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Jean-Godefroy Bidima e a Escola de Frankfurt


Luís Kandjimbo |* Escritor


Parece-me interessante olhar para o panorama das correntes contemporâneas do pensamento filosófico africano e identificar formas de diálogo e de apropriação crítica endógena da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt.
Oriento o foco para o filósofo camaronês Jean-Godefroy Bidima, de que já aqui falei, a propósito de uma outra matéria e que o gabonês Gregore Biyogo, na sua História da Filosofia Africana, considera como sendo autor de uma obra original e dissidente.

Na semana passsada, o tópico da nossa conversa andou à volta da experiência colectiva e histórica alemã. Tematizámos reflexões críticas de Walter Benjamin, um ensaísta e filósofo alemão, sobre a crítica da violência e o exercício da biopolítica em determinado contexto da história da Europa. Pode dizer-se que Walter Benjamin, em termos substantivos, praticava um estilo de discurso filosófico típico da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt.

Travão de emergência ou apartheid sanitário?

Entretanto durante a semana passada, correram notícias sinistras e de uma inimaginável violência contra os Africanos, em pleno século XXI. Foi veiculada a notícia segundo a qual o vírus Ómicron, descoberto por investigadores da África do Sul, permitia anunciar que o continente africano tinha acabado de ser berço da mais perigosa versão do vírus da Covid-19. Foi defendida a instauração de um cordão sanitário para impedir, mais uma vez, que os Africanos, cheguem às fronteiras da Europa.

Foi abominável ouvir os argumentos da médica e política alemã, Ursula Gertrud von der Leyen, Presidente da Comissão da União Europeia, formulando uma proposta oficial aos Estados-Membros para a activação do “travão de emergência” contra os países da África Austral para limitar a propagação da nova variante. Por essa razão foram suspensas as viagens aéreas para esta região do mundo em que nos encontramos.

O acto é abominável em virtude de constituir uma demonstração, mais uma vez, do facto de os europeus não aprenderem com a suas próprias experiências e reflexões dos seus mais brilhantes pensadores. De contrário, como explicar que, sem heitação, a titular de tão elevado cargos político da União Europeia, sem as ponderações fundadas em “objectividade e racionalidade”, como dizem, tenha anunciado que da África Austral vinha o mal?

Tornava-se evidente que as elites políticas europeias não são tão cultas quanto dizem ser. Não conhecem a célebre fórmula de um dos seus clássicos de Roma, Plínio, o Velho, que disse um dia: “Ex Africa aliquid semper novi” [De África vêm sempre coisas novas]. Mas são coisas novas que requerem o recurso à crença imperial na “razão”. Com semelhante brocardo sugere-se a ideia de que é preciso conhecer bem o que vem de África.

Crítica da barbárie e a irracionalidade

Essa crença imperial na “razão” foi sucessivamente submetida à crítica por escritores, artistas e filósofos, assinalando o declínio do racionalismo cartesiano que dominou e ainda domina muitas consciências europeias. Uma das mais conhecidas correntes de pensamento anti-racionalista, curiosamente, vem da Alemanha. Trata-se da Teoria Crítica produzida pelos filósofos alemães da chamada Escola de Frankfurt.

Um dos traços caracterizadores da Teoria Crítica reside na adesão que as suas teses suscitam da parte dos intelectuais originários de África, Ásia e América do Sul. É o fundamento do argumento que sustenta a denúncia do “apartheid sanitário”, invocado pelo Presidente Cyril Ramaphosa da África do Sul, quando criticou a posição da União Europeia, anunciada por Ursula Gertrud von der Leyen.

Importa recordar que “Dialéctica da Razão” (1940), uma das publicações inaugurais da Escola de Frankfurt, é um forte libelo contra a racionalidade centrada na exclusão. Aliás, a Alemanha foi um dos mais importantes actores de práticas que configuram a exclusão do Outro, nomeadamente, o colonialismo, o racismo e o anti-semitismo. Compreende-se que, na sua qualidade de judeus, uma boa parte dos membros da Escola de Frankfurt tenha pretendido dar notoriedade à sua causa. Mas, cinco décadas antes, a Alemanha já tinha progatonizado actos de barbárie. É o caso do genocídio contra os povos Herero e Nama na Namíbia, então conhecida como Sudoeste Africano. O genocídio foi precedido de uma guerra de três anos movida pelos povos Herero e Nama, perante a ocupação alemã do seu território. Daí resultou o extermínio de cerca de 100.0000 pessoas.

Por isso, a memória desse genocídio e a experiência colectiva do colonialismo alemão têm fortes conexões com o anti-semitismo que se desenvolveu na Alemanha, entre finais do século XIX até à I Grande Guerra (1914-1918). De resto, sabe-se que muito recentemente o movimento reparacionista Herero produziu os seus efeitos. As autoridades políticas da Alemanha reconheceram o facto histórico de ter sido praticado o genocídio, tendo anunciado actos simbólicos de transferência a favor da Namíbia de mais de um bilião de euros, que revelaram claramente a vontade de reparar os danos morais causados.

