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Filosofia(s) africana(s) e disciplinas

Luís Kandjimbo*

Ao ter sido inscrito na agenda multilateral da UNESCO, no decurso do mandato, 1974-1987, de Amadou-Makhtar Mbow, Director-Geral, de nacionalidade senegalesa, a problemática do ensino das filosofias africanas assumiu um estatuto internacional ao nível global cuja legitimidade tinha fundamento nas assimetrias decorrentes das injustiças epistémicas, tal como se narra hoje na História da Filosofia Africana

Fontes e metodologia

A obra publicada pelo nigeriano John Olubi Sodipo (1935-1999) e o norte-americano Barry Hallen é exemplar, quando se trata de compreender as diferentes manifestações da superação da chamada “filosofia crítica”, no contexto do grande debate da década de 60 do século XX. Se tivermos em atenção os argumentos apresentados por Olubi Sodipo,no colóquio de Nairobi de 1980, torna-se mais fácil avaliar a força da crítica da crítica da etnofilosofia. Essa polarização já é observável, quando se interpretam as restantes posições, tais como as de Paulin Hountondji e Kwasi Wiredu (1931-2022).

O cerne da argumentação de Olubi Sodipo e Barry Hallen contra a corrente da “filosofia crítica” reside na abordagem metodológica da linguagem comum, suportada pela filosofia da linguística e que toma de empréstimo as ferramentas da filosofia analítica anglo-americana. A importância atribuída aos significados das palavras da língua Yoruba, por exemplo, implica o estudo dos sistemas de pensamento, do sistema conceptual, das crenças e tradições culturais das comunidades que usam a língua. Por isso, Olubi Sodipo e Barry Halle exploram a pertinência da filosofia analítica e suas metodologias, recorrendo à tese da indeterminação da tradução radical do filósofo norte-americano W.V.O.Quine (1908-2000), segundo a qual “entre duas línguas naturais, quaisquer que sejam, existem dois manuais de tradução que são ambos correctos, mas ainda mutuamente incompatíveis.” Estes pressupostos não inspiram qualquer preconceito contra a Antropologia. Pelo contrário, atestam a insuficiência do discurso monolingue das filosofias africanas, conduzindo necessariamente a inovadoras experiências metodológicas. O livro de BarryHallen, “AfricanPhilosophy. The Analytic Approach” (2006),[Filosofia Africana. Uma Abordagem Analítica], publicado após a morte de Olubi Sodipo, relata a originalidade desta perspectiva aplicada por filósofos profissionais, no contexto institucional académico nigeriano.

O malawiano Grivas Muchineripi Kayange, no seu livro “Meaning and Truth in African Philosophy Doing African Philosophy with Language”, 2018, [Sentido e Verdade na Filosofia Africana. Praticando Filosofia Africana com a Linguagem], aplica o potencial da metodologia analítica, quando se propõe explorar o uso de uma das línguas Bantu da África Austral, neste caso a língua Chewa. Sem pretensão de qualquer comportamento dogmático, Grivas Kayange afirma que o referido modelo metodológico é rentável em virtude de permitir a apreciação da multiplicidade de significados, decorrente do uso da linguagem. Em seu entender, uma filosofia africana do significado e da verdade, que recorra ao estudo da linguagem, qualifica estudo como pertencente à estrutura filosófica analítica. Deste modo, as abordagens de significado e da verdade exploram a estrutura formal ou teórica e a estrutura da linguagem comum.

Portanto, a realização dos referidos eventos científicos e o desenvolvimento de metodologias alternativas adequadas aos contextos, revelaram-se como impulsos para que a Filosofia Africana passasse a integrar definitivamente o sistema de disciplinas, possuindo a dignidade de ser ministrada em qualquer instituição de ensino.  Os Estados-membros da UNESCO tinham manifestado o seu interesse por questões respeitantes à “necessidade de filosofar”, ao “estatuto e a posição dos filósofos”, bem como às actividades específicas em matéria de transmissão do conhecimento filosófico.

