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Hipátia de Alexandria, uma egípcia na filosofia antiga

Luís Kandjimbo |*Escritor

A marginalização de filósofas Africanas será mais uma vez ilustrada através de notas que as fontes da história da filosofia, numa perspectiva analítica, permitem elaborar.

Na historiografia ocidental as referências à vida e obra da filósofa egípcia, Hipátia de Alexandria (370-415) são tardias. Nesses registos é conotada como filha da Grécia, transmitindo-se a falsa ideia de Alexandria estar situada fora do continente africano. Importa inscrevê-la na galeria das filósofas Africanas, em homenagem a uma verdadeira narrativa que se deve traduzir em História da Filosofia, fundada em coordenadas civilizacionais do tempo e do espaço.

O berço

A cidade de Alexandria é uma parcela territorial do Egipto, tendo-se desenvolvido a partir do ano 332,a.C, durante a ocupação de Alexandre, o Grande (356-323a.C), rei da Macedónia. Por sete séculos,Alexandria foi o berço da matemática e da filosofia gregas. No dizer de Théophile Obenga, Alexandria tinha-se tornado,na época, “o primeiro centro intelectual e científico do mundo antigo”, em terras africanas. Aliás, após o seu apogeu, o Egipto foi sucessivamente ocupado e transformado em colónia de vários impérios. A Biblioteca de Alexandria contava então com setecentos mil títulos. O seu modelo de arquitectura e organização inspirava-se na Biblioteca de Ramsés II (1301-1235, a.C.) que Diodoro de Sicília (90-30 a.C.)descreveucomo sendo “a biblioteca sagrada”, em cuja entrada estava escrito “Clínica da Alma”, ao lado da qual havia “imagens de todos os deuses doEgipto, com o rei oferecendo-lhes igualmente o que era adequado para cada um, como se para mostrar a Osíris e aos conselheiros abaixo que ele passou a vida sendo piedoso e lidando com justiça com homens e deuses”.Esse Egipto “helenístico”, que herda o património intelectual antigo, constitui o berço da filósofa Hipátia de Alexandria, filha de Theon de Alexandria (340-400). A interpretação das fontes permite concluirque, tal como o fez Maria Dzielska (1942-2018), os epítetos identitários atribuídos ao seu pai, Theon de Alexandria, anunciavam a sua “ascendência greco-egípcia”, além das “suas ligações e devoção relativa à cidade natal e à tradição multilingue alexandrina”.Por outro lado, alguns historiadores consideram que Hipátia aprendeu matemática e astronomia com o pai. Não aconteceu o mesmo com a filosofia porque o pai não era filósofo.

Resistência à helenização

Do ponto de vista comercial, Alexandria ocupava uma posição geoestratégica relativamente ao Mediterrâneo, a África Oriental e ao Médio Oriente. O seu porto era uma das principais entradas e saídas de mercadorias, âncora de exportações e importações do continente africano. A prova disso é o “Periplus Maris Erythraei” (Périplo do Mar Eritreu), um documento antigo do século I, usado como manual destinado a comerciantes que circulavam na rota que ligava o Egipto no tempo do império romano, a costa oriental africana, o sul da Arábia e a Índia.No entanto, o processo de helenização religiosa e filosófica enfrentou resistências estruturais. O historiador inglês, Philip David Scott-Moncrieff (1882-1911) no seu “Paganismand Christianity in Egypt” (Paganismo e Cristianismo no Egipto), considera que durante o declínio da era ptolemaica, os egípcios nativos ainda mantinham suas características nacionais intactas, podendo dizer-se que se vivia um período de renascimento religioso.É que desde a época dos primeiros colonos gregos a religião grega nunca suscitou a adesão dos egípcios e era vista com desprezo como a fé bárbara de alguns estrangeiros. Por isso,a religião de Alexandria nunca foi puramente helénica.Esta é uma das razões por que a figura mártir de Hipátia, no século V, representava a força da reinvenção do pensamento endógeno, no contexto de hegemonias e imposição de crenças, religiões e filosofias.