Escola de Frankfurt na perspectiva de Bidima

O Instituto para Investigação Social, em cujo seio se afirma a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, adquire formalmente o seu estatuto após a aprovação por um decreto do Ministério da Educação da Alemanha, em 1923. São fundadores: Theodor W. Adorno, Erich Fromm, Max Horkheimer, Otto Kirchheimer, Leo Lowenthal, Herbert Marcuse e Franz Neum. O maior impulso do Instituto foi alcançado quando, em 1931, Max Horkheimer assumiu a sua direcção, tendo sido o segundo director.

A tematização do anti-semitismo da Escola de Frankfurt é uma forma de denunciar o irracionalismo e a barbárie da civilização ocidental. Como foi referido, reside aqui o ponto de intersecção com algumas correntes contemporâneas do pensamento filosófico africano. O filósofo Jean Godefroy Bidima, pertencente à segunda geração da Escola Filosófica da África Central na sua âncora camaronesa, manifesta o seu grande interesse pela Teoria Crítica, ao dedicar-lhe o seu livro, publicado em 1993: “Théorie Critique et Modernité Négro-Africaine. De l’École de Francfort à “Docta spes africana”” [Teoria Crítica e Modernidade Negro-Africana. Da Escola de Frankfurt à “Docta spes africana”]. A expressão latina, “Docta spes africana”, define a perspectiva em que ele se situa. Com a semelhante fórmula manifesta-se como um agente da sabedoria africana assente na esperança.

O problema central que anima a reflexão de Bidima é a posibilidade, a necessidade e a emancipação do Sujeito, isto é, as condições em que um “Sujeito que se tenha transformado em Objecto se pode libertar da opacidade que a sociedade lhe administra”. O diálogo com a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt permite interpretar o contexto histórico em que as suas propostas emergem, sendo possível concluir que, no seu horizonte, está a compreensão de uma racionalidade do capitalismo ocidental.

Então, por que razão se recorre a cânones do pensamento alemão para tratar da realidade africana, quando não têm em conta a África? Bidima interroga-se.
Ao responder, não tem ilusões. Paradoxalmente, afirma que a Teoria Crítica é “europeocêntrica”, aberta e fechada, ao mesmo tempo. A sua abertura decorre da exigência cujo fundamento tem a ver com a necessidade de desconstruir o etnocentrismo. Por isso, defende que a legitimidade do seu interesse reside no facto de a Teoria Crítica ser a expressão da voz dos “excluídos” que conheceram as atrocidades do nazismo e o exílio.

Para melhor apropriação das propostas dos pensadores da Escola de Frankfurt, Jean Godefroy Bidima explora os discursos da Teoria Crítica, interpretando os sentidos das diferentes categorias e conceitos. Assim, dedica-se demoradamente ao exame das categorias com as quais operam alguns membros da Escola de Frankfurt, tais como Adorno, Horkheimer e Marcuse. Segundo Bidima a categoria de “possibilidade”, por exemplo, que aponta para a dialéctica do “todo” e do “fragmento”, não mereceu o devido tratamento. A abordagem desses filósofos foi “oblíqua” e “parcial”. Quer dizer que apesar da sua predominante transversalidade em todos os autores, o “possível”, desdobrando-se em negação, imaginação, comunicação, alteridade, não foi pensado até às últimas consequências. Em todo o caso, deixa-se apreender no seu potencial de negação, de dizer não.

A possibilidade em África

O espaço público é um dos campos que Bidima elege para a aplicação dos modelos de interpretação da Teoria Crítica à realidade africana. Destaca aí o problema da identidade na política, enquanto arte do possível, por excelência, e discurso da identidade. Vai aprofundar a sua problematização quando aborda o Direito e a política, especialmente o seu cruzamento em matérias como as formas de governo, as constituições e as relações entre o Direito consuetudinário e o Direito moderno.

Neste dominio e em outros, subsiste o potencial de negação, isto é, de dizer não. É por isso que, no dizer de Bidima, a operacionalização dos conceitos de racionalidade e de Razão, por serem conceitos suspeitos a respeito dos quais nem sempre se conhecem os referentes dos seus sentidos, deveriam merecer uma “auto-elucidação”.

Bidima esclarece que o sentido que atribui a “Docta spes” é um apelo para a cultura da esperança pelo surgimento do novo, susceptível de confundir-se com “o saber crítico-antecipador”. Exprime uma hermenêutica subversiva da tradição, uma oposição aos sistemas de fechamento que torna possível transformar a memória em imaginação.

Finalmente, revela-se necessário saber acerca da possibilidade de negação. A estratégia de apropriação das propostas da Escola de Frankfurt, adoptada por Bidima, não está isenta de crítica. Um dos seus críticos é o decano dos filósofos da Escola Filosófica da África Central, Fabien Eboussi Boulaga, igualmente camaronês. Ele considera que no livro mencionado, Bidima confessa não ler autores africanos. Eboussi Boulaga reprova a arrogância do gesto que valoriza a importação de teorias alheias, preferindo o concordismo em vez da comparação. Tais críticas são formuladas no contexto de uma interessante querela, causada por acusações de plágio contra Eboussi Boulaga, especialmente no seu livro “La Crise du Muntu. Authenticité et Philosophie” [A Crise do Muntu. Autenticidade e Filosofia], publicado em 1977.


*Doutorado em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.

[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 05/12/2021 em: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/jean-godefroy-bidima-e-a-escola-de-frankfurt/

Marcos Carvalho Lopes

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