Disciplinas ou disciplina?

Na verdade, a Filosofia Africana não é um simples capítulo dos Estudos Africanos, enquanto macro-disciplina das “area studies” anglo-americanas. Mas a Filosofia Africana também não é uma mono disciplina. Por essa razão, a reflexão inscrita no domínio de ensino, especialmente da “africanização” do currículo, solicita os préstimos do que,desde a década de 1990, se vem denominando por Filosofia do Ensino Superior.

Entretanto, importa recorrer à história e trazer à memória a polémica entre Oyeka Owomoyela (1938-2007) e Paulin Hountondji sobre a problemática da disciplinaridade dos “Estudos Africanos” e da “Filosofia Africana”. A crítica de Owomoyela e outros autores produziu efeitos que se traduziram na atenuação do radicalismo de Hountondji que, curiosamente, em 1984, tinha sido premiado pela African Studies Association, em virtude de ter publicado um livro com o qual prestava um valioso contributo aos “Estudos Africanos”, campo interdisciplinar que, ao lado da “Etnofilosofia” era um dos alvos das suas críticas.

O nigeriano Ikechukwu Anthony Kanu elaborou uma síntese das questões que derivam do ensino e das aprendizagens, ao chamar a atenção para os problemas respeitantes à disciplinarização com o seu livro “The Disciplines of African Philosophy”, respondendo à pergunta: Quais são as disciplinas da filosofia africana?

Se as disciplinas são unidades estruturais em que se analisa a filosofia africana, diríamos nós, a analogia sugere a comparação da filosofia africana a uma árvore. Igual às outras árvores existentes no espaço habitado pelos humanos, dir-se-ia que a filosofia africana também é constituída por ramos e folhas. Tais são os casos da epistemologia ou teoria do conhecimento, a metafísica que se ocupa da realidade e do existente, a ética ou filosofia moral, da conduta humana e dos conceitos morais, a lógica, ramo que leva à compreensão dos procedimentos formais do raciocínio.

Por outro lado, importante será determinar a especificidade das árvores e dos respectivos ramos, de acordo com os condicionalismos do meio em que se desenvolve, porque ela é mais uma entre várias das que os humanos cultivam. Os seus frutos são consumidos e as sementes são transmitidas pelos membros das novas gerações. Deste modo, levantam-se questões como a africanização do currículo, à luz da Filosofia Africana da Educação e do Ensino Superior, em especial. Estas remetem para outras duas perguntas: O que significa africanizar o currículo de filosofia? Faz sentido falar em africanização do currículo de filosofia?

Africanização do currículo

Ora, as filosofias são disciplinas em todos os sistemas educativos do mundo. Por essa razão, têm denominações que as associam aos países e continentes. Consequentemente, a Filosofia Africana deve ser uma disciplina escolar e académica, a ser leccionada em diferentes escalões dos sistemas educativos contemporâneos. Emergem aí dois temas e correspondentes problemas:  1) Caracterização das filosofias africanas; 2) Ensino e a aprendizagem das filosofias africanas.

Com esta focagem afastamo-nos dos debates meta filosóficos que durante muito tempo se concentraram estritamente em problemas de definição. A reflexão transfere-se agora para o domínio da educação filosófica. Donde as perguntas: i) A Filosofia Africana é autónoma ou integra os Estudos Africanos? Quais são as disciplinas que estruturam o campo da Filosofia Africana?

As respostas a estas perguntas supõem uma tematização preliminar daquilo a que se vem designando por africanização do currículo.  O debate deste tópico conta com posições de diversos autores. Trago à conversa apenas quatro proponentes: Arinze C. Agbanusi, Munamato Chemhuru, Edwin Eteyibo e Jonathan O. Chimokonam.

