O grande aumento atual de questões filosóficas é resultado das novas situações-problema
Gonçalo Armijos Palácios
Atualmente podemos ver a estreita relação entre a circunstância ou situação de perplexidade máxima e a filosofia. Nunca houve tantos novos temas filosóficos como os que estão surgindo nas últimas décadas, estimulados e condicionados pelas situações novas em que os seres humanos nos encontramos. Situações que nos levam a uma reflexão inter, trans e multidisciplinar, como ocorre, por exemplo, com os problemas decorrentes da engenharia genética, como a clonagem, a possibilidade de determinar características das futuras gerações, as questões ambientais e as de gênero, que estão sendo introduzidas na discussão filosófica atual.
Um caso exemplar de como as novas circunstâncias obrigam essa reflexão a partir de uma situação de perplexidade máxima é a descoberta da clonagem de mamíferos. Uma vez clonada a ovelha Dolly, como seres humanos nos vimos forçados a resolver as questões éticas decorrentes da possibilidade de clonar órgãos humanos. O que foi feito imediatamente, mesmo sem antes de sairmos de nosso assombro. A mesma necessidade de iniciar nossa reflexão de estaca zero foi a possibilidade de curas decorrentes de pesquisas feitas com células-tronco.
Ultimamente, e de outra disciplina, a questão do início do universo veio novamente à tona com a publicação do último livro do físico Stephen Hawking. Nesse livro, Hawking afirma que o universo surge do nada, afirmação que contraria todas nossas intuições lógicas e repugna à razão, pelo menos a um tipo específico de racionalidade. É claro que, nesse livro (“The Grand Design”), Hawking está fazendo filosofia, não física, não por outra razão a não ser a de encontrar-se numa situação de perplexidade máxima e, por isso, sem estar em condições de lançar mão de qualquer resultado concreto da física ou de qualquer ciência ou resultado empírico.
Pelo que temos visto, novas circunstâncias históricas, assim como descobertas tecnológicas ou científicas, podem afetar a comunidade e mudar aos poucos sua forma de ver e viver o mundo. Não ocorre isso de uma hora para outra, mas, com o tempo, os povos terminam mudando, apesar de algo ser conservado em todo tipo de mudança.
Novas formas de viver e ver o mundo condicionam uma modificação na forma de se falar sobre o mundo. Assim, “conceituar” pode ser entendido de duas formas: pensar o mundo e falar sobre ele. Novas culturas criam novos vocabulários, e são eles os que refletem a construção racional da realidade, o que é feito coletivamente. Novas circunstâncias, descobertas tecnológicas ou científicas, mudanças climáticas, conflitos bélicos, etc., provocam e exigem uma mudança na forma de viver e pensar o mundo, o que termina numa nova forma de se falar sobre ele. A linguagem, então, está na recriação do mundo que historicamente fazem as mais diversas culturas e, de forma mais clara, aquelas que estão mais sujeitas a mudanças pela sua posição geográfica, pela relação com outros povos, por descobertas científicas e tecnológicas ou por uma mistura dessas e outras circunstâncias. Em geral, as novas gerações sentem a necessidade de referir o mundo de outras formas e são elas as responsáveis pelas mudanças nas línguas, não só pela introdução de novos vocabulários, mas pela nova forma de conceituar o mundo.
O que nós chamamos avanço ou progresso da filosofia não passa do reflexo histórico das perplexidades em que os seres humanos, com o passo do tempo e o aparecimento de novas situações, nos encontramos. Isso explica por que cada época introduz novas questões e de tempo em tempo novos temas e assuntos filosóficos aparecem. São consequência necessária das novas formas de se problematizar que encontram as pessoas em decorrência das mudanças nas suas sociedades.
A filosofia, hoje, mostra de forma clara essa sua natureza. O grande aumento de questões filosóficas é resultado das novas situações-problema em que as pessoas se encontram e exigem delas uma reflexão e uma solução. O fato de esses problemas não serem passíveis de solução pelas vias conhecidas, seja por métodos ou por informações já acessíveis aos seres humanos, torna o problema filosófico, não o assunto, o tema ou a forma supostamente misteriosa e mística em que o pensamento filosófico se realizaria. Portanto, se podemos falar em problemas eminentemente filosóficos, eles só podem ser aqueles definidos por uma especial propriedade, que é mais externa do que interna: a impossibilidade de esses problemas serem resolvidos de maneira empírica ou pelo recurso ao que o ser humano considera um conhecimento sólido e indubitável. Por isso, a filosofia é uma possibilidade sempre aberta, por serem infinitas as circunstâncias de perplexidade máxima em que qualquer um de nós pode se encontrar. É essa, de forma clara, a situação da filosofia hoje.
Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção – Edição Edição 1849 de 12 a 18 dezembro de 2010