Luís Kandjimbo |*
Escritor
Em Angola, o ensino da História de África teve início em 1975, no contexto do processo de descolonização, quando a constituição do Governo de Transição assinalava, a partir do mês de Janeiro, a aplicação dos acordos celebrados entre os três movimentos de libertação que representavam o povo angolano, de um lado, e o governo português, de outro lado.
Frequentando o primeiro ciclo do ensino liceal, tomei contacto com os primeiros materiais produzidos pelo grupo de historiadoras e historiadores angolanos que, ao serviço do Ministério da Educação e Cultura, introduziam as necessárias rupturas, tendo em vista a institucionalização de um novo sistema educativo. Esses fascículos de História de África veiculavam novos factos, novas personagens e outras narrativas do nosso continente.
Estava tudo em linha com o novo discurso historiográfico africano. Até essa data, os conteúdos do currículo e programa de História eram dominados pela Europa. O Egipto fazia parte do Oriente. Mas, daí em diante a memória do nosso continente passava a ter a sua âncora, em primeiro lugar, na arqueologia com a qual se lançavam os fundamentos para a compreensão da temporalidade e do processo de hominização cujo berço é o próprio continente africano.
O período pré-colonial é um longo segmento de tempo em que o conceito de Idade Média se torna instrumental. A narrativa da “reconquista” da Península Ibérica, após sete séculos de colonização de árabes, mouros e berberes, já não era a mesma, tal como se ensinava desde o ciclo preparatório do ensino secundário. Ibn Khaldun (732-808, da hégira; 1332-1406, era cristã), Ibn Batuta (1304-1377) e Ahmed Baba (1556-1627) eram três novas personagens históricas que ocupavam espaços na narrativa. Bilād As-Sūdān, Songhay, Gao, Ghana, Kumbi Saleh, Teghaza constituíam novos topónimos. Passavam a representar os lugares a partir dos quais outros sujeitos narram a sua História a que, ao mesmo tempo, subjaz um pensamento filosófico correspondente. Para a conversa de hoje, tal como tinha prometido, vou falar-vos de Ibn Khaldun.
Nota biográfica
A mais qualificada fonte de informação acerca da sua vida é a sua própria autobiografia, inserida na secção introdutória do seu livro “El Muqqadima. Prolegómenos para a História Universal”. A versão com a qual trabalho é obra traduzida entre 1863-1868 pelo filólogo irlandês, William Mac Guckin Baron de Slane.
Ibn Khaldun nasceu em 1332, na cidade de Tunis. Estudou Direito, Filologia e Teologia com os grandes mestres do seu tempo, tendo uma boa parte deles sucumbido com a “grande peste” que devastou o Norte de África, no século XIV. Os seus pais foram igualmente vítimas deste infortúnio. Aos vinte anos de idade, quando iniciou a sua actividade intelectual e política, os países africanos do Mediterrâneo estavam a ser assolados por crises e disputas políticas. Mas Ibn Khaldun era igualmente movido por uma “avidez de conhecimentos” e “grande zelo para adquirir e frequentar escolas e cursos”. Em 1372, instala-se, com a família, na região central do Maghreb.
Dois anos depois tenciona reformar-se e fixar residência em Espanha para se consagrar aos estudo e à investigação. Três anos depois estabelece residência em Tlemcen, noroeste da actual Argélia. Durante o seu retiro de quatro anos, conclui os seus “Prolegómenos” e inicia a redacção do seu trabalho sobre história universal. Nessa altura, sobrevive após o ataque de uma grave doença. Passados outos três anos, vai para Tunis. Mas em 1383 decide ocupar o posto de professor no Colégio de El-Camhiya, no Cairo. Após as diferentes aventuras pelos territórios do norte de África e Península Ibérica, actividade política, diplomática, experiências carcerárias e a dedicação aos estudos, em 1387 parte em peregrinação a Meca. Regressa ao Cairo e decide dedicar-se exclusivamente ao ensino e à investigação. Em 1394, lança mãos à redacção da sua autobiografia. Faleceu no Cairo em 1406, aos setenta e quatro anos de idade.
Ibn Khaldoun e a filosofia africana em língua árabe
Em 2015, o filósofo marroquino Ali Benmakhlouf publicou um livro cujo título é por si só eloquente, “Pourquoi Lire les Philosophes Arabes” [Por que ler filósofos árabes?]. Através dele interroga-se acerca da necessidade que se pode ter de ler obra de filósofos árabes. Em seu entender, a filosofia árabe é aquela que se revela entre os séculos VIII e XV. O seu esplendor permite identificar filósofos de várias origens que têm o árabe como língua de trabalho. Infelizmente, a historiografia filosófica ocidental tem vindo a reduzi-la ao anonimato, diluindo-a naquilo que na Europa se chama filosofia medieval ou filosofia da Idade Média.
Ibn Khaldun não deixa de se filiar na tradição desses homens de elevada erudiçao e inteligência que através da especulação e do recurso a deduções intelectuais chegam à percepção do sensível e da essência real das coisas. Em árabe são os “felasefa” ou “filasouf” no plural. A palavra é tomada de empréstimo do grego, significando amante da sabedoria.
Ibn Khaldun é um desses filósofos nascidos em África que, no seu tempo, se distinguiu pela intensidade com que se consagrou à vida pública e à reflexão. O seu pensamento está plasmado em obra escrita de que “El Muqqadima. Prolegómenos para a História Universal” são uma das suas altas expressões.