Arinze Agbanusi e Munamato Chemhuru

Em artigo publicado em 2004 na African Research Review, da Etiópia, Arinze C. Agbanusi, professor nigeriano do Departamento de Filosofia da Universidade Nnamdi Azikiwe, recomendava a introdução do ensino da Filosofia Africana e o incentivo para a criação de mais cursos de especialização, ao nível de pós-graduação e Departamentos de Filosofia Africana, de instituições africanas de ensino superior. Defendia igualmente a ideia de se transformar a Filosofia Africana em área de formação semelhante à Filosofia Ocidental.

O zimbabweano Munamato Chemhuru, em “Pursuing the agenda of Africanising philosophy in Africa: Some possibilities”, artigo publicado em 2016, na revista South African Journal of Philosophy, considera que a africanização devia situar a epistemologia africana no centro da Filosofia Africana.  Para tal, afirma que a transformação da filosofia em África é uma inevitabilidade, se os desafios de desenvolvimento continental forem abordados de modo crítico, a partir de uma perspectiva filosófica africana.

Edwin Eteyibo

Na edição temática da revista sul-africana a que nos reportamos, Edwin Eteyibotrava um debate com Thaddeus Metz e formula igualmente uma pergunta: “Why ought the philosophy curriculum in universities in Africa be Africanised?” [Por que razão deve o currículo de filosofia nas universidades de África ser africanizado?].

Para Edwin Eteyibo africanização significa evidenciar o que é africano, isto é, as características distintivas, experiências, práticas, crenças, valores e modos de vida representativos. Tratando-se do currículo, Eteyibo sustenta que isso significa proceder à incorporação dos referidos traços e experiências representativos dos Africanos no currículo de Filosofia, enquanto disciplina escolar e académica. No entanto, entende que se deve destrinçar duas formas de africanização do currículo. De um lado, está a”visão radical”, segundo a qual se deve exclusivamente incorporar “paradigmas de conhecimento de base africana”, isto é, que reflictam as tradições africanas. De outro lado, a “visão moderada”, que indica a adopção de “paradigmas de conhecimento de base africana”, incorporando a tradição africana ao lado de outros paradigmas ou tradições de conhecimento.

Na perspectiva de Eteyibo, a “visão moderada” fornece um modelo de currículo que articula,por exemplo, as tradições africanas e as ocidentais, promovendo um diálogo entre as várias tradições e filosofias. Daí resulta um currículo diversificado. Mas a africanização do currículo de filosofia em universidades na África deve ter os seus fundamentos. Eteyibo enuncia vários. A reparação da injustiça epistémica, a dimensão civilizacional e a identidade são três deles. Ele considera que a africanização é inevitável, na medida em que se torna necessário neutralizar ou compensar as injustiças epistémicas a que foram submetidos os Africanos. Em segundo lugar, a civilização deve ser tomada como fundamento da africanização de modo a permitir que as civilizações africanas contribuam para o progresso da humanidade. Em terceiro lugar, vem a identidade como base para africanização, compreendendo auto compreensão das comunidades e dos sujeitos que a integram.

Jonathan Chimokonam

Por sua vez, em 2016, Jonathan O. Chimokonam, no seu artigo, “Can the philosophy curriculum be Africanised? An examination of the prospects and challenges of some models ofAfricanisation”, publicado na mencionada revista sul-africana, interrogava-se acerca do que significa africanizar o currículo de Filosofia, tendo esboçado respostas possíveis. Para o efeito, propõe três hipóteses de africanização do currículo de Filosofia. Primeiro, o modelo (B), em que a letra (B) da palavra “balance”, em inglês, significa equilíbrio. Consiste em proceder ao ajustamento dos currículos de filosofia nas universidades africanas, em prol de um equilíbrio entre os cursos de Filosofia Africana e Filosofia Ocidental. Este modelo garante uma oferta equilibrada de formação filosófica para os povos Africanos.

