Márcio Valverde e o ritmo de Santo Amaro
Marcos Carvalho Lopes[1]
A princípio, existem pelo menos duas Santo Amaro: a de Caetano Veloso e a de Maria Bethânia. A de Caetano é aquela em que o demônio local desafia o poeta, tentando impor seus limites. O bom poeta precisa enfrentar esse “não” e nega-lo (dizer não ao não), fazendo-se maior, transformando o ressentimento em sua força. Como aparece em Verdade Tropical, é esta uma relação ambígua (o grego falaria em Prometeu, o Yoruba em Ogum e o Igbo em Agwu). De todo modo, ser herói tem seu preço e custo. Já Maria Bethânia cultiva outra relação com a cidade: religiosa, é Santo Amaro que a religa, lhe dá energia e senso de realidade (na forma de um bocado de canções, orações e amor à palavra). Além dessas duas Santo Amaro, existem outras, mas o CD Do tamanho do Mar demonstra que o cantor e compositor Márcio Valverde habita e escolheu viver na cidade mítica de Bethânia, o que lhe traz desafios grandes.
A criatividade precisa lidar com este “não” sem se acomodar a ele, captando sua positividade como limite do melhor no mais comum, desvendar seu ritmo. E qual é o ritmo de Santo Amaro se essa é a cidade onde nasceu Tia Ciata? Se é a cidade uma encruzilhada onde as culturas do Recôncavo, matriz do que a Bahia tem de mais lapidado, se encontram? Se é a terra de Assis Valente e quantos mais? O ritmo de Santo Amaro é o samba e o mistérios de sua alquimia. Se o samba é uma metonímia do Brasil, Santo Amaro pulsa na totalidade deste enigma que não pode ser desvendado: promessa de um emplastro que transformaria dor em alegria, tristeza em esperança (reencenada nas canções Manifesto do Samba, com letra de Jorge Portugal e Na veia, parceria com Nélio Rosa). O samba também é profecia.
Peço a indulgência de quem lê para este parágrafo de literatura fantástica, necessário para tentar mostrar como procuro traduzir as canções de Do tamanho do mar em geral, antes de tratar de qualquer delas em particular. Em sua Fenomenologia do brasileiro Vilém Flusser afirmou que a base da autentica cultura brasileira era negra: não faz sentido tentar compreender o carnaval brasileiro a partir de suas raízes históricas na renascença italiana, sem levar em conta que aqui o corpo e malandragem se dão sob o signo de Exu. Para Flusser essa herança negra pode ser percebida claramente no cotidiano, na sagração do corpo, no ritmo da caminhada das pessoas, como parte de seus hábitos. Nessa avaliação, com certeza o filósofo judeu-brasileiro se inspirou na ontologia do ritmo do poeta e filósofo senegalês Leopold Senghor, o pai da negritude: o ser é o ritmo e o ritmo é o ser. O ritmo é a força vital, de tal forma que, como sintetizou Souleymane Bachir Diagne,“a) o que constitui a individualidade de uma determinada força é seu ritmo; b) abrimos a nós mesmos para o objeto, em particular para o objeto artístico, através de uma atitude rítmica, o que faz com que entremos gradualmente em contato com este, com seu próprio ritmo. Isso é o que significa dizer que somos tocados por sua espiritualidade; c) a combinação harmoniosa de ritmos numa obra de arte depende de sua força-rítmica para que de maneira geral entre dentro da indivisível unidade orgânica.” Então é essa atitude rítmica que se pede para ouvir esse trabalho, na abertura para a vida que se dança, no ritmo de Santo Amaro.
As seis primeiras faixas do disco podem ser ouvidas como um samba contínuo, samba corrido que ao vivo se emenda numa grande canção que retoma as raízes dos cantos de trabalho que sagram o cotidiano e religam a comunidade. Ai a melodia perde complexidade, se simplifica ao máximo para dar lugar a diferença produzida pelo ritmo, pela pulsação: o mesmo é sempre diferente nessa repetição. A religiosidade está presente no ritmo e impõe seu verbo nas letras: para traduzir e reafirmar o sentido deste ser em comum, falar em deuses é falar no samba e falar no samba é falar deste lugar. O diferente é sempre o mesmo nessa repetição. Do tamanho do mar, Tarrafa, É preciso ter fé em Deus, Nagô, Mareia e Chapéu Mexicano (nessas duas últimas o nonsense não resiste ao ritmo, e pouco importa se a burrinha manca, segue em frente o samba sem precisar de espora). Até acho que na gravação a voz do cantor poderia ficar dissolvida no coro, mas o sentido é esse do teatro antigo, da palavra comum e que é fácil saber. O LADO A do disco termina de modo reflexivo, como se o sargento Pimenta voltasse para casa, como se Renato Russo meditasse seu Por enquanto, mas o espelho agora é o mar – a canção se chama Olhos de mar, música de Márcio Valverde e letra de Jorge Portugal – e a pessoa não é um indivíduo, mas o sujeito lírico dessa Bahia, numa tentativa que não é a de trazer Salvador dentro do peito, mas de saber que já está lá na pulsação que se vê nas ondas, no cantar que é bússola da vida. Na verdade, nestes olhos de ressaca acena uma musa, que se cansou de inspirar e resolveu respirar e dar a palavra: é da cantora Lívia Milena, por fado esposa de Márcio, a letra da canção que dá título ao disco.
O lado B mantem a pegada lírica com Feita de Luz (Márcio Valverde e Chico Porto), a epifania do amor, que é uma senhora, que é samba também. Então na cidade, o ritmo ganha outras pulsões e nomes, melodias, vira fator de sociabilidade, aquilo que liga as pessoas dessa comunidade imaginada como país, mas também dá o ensejo para uma Festa de amigos (Márcio Valverde e Chico Porto) e até p’ra Feijoada da Sogra (Márcio Valverde e Chico Porto). Fechando o disco, em Tempo de felicidade (Márcio Valverde e Chico Porto) a imagem central do álbum reaparece, no pedido para que deixemos a tristeza descer o rio e desaguar, se dissolver no mar, reconhecendo sua harmonia maior e sabendo que a vida tem momentos que ensejam emoções diferentes, mas o samba continua anunciando a promessa de felicidade.
Vale dizer que Do tamanho do mar é o terceiro disco solo de Márcio Valverde e, provavelmente, o mais simples e popular. Sua trajetória parece se alinhar com a tentativa de compositores como o gaúcho Vitor Ramil de procurar um ritmo e estética que traduzam o lugar, sem a ânsia do universal. Se Ramil aposta na estética do frio, Valverde traduz e desenvolve uma estética do Recôncavo incorporando o ritmo de Santo Amaro.
É claro que essa resenha pode parecer um tanto metafísica, talvez por deformação profissional, mas ela tem também seu ritmo e modo de usar. Escute uma vez o disco do começo ao fim e leia de novo o que escrevi. Na dúvida, escute mais uma vez. Qualquer que for o juízo, p’ra tirar a prova final, aí mesmo só indo escutar o show ao vivo, mas isso é outra história…
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[1] Marcos Carvalho Lopes é professor na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira no Campus dos Malês em São Francisco do Conde-Bahia. Autor dos livros Canção, estética e política: ensaios legionários (Mercado de Letras, 2012) e Máquina do Medo (PUC-GO, 2013).