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Incipit Filosofia Africana

Quando e como começa a filosofia africana? Qual a importância (e as armadilhas) dessa questão?

Marcos Carvalho Lopes*

…começa a filosofia africana.

Quando? Como? Onde? Começou?

Nessa descrição, o primeiro susto. 

Incipt, as palavras do começo de um texto, por vezes na Idade Média gravadas com uma fonte diferente, também as notas que introduzem uma canção. Mas, no caso da filosofia africana, a escolha de um começo define muito mais do que a forma de contar a história.

Se começamos a contar a história da filosofia africana a partir da modernidade, tendo a África como o Outro da Europa, não mantemos a referência paradigmática eurocêntrica (identificando seu advento com a construção simultânea da ideia de raça) e negamos a existência de filosofar antes do período colonial? Se começamos a contar a filosofia africana pela Etiópia ou Antigo Egito não caímos na proposta de uma narrativa de progresso e ocultamento, idealizando um começo absoluto como nas narrativas eurocêntricas? Se começamos a contar a história da filosofia africana por sua instauração como disciplina acadêmica no século XX, não negamos todas as formas de reflexão e saber que não se encaixam no paradigma do ontofalogocentrismo[1]?

Seguindo o filósofo congolês Valentim Y. Mudimbe, estes começos indicam “uma gênese arbitrária ou um ponto de partida em uma história de filosofia. Eles representam uma concepção da disciplina que pode ser re-teorizada a partir da configuração contextual que lhe dá conta como um sistema intelectual válido ou como uma representação alternativa do que é. Nem a amplificação de uma perspectiva ortodoxa, nem seu desvio pode ser isento da ideologia que as explica e regula como corpos de conhecimento construídos em um tempo dado, dentro de uma formação social regional” (MUDIMBE, 2021, p.21-22).

Para quem segue a reta opinião da ortodoxia, a narrativa teleológica do desenvolvimento da humanidade europeia é a própria história da razão, a filosofia um processo de afastamento dos mitos que fez florescer a Ciência e a Verdade (em sua versão convergente, monoteísta) numa perspectiva universal, o Absoluto. Mas eis que a exclusão da África (e da América Latina) como parte da história da filosofia não é algo que se pode separar da própria história da história da filosofia, que é a história da invenção da Europa, das ideias de raça, de História, de Razão (BERNASCONI).

Mas um segundo começo é sempre um recomeço. E como isso coloca em questão o próprio significado daquilo que se chamava comumente de filosofia, que passa a “traduzir o significado geral de uma visão do mundo, tal como é transmitida através de práticas cotidianas e suas referências normativas”. A diferença que justificava a exclusão, como uma precariedade, uma incompletude ou atraso é também a socialização do cogito e de sua dialética (Claude Lévi-Strauss).[2]

 A crise da razão europeia não significou só a morte da ideia de Homem, mas a necessidade de ampliação e questionamento das Humanidades, das estruturações binárias e oposições estruturais. A contaminação mitológica da história da razão, a racionalidade dos mitos e a impureza do branco fez a repetição tornar-se mais difícil. Como o poeta Carlos Drummond de Andrade, que resumiu em um verso sua resistência a ser reificado: “O homem, chamar-lhe mito não passa de anacoluto”. [3] E talvez seja nesta posição de anacoluto, de desvio, de algo que não se segue, de desafio e desafino, que principia a filosofia africana. Colocando em xeque a acomodada perspectiva binária que separava as “visões de mundo” (Weltanschauung) e a perspectiva crítica da racionalidade ocidental.

Essa dobra ainda não se completou, mas já trouxe consigo uma problematização de qualquer começo, “incluindo uma crítica das teorias que consideravam pré-filosóficas toda a experiência africana, especialmente suas narrativas explícitas sobre procedimentos para domesticar a natureza e naturalizar a cultura, e uma reapreciação judiciosa da própria noção de mito como um instrumento útil na articulação das práticas pluralistas africanas de filosofia” (Idem, p.22).

Então, os começos da filosofia africana problematizam a filosofia.

Referências

MUDIMBE, V. Y. “African Philosophy Incipit”. In: MUDIMBE, Valentin Y.; KAVWAHIREHI, Kasereka. Encyclopedia of African Religions and Philosophy. Springer, 2021.

BERNASCONI, Robert. “Etnicidade, cultura e filosofia”. Compendio de Filosofia. Trad. Luiz Paulo Rouanet, São Paulo: Loyola, 2002. p. 611-625.