Hipátia nas fontes da história da filosofia

Entre as fontes antigas para conhecimento da vida e obra de Hipátia, às quais se confere autoridade, destacam-se três autores: Sócrates Escolástico (380-450), com obra escrita por volta de 450; Damáscio (458-538),o último estudioso da Academia em Atenas, com a biografia de Isidoro, escrita no início do século VI; o bispo copta, João de Nikiu, com asua “Crónica” do século VII. A obra epistolográfica de Sinésio de Cirene (370-414) tem igualmente a sua importância,na medida em que fornece informação acerca da memória que os discípulos de Hipátia revelam a respeito da sua professora.

Em publicações mais recentes que ocorreram no século XX, a versão traduzida em português do livro da historiadora polaca,Maria Dzielska, “Hipátia de Alexandria”, parece ser uma excelente base de introdução ao conhecimento da vida e obra da “filósofa egípcia” como lhe chamou o filósofo neoplatónico bizantino Miguel Pselo (1018-1078), citado porKarl Krumbacher (1856-1909)em “História da Literatura Bizantina. De Justiniano ao Fim do Império Romano do Oriente(527-1453)”, livro publicado em 1897.

Ideias e obra

Hipátia era filha do matemático e astrónomoTheon de Alexandria e esposa de Isidoro, umoutro filósofo. Distinguiu-se pela sua dedicação ao estudo, interpretação da obra de Platão, Aristóteles e outros filósofos. Aderiu às correntes da escola neoplatónica formada em torno de Plotino, tendo alcançado elevados níveis de reputação e desempenho intelectual para o comum dos filósofos do seu tempo.Gozava de grande estima nos meios políticos e religiosos. Aos discípulos transmitia as suas abordagens filosóficas dessa escola.A excelência que imprimia ao seu ensino atraía interessados originários de diversos lugares.

Hipátia professava o neoplatonismo e crenças religiosas não-cristãs, vulgarmente classificadas como”paganismo”. No seu quotidiano, envergava o “tribon”, capa e uniforme dos pregadores cínicos e seus sucessores monásticos. Irradiava a sua erudição através de comportamentos que caracterizam os filósofos cínicos na sua fase decadente. A sua notoriedade e consagração ao ensino são demonstradas por Sinésio de Cirene (370-414) um dos seus ilustres discípulos, através do teor das suas cartas. Era uma mulher bela, atraente e virtuosa, tendo morrido virgem. É-lhe atribuída autoria de várias obras, entre as quais, existem comentários. Por exemplo: sobre a obra de Euclides; sobre o “Almagesto” de Ptolomeu, sobre o “Cânone Astronómico”e”Aritmética” de Diofanto de Alexandria; sobre as”Cónicas” de Apolónio; sobre as “Secções Cónicas” de Apolónio de Pérgamo (século III a.C.).Admite-se que a totalidade da sua obra pode representar um universo de mil páginas escritas em grego.

Admiração dos discípulos

Conta-se que, perante o arrebatamento de um aluno apaixonado, Hipátia tê-lo-á desencorajado, exibindo um penso higiénico seu,já usado, a que se seguiu uma advertência: “É por isso que estás apaixonado, meu jovem, como vês não é nada que seja bonito”. Em compensação, Hipátia terá atenuado os efeitos traumatizantes do discípulo apaixonado, recorrendo a uma terapia,centrada na teoria da harmonia musical, explorando os acordes enarmónicos, cromáticos e diatónicos. Semelhante comportamento, parecendo inspirar-se em princípios do movimento filosófico dos cínicos, tem sido motivo para que a filósofa de Alexandria seja integrada na lista tomada como seguidora da filósofa Hiparquia de Maroneia (350-280, a.C.) e outros cínicos, tais como Antístenes (446-366, a.C), Diógenes de Sinópio (412-323, a.C.) e Crate de Tebas (365-285,a.C.), marido de Hiparquia.

