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Filosofia: encontro do abstrato com o concreto

As especificidades da vida tornam única cada filosofia

Gonçalo Armijos Palácios

Pelo dito no artigo anterior (Os fatos duros da filosofia) podemos ver que não é pelo conteúdo de verdade das teses filosóficas nem pela procura da verdade que a filosofia se define ou pode ser definida. Resta, brevemente, olharmos para os próprios conteúdos ou áreas. Desde o início da filosofia, o que pode ser constatado é, mais uma vez, a impossibilidade de podermos delimitar o terreno que pertence ao que historicamente temos chamado de filosofia. Pois, à medida que o tempo passa, novos assuntos, novos problemas e novos temas vão sendo introduzidos na prática e na reflexão filosóficas. 

Em segundo lugar, se fizermos um corte sincrônico, cada filósofo pode passar de um tema a outro, muitas vezes abordando assuntos que nada ou muito pouco têm a ver com aqueles que tratou anteriormente. Com o passo do tempo, filósofos introduzem assuntos que tampouco foram tratados anteriormente. Que prova isso? Que a reflexão filosófica não está fechada a determinados assuntos, temas ou problemas. A variedade enorme de questões e temas que a história da filosofia apresenta mostra que, sendo impossível que um filósofo trate de absolutamente todos os temas filosóficos, não é o tema que define uma questão como filosófica, mas alguma outra coisa. Caso contrário terminaríamos na tese absurda de dizer que não houve filósofos, já que nenhum deles tratou absolutamente todos os temas que efetivamente foram tratados ao longo da filosofia. Alguém poderia apresentar uma saída e dizer que, de alguma forma, haveria uma continuidade de temas filosóficos e que eles vão sendo continuados pela tradição posterior. Um rápido olhar na história da filosofia, mais uma vez, constata o contrário: há assuntos que são definitivamente abandonados. E um exemplo claro o constitui o caso dos três primeiros filósofos gregos, Tales, Anaximandro e Anaxímenes, pois seu problema foi abandonado pela filosofia posterior. É verdade que alguns temas, se os consideramos de forma geral, parecem reaparecer em épocas posteriores, mas o assunto já é tratado de forma completamente diferente, não há nele uma continuidade de conteúdo, só a semelhança temática externa. 

O que a história da filosofia nos mostra não é continuidade, mas rupturas. Além das rupturas temáticas, temos uma de enfoque, ou mesmo de concepção do que merece ser trabalhado filosoficamente, como ocorre na filosofia medieval a respeito da filosofia grega antiga. Apesar de podermos ver que há alguns assuntos que se mantêm, o olhar medieval é tão diferente do grego que podemos falar numa mudança paradigmática profunda. Discordo que, por estar centrada na questão de Deus, o pensamento medieval deva ser considerado menos filosófico que o anterior, o dos gregos, ou o posterior, dos modernos. E, apesar de termos uma defesa do monoteísmo em alguns pensadores gregos, como no pré-socrático Xenófanes, a concepção monoteísta medieval é completamente diferente da que algum grego clássico poderia ter tido. Nesse monoteísmo, portanto, não podemos ver nenhum indício de continuidade – mesmo porque o problema de Xenófanes não teve, nem de longe, a possibilidade de fincar raízes na cultura grega. 

Isso nos leva a uma questão importante: o pensamento filosófico está determinantemente influenciado pela época e, logicamente, pela cultura na qual está inserido o filósofo. Se é possível falar em raízes do pensamento filosófico, não me parece caber dúvidas sobre o fato de o pensador receber a influência de sua época para pensar o que pensou e defender o que defendeu. Nesse sentido, as teses de Hegel sobre o caráter histórico do pensamento me parecem outro dos resultados incontestáveis da filosofia.

Assim, as especificidades de cada época tornam também impossível falarmos de continuidade de temas ou teorias filosóficas. Estas não são, porque não podem ser, continuadas por mentes de épocas posteriores. Isso não significa que não haja relações e semelhanças entre os temas, mas as particularidades de cada tempo e lugar matizam os assuntos de forma a torná-los, propriamente, irrepetíveis e incomparáveis. 

A semelhança de muitos temas, ou a repetição de alguns problemas, como o da natureza do conhecimento, por exemplo, não encontram sua razão de ser numa eventual continuidade conceitual ou temática, mas no fato de a natureza humana ter de resolver, basicamente, os mesmos problemas seja na época que for. Se isso vale para a sobrevivência, subsistência e vida em comum vale também para determinados problemas que só podem ser problemas para seres como nós, dotados de um determinado cérebro e jogados num determinado planeta onde vivem em determinadas condições. Seres que, em última instância, não temos mudado tanto como para deixar de ter os mesmos problemas básicos que as pessoas tinham milhares de anos antes nem as mesmas características psicofísicas. 

É essa nossa natureza humana, que não mudou radicalmente, a raiz das nossas problematizações, e ela pertence a um ser histórico que não vive isolado, mas nasce num tempo, num espaço e numa cultura determinados. Assim como não pode existir o ser humano “em geral”, mas seres humanos concretos, específicos, no plural, não podemos falar, propriamente, de temas e assuntos gerais que perpassem a história da filosofia, a não ser, também, de uma forma ampla e, por isso, vaga e imprecisa. Pois, por exemplo, quando falamos sobre o problema da igualdade entre homens e mulheres na República, não estamos falando da questão da igualdade de gênero no pensamento contemporâneo. O entendimento por Platão da tese “homens e mulheres são iguais” não é nem pode ser a mesma que para alguém dos séculos 19, 20 e 21. Assim, por mais parecidos que possam ser, problemas ou teses de épocas diferentes são, em muitos sentidos, propriamente únicos – isso torna única cada filosofia e cada filosofar. 


Gonçalo Armijos Palácios

José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1983), da revista Philósophos (1986), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.


publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção – Edição 1846 de 21 a 27 de novembro de 2010

Marcos Carvalho Lopes

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