SZTUTMAN, Renato e MATAREZIO FILHO, Edson Tosta, «Sobre Lévi-Strauss e Filosofias Indígenas – Entrevista Com Renato Sztutman», Ponto Urbe [Online].16 | 2015, posto online no dia 04 setembro 2015, consultado o 07 junho 2023. URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/275 ; DOI: https://doi.org/10.4000/pontourbe.2753


*Marcos Carvalho Lopes ([email protected]) nasceu em Jataí, Goiás. É pós-doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-RJ; doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás e Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás. Trabalhou entre 2014-2021 na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB-BA). Atualmente é professor na Universidade Federal de Jataí (UFJ) em Goiás. Autor de Canção, estética e política: ensaios legionários (mercado de letras, 2012), Máquina do Medo (PUC-GO, 2013), Conversa com notas de rodapé: questões para a filosofia africana (Pedro & João, 2022), Entusiasmo dos deuses: ensaios sobre filosofia e cultura popular brasileira (Apeku, 2023) e Topos aboiados. Cultura popular e o etos do lugar comum (Kelps, 2023 no prelo).  Junto com Murilo Ferraz criou o podcast filosofia pop (filosofiapop.com.br) e publicou o livro  podcast filosofia pop: ano 1 (Prime, 2019); é organizador de botAfala: Ocupando a Casa Grande (Pedro & João, 2019) e Tcholonadur: Entrevistas sobre filosofia africana (Pedro & João, 2023, no prelo).


[1]  “Ontofalogocêntrico” é um termo que combina as palavras “onto”, “falo” e “centrismo” e é usado para descrever uma tendência ou viés filosófico que privilegia a centralidade do ser, da linguagem e da razão como fundamentos exclusivos do conhecimento e da realidade. O termo é derivado de três conceitos-chave: 1. “Onto” refere-se ao ser ou à existência em si mesmo, destacando a ênfase na ontologia, o estudo do ser e da realidade. 2. “Falo” é uma referência simbólica ao falo masculino, representando o domínio e a autoridade tradicionalmente associados aos homens. 3. “Centrismo” indica uma posição central ou dominante, sugerindo a visão de que a realidade e o conhecimento devem ser compreendidos a partir de um ponto central fixo.

Portanto, “ontofalogocêntrico” descreve uma perspectiva que valoriza a primazia do ser, da linguagem e da razão, muitas vezes em detrimento de outras formas de conhecimento e experiência, e reflete uma visão hierárquica e masculinizada da realidade.

[2] A referência principal é o livro de Lévi-Strauss Totemismo hoje que é assim explicada por Renato Sztutman: “Nessas várias vezes que Lévi-Strauss recorre a Rousseau, ele recorre a Rousseau como antídoto para a ideia do cogito, do penso logo existo, essa separação entre o homem e o natural. Quando Rousseau diz que a condição do pensamento é a identificação com o outro, e esse outro não é necessariamente humano, ele é animal, ele é planta, isso é condição para o pensamento. E aí se gente for pensar o que é esse pensamento mítico senão justamente esse pensamento que se coloca nesse momento anterior dessa passagem que é fundamental pro Rousseau da natureza para cultura. É um pensamento que se coloca como possibilidade de pensar o mundo em que essas coisas não estavam separadas. Lévi-Strauss diz que, se você perguntar para um índio o que é o mito, ele vai dizer que é uma história do tempo em que os animais ainda eram humanos, ou coisa do tipo. A mitologia é esse pensamento que recusa essa passagem, que se coloca anterior a essa passagem, e tudo se passa como se pensar fosse a possibilidade de imaginar esse mundo anterior de uma certa passagem da natureza pra cultura ou, em outros termos, que acho mais interessantes, a passagem do contínuo ao descontínuo. Essa é a grande experiência que a mitologia coloca, e é uma experiência filosófica no sentido do Rousseau também, os mitos estão sempre falando deste tema. Por exemplo,os animais eram gente, a onça era sogra ou cunhada de um homem, você tem o casamento de um mortal, de um terreno, com uma mulher estrela, ou de um homem estrela que desce. Quer dizer, você temessa super comunicação entre os planos, que vai deixar de existir, mas que é preciso pensar nessa comunicação para poder pensar no mundo, não é possível pensar o mundo a partir da separação” (SZTUTMAN e MATAREZIO FILHO, 2015).

[3] No poema “Confissão” Carlos Drummond de Andrade reage a exposição da estilística da repetição desvelada em seu estilo pelo trabalho crítico de Gilberto Mendonça Teles. Reconhecendo os méritos do crítico, resiste a reificação, mas aceita a aproximação de arte e técnica (arts) na construção da poesia: “É certo que me repito,/ é certo que me refuto/ e que, decidido, hesito/ no entra-e-sai de um minuto.// É certo que irresoluto/ entre o velho e o novo rito/ atiro à cesta o absoluto/ como inútil papelito.// É tão certo que me aperto/ numa tenaz de mosquito/ como é trinta vezes certo/ que me oculto no meu grito.//Certo, certo, certo, certo/ que mais sinto que reflicto/ as fábulas do deserto/ do raciocínio infinito.// É tudo certo e prescrito/ em nebuloso estatuto./ O homem, chamar-lhe mito/ não passa de anacoluto”. Carlos Drummond de Andrade, in ‘As Impurezas do Branco’

Marcos Carvalho Lopes

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