da leitura dos livros, filósofos como Bacon insistiram numa leitura das próprias coisas

Gonçalo Armijos Palácios*

            Bacon (1561-1626) floresceu na transição da Renascença à modernidade e reúne os atributos de um cidadão que viveu para seu país e para sua época. Foi eleito para o parlamento, assessorou a rainha Elizabeth I e foi nomeado sir por Jaime I. Interessa-me, no entanto, o filósofo.

            Francis Bacon foi um leitor crítico da tradição medieval e antiga. Os seus escritos têm a força da renovação. Olham para a construção de um futuro melhor mais do que para um passado que considerava sobrevalorizado. Uma das suas obras mais conhecidas é o Novum Organum, publicado postumamente em 1627. Pelo título podemos ver que é uma obra contra a tradição clássica e, particularmente, contra o Organon aristotélico. O seu não é um velho e pouco útil organon — instrumento, isto é — masé um novo organon, um novo e útil instrumento para conhecer. Já no Prefácio podemos ver como Bacon leu a tradição. Nas primeiríssimas linhas se queixa de que “Todos aqueles que ousaram proclamar a natureza como assunto exaurido para o conhecimento (…) infligiram grande dano tanto à filosofia quanto às ciências”.[1] O conhecimento, para ele, não podia ser senão conhecimento da natureza, como fizeram poucos dos antigos filósofos. Por isso, da Filosofia Antiga, Bacon resgata os pré-socráticos:

De outra parte, os antigos filósofos gregos, aqueles cujos escritos se perderam, colocaram-se, muito prudentemente, entre a arrogância de sobre tudo se poder pronunciar e o desespero da acatalepsia [isto é, da incompreensibilidade].(Loc. cit.)

            Nesses trechos, Bacon assume uma posição abertamente anti-racionalista e por isso não dá trégua aos filósofos que “tanto concederam à dialética”. Pelos danos feitos tanto por empiristas radicais como por racionalistas extremos, “Resta, como única salvação, reemprender-se inteiramente a cura da mente”. (ibid., p. 12) É essa cura da mente que Bacon se propõe com seus escritos sobre método. Mas se há necessidade de cura é porque a mente está doente. Doença causada, claro, pelos vícios de uma tradição secular. A crítica, note-se, é muito dura. Mas Bacon percebe que deve atenuar seu discurso para não parecer desrespeitoso demais com a tradição. Assim, pensa necessário destacar dois pontos: “O primeiro consiste em que sejam conservados intactos e sem restrições o respeito e a glória que se votam aos antigos.” (p. 13) Isso Bacon pensa necessário “para afastar de nosso espírito contratempos e perturbações”.

            É necessário que nos detenhamos na análise desses trechos para podermos perceber o quanto Bacon lutava por reivindicar o direito de pensar por si. Fica evidente que Bacon percebeu que o endeusamento da tradição tinha o efeito nefasto de impedir as novas gerações de propor novos caminhos, novas teorias, novas formas tanto de pensar como de fazer. Bacon vive numa época em que muitos já começaram a pensar por si — por cujo atrevimento foram perseguidos, torturados e até queimados na fogueira inquisitorial. Está dizendo, note-se, se bem os antigos foram admiráveis, nós podemos fazer melhor. Mas isso seria impossível se se pensasse que os antigos e a tradição eram insuperáveis. Perceba-se o cuidado, e ao mesmo tempo a energia, com que Bacon reivindica esse direito a pensar de forma diferente:

Com efeito, se pretendemos oferecer algo melhor que os antigos e, ainda, seguir alguns caminhos por eles abertos, não podemos nunca pretender escapar à imputação de nos termos envolvido em comparação ou em contenda a respeito da capacidade de nossos engenhos. (Loc. cit.)

Bacon estava convencido que alguém como ele mesmo, enquanto homem daquela época, estava em condições de “oferecer algo melhor que os antigos”. Uma ousadia, se pensamos que, mesmo hoje, há pessoas que pensam de um Platão e um Aristóteles como pensadores infalíveis, depositários de verdades absolutas. Mas Bacon diz isto a continuação: “Na verdade, nada há aí de novo ou ilícito.” Não é ilícito, isto é, ter a pretensão de superar a tradição. E dá uma boa razão para isso, em forma de pergunta:

Por que, com efeito, não podemos, no uso de nosso direito — que, de resto, é o mesmo que o de todos —, reprovar e apontar tudo o que, da parte daqueles, tenha sido estabelecido de modo incorreto?

            Qual foi esse modo incorreto? O de usar a razão sem o auxílio da experiência, o erro que atribui a Platão e a Aristóteles. Em lugar do uso da razão, Bacon pensa que devemos usar o método de interpretar a natureza. Num sentido, em vez de uma leitura dos textos dos antigos e dos clássicos em geral, Bacon propõe uma leitura das coisas mesmas.


[1] Bacon, F. Novum Organum. São Paulo : Abril Cultural, 1973, p. 11. (Col. Os Pensadores)

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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