Para Sinésio de Cirene, Hipátia era a mentora inesquecível. Na epistolografia deste discípulo de Hipátia, selecciono excertos das cartas nº 137 e 154. São textos integrados no livro de autoria do antigo aluno oriundo das terras de Cirene, actual Líbia.

Na cartanº137, endereçada ao seu condiscípulo Herculiano, Sinésio dá testemunho da grata experiência que ambos tiveram, enquanto alunos de Hipátia: “Vimos com os nossos próprios olhos e ouvimos com os nossos próprios ouvidos a autêntica intérprete dos mistérios da filosofia”. Na segunda carta, Sinésio de Cirene anuncia a publicação de dois livros: “um promovido por Deus” e “outro pela crítica dos homens”. Mas lamenta o facto de”alguns dos de capa branca e também os de capa escura”, o criticarem devido às suas opções e estilo de escrever e filosofar, já presta muita atenção à beleza do estilo e à cadência, além de recorrer a figuras retóricas. Entende que o filósofo não deve odiar a literaturae tratar apenas de temas divinos. Por essa razão, invoca a necessidade de purificar alinguagem e tornar as ideias mais agradáveis.

Misoginia e inveja

Hipátia frequentava os mais altos círculos e convivia com pessoas do sexo masculino, sem complexos. Além disso, suscitava admiração devido à sua castidade, enquanto mulher virgem. Orestes, que era uma das figuras políticas de Alexandria com quem era habitualmente vista a conversar, disputava as atenções da sociedade local com Cirilo, aquele que viria a ser sucessor do bispo da Igreja de Alexandria. A reputação intelectual de Hipátia incomodava os cristãos, tendo sido tomada como mentora de Orestes, influenciando-o negativamente no sentido de impedir o estabelecimento de boas relações entre este e o bispo. Instigados por Cirilo, então bispo da Igreja de Alexandria, os cristãos mais fervorosos descarregaram a sua ira e inveja. Assim, decidiram assassiná-la. Atacaram a sua carruagem, quando regressava para casa. Rasgaram a sua roupa e golpearam-na até à morte. Esquartejaram cruelmente o seu corpo, tendo em seguida incinerado os seus pedaços. Corria o mês de março, na Quaresma do ano 415. Cirilo (375-444) era o bispo de Alexandria.

Hipátia na história da filosofia

A biografia de Hipátia de Alexandria é hoje relativamente bem conhecida, no contexto da desmarginalização das mulheres na Filosofia. Não é a sua divulgação que constitui tópico digno de problematização e debate. O verdadeiro problema surge quando nos interrogamos e procuramos dar resposta a três perguntas: 1) Por que razão os eminentes filósofos nascidos em África e que aí morreram são sempre personagens de narrativas históricas da filosofia ocidental; 2)A que topologia corresponde o nome de Hipátia na narrativa histórica da filosofia?3) Qual é o critério que permite inscrever Hipátia de Alexandria na história da filosofia ocidental?

Portanto, a necessidade de respostas às questões colocadas tem uma das suas manifestações no capítulo II do Compêndio de Filosofia Africana, assinado por DismasMasolo, “AfricanPhilosophers in theGreco-Roman Era”. O filósofo queniano dedica algumas linhas a Hipátia. Mas considera-a como “filósofa grega nascida em Alexandria”. O equívoco pode ser sanado, se se compreender o sentido e alcance do título atribuído ao capítulo e ao tratamento que reserva a outros filósofos Africanos da era greco-romana, tais como Orígenes deAlexandria (c.185-c.253), Tertuliano de Cartago (160-220) e Santo Agostinho (354-430).

*Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia

Publicado originalmente em: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/hipatia-de-alexandria-uma-egipcia-na-filosofia-antiga/

Marcos Carvalho Lopes

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