Em segundo lugar, vem a competição subjacente ao modelo (C), de competição. Com ele consagra-se o surgimento de Departamentos de Filosofias Africanas e Departamentos de Filosofias Ocidentais nas universidades africanas. Jonathan O. Chimokonam, o seu proponente, defende a existência de dois currículos diferentes por um determinado período de tempo, ao que se seguiria a opção pelo  uso do que se revelasse mais útil a longo prazo.

Para Chimakonam, o modelo (D) caracteriza-se pela substituição (displacement, em inglês) do currículo ocidental pelo currículo africano. A finalidade seria a de transformar completamente o ensino de filosofia em África. Trata-se de um modelo que inspira suspeita relativamente à utilidade ou benefícios intelectuais do currículo ocidental para os estudantes Africanos. Neste sentido, as disciplinas ministradas nos Departamentos de Filosofia das universidades africanas seriam prioritariamente disciplinas de Filosofia Africana. Os especialistas das suas disciplinas seriam os professores desses departamentos.

Ao concluir a abordagem do tópico, Chimakonam manifesta-se a favor da africanização dos currículos de filosofia nas universidades de África. Por isso, defende o modelo (B), distanciando-se do modelo (C), que gozava a sua preferência na época em que apresentou uma proposta na Universidade de Calabar.

Em defesa do referido modelo de africanização do currículo, Jonathan O. Chimokonam vem propor a “Política contra a Marginalização da Filosofia Africana”, abreviadamente PAAP, em inglês. É um libelo com que pretende combater a supressão de conteúdos de filosofia africana nos currículos oficiais de instituições de ensino em diferentes partes do globo, e no próprio continente africano. Tomando como exemplo a Nigéria, Chimokonam refere que em África o currículo de filosofia é predominantemente ocidental, quer no conteúdo, quer na abordagem. São tradições europeias e anglo-americanas, designadamente, as analíticas e as continentais, que promovem essa marginalização. Por isso, para o líder da Escola Filosófica de Calabar, revela-se necessário desenvolver novas tradições filosóficas. Donde o apelo à africanização do currículo se deve traduzir em efectivo exercício de autodeterminação e “descolonização da filosofia”.

Conclusão

Portanto, o estudo da Filosofia Africana como disciplina escolar e académica é hoje uma realidade no continente africano, apesar dos condicionalismos que se conhecem. De resto, os debates comprovam-no. A publicação de antologias de textos, bem como de ensaios sobre a história da filosofia africana, antiga, medieval, moderna e contemporânea, e em todos os principais ramos disciplinares são também prova disso. Actualmente, é possível elaborar uma bibliografia instrumental que possa estar ao serviço de estudantes e investigadores. Trataremos do tópico em outra conversa. A título de informação, faz sentido fornecer referências de algumas antologias. Destaco apenas três: 1) “African Philosophy Essential Readings”, 1991, [Textos Fundamentais de Filosofia Africana], uma colectânea de textos clássicos da Filosofia Africana Contemporânea, organizada por Tsenay Serequerberhan. Trata-se de uma selecção representativa de importantes textos dispersos em revistas especializadas; 2) “The African Philosophy Reader”, 2002, [Textos de Filosofia Africana], uma iniciativa editorial do Departamento de Filosofia da Universidade da África do Sul que representa um dos expressivos sinais de reforma curricular no domínio da filosofia, além de ser reveladora da existência de uma dinâmica comunidade filosófica na África do Sul; 3) “A Companion to African Philosophy”, 2004, [Manual de Filosofia Africana], obra de que Kwasi Wiredu foi coordenador editorial. No prefácio, ele sublinha o facto de o livro servir como texto principal na pós-graduação, bem como no nível de graduação. Para acompanhar os avanços da filosofia africana contemporânea, nele o leitor encontra indicações bibliográficas em todos os capítulos.


*Doutorado em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.

[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 28/05/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/filosofia-s-africana-s-e-disciplinas/

Marcos Carvalho Lopes

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