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Kant e a tradição

A tradição, em muitos sentidos, corresponde a um tatear — tatear este superado pelos passos agigantados dos revolucionários modernos

Gonçalo Armijos Palácios*

            Ler aquelas passagens em que os grandes filósofos avaliam o passado resulta sempre muito esclarecedor, não só para percebermos qual é a contribuição que acreditam fazer na história do pensamento, como para ver quais foram as conquistas e os erros que eles atribuem à tradição. A partir disso, isto é, baseados na leitura que eles fazem do passado, podemos entender melhor o papel que esses filósofos consideram desempenhar na própria história da filosofia.

          Como temos visto, essa é uma complexa relação. De um lado, o reconhecimento dos logros do passado, de outro, a determinação dos seus erros. Kant é um dos grandes filósofos que nos fornecem rico material para percebermos três aspectos dessa relação: as conquistas que atribuem ao passado, os erros que nele encontram e o alcance do que imaginam ser sua própria contribuição.

            O Prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, do filósofo alemão, é um daqueles textos que mostram de maneira clara como o filósofo leu a tradição.  O que destaca nela, o que critica e, ao mesmo tempo, qual pensa ser o mérito de seu próprio trabalho. No segundo parágrafo desse prefácio há uma sugestiva menção à lógica clássica, que, pensa, parece ter nascido completa com Aristóteles. Vejamos:

Que a Lógica tenha seguido desde os tempos mais remotos esse caminho seguro, depreende-se do fato de ela não ter podido desde Aristóteles dar nenhum passo atrás… É de admirar-se ainda de que ela até agora tampouco tenha podido dar um passo adiante e, por conseguinte, segundo toda a aparência, parece estar completa e acabada.[1]

Refere-se depois aos progressos da matemática, nos antigos, com estas palavras: “A Matemática encetou, desde os tempos mais remotos alcançados pela história humana, como admirável povo grego, o caminho seguro de uma ciência.” (Ibid., p. 10) Já as ciências naturais, reconhece, tiveram um crescimento muito mais demorado e difícil. E, entre outros, elas devem esse crescimento a um empirista, o filósofo de quem nos temos ocupado ultimamente, Francis Bacon. Diz Kant:

A Ciência da Natureza desenvolveu-se muito mais lentamente até encontrar o largo caminho da ciência; pois faz apenas um século e meio que a proposição do engenhoso Bacon (…) em parte a ensejou e em parte a ativou, uma vez que já andava ao seu encalço, e que igualmente só pôde ser esclarecida por uma súbita revolução na maneira de pensar” (Ibid. p. 11)

            Note-se como Kant termina esse período: “que igualmente só pôde ser esclarecida por uma súbita revolução na maneira de pensar.” Trata-se, aqui, de percebermos justamente isto: em que medida os filósofos se concebem a si próprios fazendo parte de um processo revolucionário — como sendo parte de um processo que fez de sua época um tempo de mudanças tão profundas e radicais que revolucionaram a concepção sobre o mundo, o universo e o próprio homem. Na época moderna, e sem dúvida na fase de transição da Renascença à modernidade, Bacon desempenha um papel fundamental. Mas a consciência de estarem vivendo numa época revolucionária não se limitou aos renascentistas, estende-se a todos os grandes pensadores modernos, de Galileu e Descartes até Kant, passando por Descartes, Newton e Leibniz.

            Uma das decisivas e revolucionárias contribuições dessa época, pensa Kant, é a ideia de que a mente não recebe as leis da natureza. Pelo contrário, as impõe à natureza. Noutras palavras, não recebemos passivamente essas leis por um misterioso meio, ao contrário, nós mesmos as construímos com base em como observamos e como pensamos. Vejamos:

E assim mesmo a Física deve a tão vantajosa revolução na sua maneira de pensar apenas à ideia de procurar na natureza (…) o que ela deve aprender da natureza segundo o que a própria razão coloca nela e que ela não poderia saber por si própria. (Ibid., ibidem.)

Note-se a expressão “vantajosa revolução”. Revolução na sua maneira de pensar. A ciência moderna, noutras palavras, deve seu crescimento e desenvolvimento ao surgimento de uma revolução no modo de pensar a natureza. Ou seja, o progresso do conhecimento ocorreu por um afastamento dos ditames da tradição, por um afastamento que representou e pressupôs uma necessária revolução na maneira de conceber o próprio pensamento e sua relação com o mundo. E Kant termina esse parágrafo de uma maneira lapidar: “Desse modo foi a Ciência da Natureza levada pela primeira vez para o caminho seguro de uma ciência, já que por muitos séculos nada mais havia sido do que um simples tatear.” Assim, enquanto a tradição tateava, segundo Kant, os modernos se dirigiam ao encontro da ciência a passos agigantados.


[1] Kant, I. Crítica da Razão Pura. Trad. de Valério Rohden da CrV (B). São Paulo : Abril Cultural, 1974, p. 9. (Col. Os Pensadores)

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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