Marcos Carvalho Lopes
Este é um texto de 2006 e fazia parte de um projeto nunca publicado: um livro sobre os Engenheiros do Hawaii e a filosofia.
Ultimamente – depois de Nietzsche – é comum que se critique as perspectivas platônicas que permeiam a filosofia. É que as perguntas por essências atemporais levaram a filosofia para um caminho que parece ter se tornado improdutivo: como lembra o filósofo norte-americano Hilary Putnam, ninguém pode alcançar a perspectiva de um “olho de Deus”. Mas, deve ficar a dúvida: Platão não era platônico! É que alguns identificam Platão com a figura do rei-filósofo, aquele personagem que no Mito da Caverna consegue contemplar a luz da verdade e volta para tentar libertar os que estão acorrentados em meio às sombras. Essa ideia de que o filósofo teria um acesso especial à Verdade tem uma dimensão mais religiosa do que algo que se possa justificar quando se mantém um diálogo aberto.
Mas o Mito da Caverna, como bem mostrou Heidegger, funda a autoridade da teoria: Platão, ao descrever o caminho de ascensão do filósofo fala em verdade (aletheia), mas, quando se refere a volta
dele para a caverna passa a falar em ortótes, a correção do olhar. O sábio deveria corrigir o olhar dos acorrentados de modo a levá-los a mudar a direção, converte-los para a luz do saber. Não é um diálogo: o filósofo tem autoridade porque sabe onde está a Verdade! Teoria seria contemplar o que é, olhos humanos deveriam se voltar para as essências ao invés de ficar preso nas aparências. Ficar preso às aparências é ficar preso às coisas fugidias, a vida prática: a vida do filósofo deveria ser contemplativa, ou seja, sua função seria olhar o mundo.
Pense num professor que faz seu mestrado/doutorado no exterior e volta para o Brasil para dirigir o olhar de seus alunos para as verdades mais reluzentes. Pense na necessidade que existe de justificar qualquer trabalho recorrendo-se a certo cânone que, nos garantiria acesso à verdade: o negócio nesse jogo de ócio não é debater ideias, mas citar gente que concorda com a gente. Como diz o professor Valdir Heitor Barzotto, a fórmula parece ser citar três estrangeiros, um brasileiro que se alinha a um estrangeiro, outro que discorda e pronto! Mestrado e Doutorado garantidos por ter dado prova de poder olhar para a luz que advém do exterior. Nossa cordial desconversação! Um exotismo inventado…
Fazer teoria é dirigir o olhar para algum lugar. Então, deveríamos parar de tentar fazer teoria neste sentido, parar de tentar atingir essências absolutas e passar a conversar, a aceitar o debate e o diálogo. Assim como, a imperfeição do inacabado, o acaso que sempre pode acenar. Assumiríamos, assim, nossa finitude e, com ela, a finitude de tudo o que é humano. Os que nos pedem para tentar esse outro caminho, de diálogo, pedem que abandonemos as metáforas visuais: ver, contemplar etc.; já que não existe nenhuma Realidade pura e imaculada para ser desvendada. A marca da serpente humana está em toda parte…
Se a ideia é dialogar, podemos partir de qualquer elemento de nossa cultura. Ao invés de tentar falar todas as línguas vivas e mortas, poderíamos dialogar a partir de diversas linguagens. É o caso desse texto: decidi fazê-lo depois de ouvir uma canção dos Engenheiros do Hawaii – leia-se Humberto Gessinger. A letra de Luz põe em cena essa necessidade do olhar que permeia nossa cultura:
Onde estão teus olhos
agora que tô bem na foto
agora que achei o foco
onde estão teus olhos
sem eles não existo
fico cego invisível
queimo o filme rasgo a foto
onde estão teus olhos
agora que domei a fera
agora que a dor já era
onde estão teus olhos
sem eles não existo
fico cego invisível
só enxergo o silêncio
juntos para sempre
objeto e observador
física moderna
velhas canções de amor
onde estão teus olhos(2x)
longe deles nada existe
(solo de gaita)
onde estão teus olhos(2x)
longe deles nada existe
Luz é uma metáfora recorrente na tradição filosófica para se falar em razão. Trazer à luz algo para que possa ser visto: teorizar tudo e dominar qualquer acaso! Somos os observadores que querem objetificar tudo, reificar tudo a nossa volta. É isso que a modernidade quis; matematizar a realidade,
partindo do Plano Cartesiano, da física moderna de Newton etc., inspiraram-se em buscar a função que descrevesse toda a Realidade (noutra das canções demo divulgadas por Humberto Gessinger a letra de Pra quem gosta de nós diz: “Mapearam o genoma/ O acaso vai dançar/Sem a senha só em
sonho/ Impossível disfarçar”). Mesmo a relação amorosa na modernidade passa a ser crivada desse ideal; o romantismo amoroso em sua contradição fundamental denunciada por Jurandir Freire Costa: ao tentar
combinar “amor eterno” e “prazer constante”. Sem esse olhar de autoridade poderíamos sobreviver?
Quando pensamos na prática, as teorias que buscas princípios eternos acabam, mais cedo ou mais tarde, sendo refutadas pela realidade. Deveríamos então ser mais flexíveis e abandonar essas questões platônicas por essências. Saber e querer não bastam: o difícil é agir e aí, nenhuma teoria pode nos salvar de nossa própria contingência. Humanistas tem fome, diria Quincas Borba. Melhor dos mundos: impossível…
Por outro lado, acho que esse ataque às metáforas visuais é um tanto vazio. Não podemos deixar de ter esse sentido, tais metáforas correspondem mais a nossa condição física do que a qualquer teoria. Deveríamos arrancar os olhos, como Édipo, para viver sem complexos? O olhar também é uma forma de
identificar-se com o outro. Olhar nos olhos, olhar para o chão, os olhares das personagens de Machado de Assis… o olhar tanto transformar em pedra quanto dar vida. Precisamos ouvir o silêncio, sentir as diferenças, farejar novidades? Sim… Mas não vejo nada intrinsecamente negativo nas metáforas visuais se
tomamos alguns cuidados para não repetir antigos erros. Lembro de um poema de Camões, nosso poeta que perdeu um olho, que diz algo que me interessou:
MOTE
Pus o coração nos olhos
e os olhos pus no chão
por vingar o coração.
VOLTA
O coração envejoso
como dos olhos andava,
sempre remoques me dava
que não era o meu mimoso.
Venho eu, de piadoso
do senhor meu coração,
boto os meus olhos no chão.
Os olhos podem, nesse caminho de identificação, levar uma pessoa para habitar nosso coração. O que trazemos dentro do peito. O que temos respeito. Olhemos então os problemas que nos comicham todos os dias: não faltam motivos pra se respeitar nossas vidas finitas e humanas.