Ifrikiya é o topónimo antigo do território ocupado pelos Amazigh cuja história mereceu a sua atenção, vulgarmente designados por “berberes” que habitavam os território actuais da Argélia, Líbia, Marrocos, Mauritânia e Tunísia. Daí deriva o topónimo continental. Por conseguinte, a conexão territorial de Ibn Khaldun com África é inegável e o seu sentimento de pertença pode ser comprovado pelo conhecimento que revela sobre as questões civilizacionais da época.
El Muqqadima e a ideia de história
É uma obra com 1337 páginas, comportando seis secções que se distribuem por três livros. A sua organização gravita em torno de uma ideia a partir da qual se inspira Ibn Khaldun: a necessiade de fornecer elementos para a redacção de uma História Universal sobre os diferentes povos do mundo. Aos “Prolegómenos” seguiram-se outros volumes, por exemplo, a História dos Berberes.
Ao enunciar a trave mestra em que se desenvolve o livro, Ibn Khaldun define o problema que o mobiliza, a história. Considera-a como “um dos ramos do conhecimento que permite a sua transmissão de uns povos para outros, de uma nação para outras; atrai a atenção de estudiosos de países longínquos, sendo a sua aquisição desejada mesmo pelos mais humildes e desfavorecidos; é procurada por vontade dos reis e poderosos, e apreciada tanto por homens instruídos quanto por homens ignorantes”.
Conclui que a “história é um importante ramo da filosofia e deve estar inscrita no conjunto das ciências”. Ao mesmo tempo, identifica o seu traço distintivo, que consiste na nobreza do seu objecto, sua grande utilidade e importância dos seus resultados. A história representa um meio por via do qual se torna possível conhecer os costumes de povos antigos, os actos dos profetas e a administração dos reis.
Em todo o caso, Ibn Khaldun não deixa de clarificar o seu ponto de vista acerca do “verdadeiro objecto da história”, a sua teleologia. É uma ciência que assenta na interpretação e compreensão do “estado social do homem”, isto é, a civilização. Permite obter informações sobre os fenómenos que lhe são naturalmente instrínsecos, nomeadamente “a vida selvagem, o abrandamento dos costumes, o espírito de família e de tribo, os diversos géneros de superioridade que os povos adquirem uns sobre outros, as diferenças de classes, […] todas as mudanças que a natureza das coisas pode operar no carácter da sociedade”.
Erros na construção da narrrativa histórica
Será interessante compeender aquilo a que o filósofo tunisino qualifica como causas de erros ou falsificação da narrativa histórica. Ibn Khaldun identifica sete causas que podem estar na origem de erros na construção da narrrativa histórica:
1) A afeição dos homens por certas opiniões e doutrinas;
2) A excessiva confiança que se atribui às fontes, sem as submeter a exame análogo ao que se designa com as seguintes palavras latinas: improbation e justification;
3) A ignorância do fim que os actores dos grandes acontecimentos tinham em vista;
4) A facilidade com que o espírito humano conduz à crença na possibilidade de se ser detentor do monopólio da verdade;
5) A ignorância das relações que existem entre os acontecimentos e as circunstâncias que as acompanham;
6) A tendência de os homens ganharem favores de personagens ilustres e dignitários;
7) A ignorância da natureza das coisas que emanam da civilização.
História e Filosofia: ciências intelectuais
No Livro III do “El Muqqadima”, Ibn Khaldun esboça a sua classificação das ciências, poder-se-ia dizer, a sua epistemologia, destacando as ciências intelectuais que estão naturalmente associadas ao homem, enquanto ser dotado de capacidade reflexiva. Por isso, entende que não é uma capacidade especial, exclusiva de qualquer nação. Trata-se de um tipo de ciências que existiram sempre ao serviço da espécie humana, desde os primórdios da civilização em todo o mundo.
Também designa-as por ciências filosóficas ou simplesmente filosofia. São quatro: 1) Lógica, ciência que protege o espírito contra os falsos juízos cuja utilidade reside no facto de permitir que se distinga o verdadeiro do falso em questões respeitantes aos conceitos e às noções; 2) Ciência da investigação ou ciências naturais, que se ocupa das coisas sensíveis; 3) Metafísica, ciência que examina as coisas sobrenaturais e os seres espirituais; 4) Matemática, ciência que examina as quantidades, nomeadamente, a) geometria, estuda as quantidades discretas e contínuas; b) aritmética, estuda o número e suas propriedades; c) música, cuida do conhecimento das relações entre os sons e os tons entre si, bem como a sua modulação no canto; d) astronomia, estuda a forma do espaço celeste.
Mais adiante Ibn Khaldun dedica exclusivamente um capítulo à filosofia, para o qual chama a atenção do leitor, à semelhança de outros que tratam das ciências. Manifesta aí a sua erudição e profundo conhecimento da tradição filosófica árabe andaluz que prosperou na Península Ibérica, designadamente, a obra de filósofos naturais de Espanha, tais como Ibn Rushd (1126-1198), conhecido por Averroes, e Ibn Bâjja (1085-1138), conhecido por Avempace.
Portanto, conhecer a obra de filósofos africanos de língua árabe é hoje uma necessidade histórica e civilizacional. É este o esforço que vêm empreendendo filósofos como o senegalês Souleymane Bachir Diagne.
.
.
Disponível em: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/ibn-khaldun-e-a-filosofia-da-historia/ publicado em: 31/10/2021
É de grande importância o debate em torno da filosofia africana, conhecimento milenar que foi subjugada pelo eurocentrismo.