Severino Ngoenha e Carlos Carvalho
Apenas saídos do congresso e a dois anos das presidenciais, revivemos já a angustiante questão rebeliana ( de Rebelo e rebelde) de “quem vai ser o timoneiro?”; quem nos vai acorrentar, quem será o excelso Moisés capaz de aglutinar as tribos dispersas e fazer delas um povo, dar-lhes uma lei, impor-lhes leviatanamente uma moral? Sentimo-nos oprimidos (no político, no económico e até mesmo no militar) por Nabucodonosores, mas a nossa estranha concepção de liberdade e de democracia impele-nos a buscar a (o) Correia que nos vai acorrentar, o celsius que fará pacto com o diabo (mascarado de deus), que abrirá magicamente o mar vermelho, transformará tribos em povos e finalmente, nos guiará à terra de leite (petróleo) e mel (fel).
Na lápide do filósofo judeu Moisés Maimonides (1135- 1204) em Israel, estão gravadas frases graves que deveriam servir de advertência aos oprimidos em busca de liberdade: «De Moisés a Moisés, nunca houve outro como Moisés».
Ao oposto do aviso sábio de Maimonides, uma certa literatura, a pintura mas sobretudo o cinema hollywoodiano se apoderaram da figura de Moisés para fabricar heróis, espécie de Rambos do passado: criança predestinada e salvada nas águas, encontro teofânico improvável com Deus, guia de uma absurda travessia do Mar Vermelho, unificador de tribos dispersas e divididas num povo… Apesar da ciência ser unânime sobre o facto de não existirem provas da sua existência histórica, nem evidências sobre a ocorrência dos factos que lhe são atribuídas, alguns intelectuais recorrem a subterfúgios filológicos para continuar a alimentar a necessidade que têm de heróis lendários. Talvez não seja um acaso que isso provenha da psicologia.
Freud no seu clássico “O Homem Moisés e a Religião Monoteísta”, empreendeu a alteração etimológica do nome Moisés. O psicanalista Jacques Lacan consagrou o seu Seminário 9, lição 6, à questão do nome próprio, e Walter Benjamim defendeu que atribuir um nome àquele que nasce é o único acto humano que se aproxima do gesto criador de Deus. A marca impressa pelo nome desenharia traços no destino do homem, sem porém determiná-lo de maneira fechada e definitiva.
Se estes sábios etnocentrados se tivessem dado a pena de olhar para a outra parte da história, teriam descoberto que o nome da chamada “Moisés Negra“ (Harriet Tubman, campeã da liberdade negra nos EUA) é a negação do nome dado pelos seus pretensos donos e a escolha, em primeira persona, de um nome que corresponde à existência (livre) que ela buscava mas, sobretudo, teriam aprendido que a moisidade é arrancar escravos das garras de todos os Nabucodunosores e todas as formas de opressão e restitui-los à liberdade. O “Moisés negro“ (Marcus Garvey) até conseguiu fundar uma companhia de navegação ( A Black Star Line) mas não teve a magia de abrir o Atlântico em dois ou de fazer os seus barcos passarem por cima dele para deixar passar o povo (let my people go). Todos os cientistas estão concordes que o Moisés bíblico também não teve essa magia.
Qual é então o significado e a pertinência do personagem de Moisés? As religiões monoteístas vêem nele o instrumento de Deus para libertar o seu povo, paleontólogos interpretam a sua presença no Egipto como destinada a aprender o conceito de monoteísmo criado pelo faraó revolucionário Akhenaton; exegetas vêem nele o profeta que – depois da teofania – liderou o Êxodo do Egipto e a perambulação de 40 anos pelo deserto – enfrentando povos inimigos, adversidades pelo caminho e crises dentro do próprio povo. Todavia e contrariamente a muitas crenças, o acto mosaico por antonomásia não é a travessia no deserto – por sua vez reminiscência do mito fundador mesopotâmico – mas a Tora onde estão inscritos os fundamentos das leis (nomos) e dos costumes (nomois). Foi através destas leis que ele uniu, liderou, organizou, participou na sua constituição identitária e deu rumo – como uma espécie de legislador – ao seu povo.
Que a Tora seja semelhante ou que use muitas leis de diferentes origens – como aquelas então em vigor no Egipto de Akhenaton ou as incluídas no Código de Hamurabi – não muda o essencial: os líderes morrem e passam (o próprion Moisés bíblico não entrou na terra prometida) e das epopeias dos grandes dirigentes ou líderes (mesmo dos maiores) são esquecidos; o que perdura são as leis quando justas (em defesa dos mais fracos) e produzem instituições que transformam os costumes. Napoleão disse uma vez: “a minha verdadeira glória não é ter vencido quarenta batalhas; Waterloo apagará as lembranças de tantas vitórias; o que nada apagará, o que viverá eternamente, é o meu código civil“.
Moisés, nas três religiões monoteístas, é apresentado como um profeta, mensageiro de uma verdade que o ultrapassa. O que se pede a um profeta é que seja fiel à mensagem que lhe foi superiormente confiada. Esgotada a sua missão ele cede espaço para que a causa possa continuar. É nesse sentido que Moisés foi substituído por Arão para a entrada na terra prometida.
Numa transmutação de sentido, em democracia o demos (povo) tem vocação a ser kratos (a se autogovernar), a ser o seu próprio Moisés, sem correias de pactos – metafísicas, transcendentais, imanentes ou históricas . Posta a liberdade como o postulado essencial da modernidade democrática, com Harriet Tubman e contra Walter Benjamim, o povo deve autonominar-se. O desafio dialético é entre confiar a sua realização como povo a tribunos, ou asssumir, através de leis e instituições, as responsabilidades de se auto-governar.
Na democracia as lideranças políticas cessam de ser proféticas ou encarnações de um misterium (ou de uma aliança transcendental) para serem mandatários (ministerium) de uma vontade geral que resulta de uma aliança entre pessoas que decidem viver juntas como iguais.
O povo só cresce quando deixa de se fazer guiar e se torna o seu próprio Moisés, dando-se leis e instituições, a primeira das quais é a escola, até porque é dela que deverão sair os jurisconsultos e os magistrados.
Apesar do messianismo que se lhe conferiu, Mandela governou com a lei (ministerium e não misterium) e essa lei, ipso factum, excluía toda e qualquer veleidades de vingança , mas também permitiu o afastamento de Zumas e respectivos conluiantes mafiosos.
Em todos os processos de crescimento existem momentos de flexão. O que não pode acontecer é perdermos de vista o essencial: a criação de uma sociedade que seja coisa de todos, uma sociedade cuja legitimidade reside na sua capacidade de instituir e manter entre os seus cidadãos relações de dependência mútua mas nunca de dominação.
A dois anos das eleições o mais importante deveria ser a batalha do primado da lei e das instituições. Não devemos fazer Bayéte a nada nem a ninguém, porque não podemos ter um outro “hossi” que não sejamos nós próprios.
Contra o messianismo político, a democracia implica a radical determinação em recusar ser ovelhas que obedecem e docilmente seguem um pastor, seja ele quem for…
Severino Ngoenha, Carlos Carvalho