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Minerais (criticos) para transição energética

Democracia ou Oligarchia?

Ensaio de Severino Ngonha, Fredson Guilengue, Augusto Hunguana, Giverage do Amaral & Luca Bussotti

A revolução industrial do século XIXfavoreceu/permitiu o fim da escravatura negra e o advento da democracia social no Ocidente. A escravatura não terminou por nenhum élan de humanismo ou da evolução da consciência quanto a necessidade do respeito dos direitos dos outros homens,  se fosse isso, ela teria sido impedida pelos iusnaturalismo (Grotius) e pelo humanismo (Pico de Mirandela, Tommaso Campanella)  abolido pelo iluminismo (Voltaire, Diderot, Rousseau) e/ou pela revoluções liberais (Holandesa, Inglesa, Americana, Francesa) que proclamaram os direitos humanos da primeira geração. Não foi nenhuma metanoia humanista mas, a descoberta de energias alternativas ao trabalho negro, que proporcionou a “prodigalidade” do fim da escravatura.

Essa energia nova, provinha da utilização do carvão e da emergência da máquina a vapor. Mas porque a extração do carvão exigia a presença de muitas pessoas, os principais centros urbanos in primis, na Grã-Bretanha – Londres, Manchester Liverpool -, foram palco de um enorme processo de êxodo rural, e do evoluir da necessidade de infraestruturas que acompanhassem a acomodação dessa nova situação social.

As condições precárias em que viviam os trabalhadores – falta de segurança alimentar e do trabalho, salários miseráveis – tiveram um eloquente respaldo nos “Tempos difíceis” de Charles Dickens (1854), romance cativante e contundente crítica social sobre a discrepância entre a pobreza extrema em que viviam os trabalhadores e o conforto desproporcionado dos  ricos, na Inglaterra vitoriana. Aliás, foi com base nas condições descritas neste livro que nasceram os socialismos utópicos (Saint-Simon, Charles Fourier, Robert Owen) – que propunham melhorias da sociedade mas não a superação do capitalismo – e as críticas de Engels e Marx que, por sua vez,  preconizavam a abolição, pura e simples, do capitalismo.

Em volta do carvão gravitaram não só teorias filosóficas, mas também discursos estéticos (no cinema com o fumo do Londra – Gris Londres/ London Grey- de Alberto Sordi, na Literatura com Eugene Chevreul, no engodo do impressionismo com as pinturas de William Turner Claude Monet) e, sobretudo, reivindicações políticas e premissas da progressão da Democracia. Foi neste contexto que nasceu o partido trabalhista inglês, Labour Party, em 1900 – hoje liderado por Keir Starmer – , que governa o Reino Unido.

O mundo industrial, feito de fábricas com milhares de operários, cujos direitos eram inicialmente quase inexistentes, graças a uma constante e incisiva acção sindical, contribuíram para o processo de democratização primeiro no âmbito produtivo, depois a nível social.

As conquistas democráticas do modelo de sociedade industrial baseado no carvão tiveram as suas bases na partilha, e na evidência do facto de que uns, os mais fracos (operários) eram necessários aos outros, os mais fortes (capitalistas). Foi nesta hegeliana e contraditória dialéctica servo-patrão que o Ocidente desenhou o seu modelo, cuja palavra-chave foi “participação” –mesmo se não em pé de igualdade. Foi o início de uma democracia social, em que os pobres e os trabalhadores, sem o capital – como diria K. Marx -, começaram, paulatinamente a exigir direitos. A revolução industrial, centrada sobre a exploração do carvão,  favoreceu a maior revolução político-social, nunca antes alcançada: uma democracia de redistribuição, da diminuição das horas de trabalho, de maior segurança no trabalho, férias, Salário mínimo, condições aceitáveis de vida, etc. 

O elevado grau de poluição do carvão e de seus procedimentos extrativos – em proximidade de cidades e regiões densamente povoadas – também contribuiu a fazer com que a sociedade, além dos trabalhadores directos, iniciasse a se manifestar contra o modelo capitalista, a favor de direitos sindicais, sociais e ambientais.  O grande Smog de 1952, que levou a população de Londres a aumentar o consumo carvão para o aquecimento doméstico – o que causou a morte de mais 12 mil pessoas -, sentenciou – antes do relatório do Clube de Roma, do Princípio de Responsabilidade de Hans Jonas ou da COP Rio – o fim da era do carvão e a transferência para fora da cidade de todas actividades produtivas; o Clean Air Act foi uma das primeiras medidas legais para reduzir emissões poluentes.

Entretanto, já desde a década 1930-1940 do século XX começara a engordar, subtilmente, a entrada em cena um novo protagonista absoluto: o petróleo. Este novo mineral hegemónico trouxe metamorfoses profundas a vários níveis, a principal das quais foi a ligação dólar petróleo, substituindo a libra – na altura ligada ao ouro –  que correspondeu a emergência de uma nova potência dominante, os EUA. Assim, a geopolítica mundial  transitou das minas de carvão e de ouro para os campos e refinarias de petróleo. Os países árabes saíram do seu anonimato, Arábia Saudita, Qatar, Dubai (…)  tornaram-se centros da geopolítica mundial, sobretudo depois da assinatura do acordo entre EUA e Arábia Saudita, que levaram este país a se comprometer vender o petróleo unicamente em Dólares – em troca de troca de proteção militar -, ao que aderiram em 1975 o conjunto dos países da OPEP

Os principais conflitos na segunda metade do século XX são Guerras de petrodólares (William R. Clark), o que se refere a teoria de que a motivação das ofensivas militares dos Estados Unidos é preservar pela força, o status do dólar, como moeda de reserva dominante no mundo e como a moeda em que o petróleo é precificado. Ao longo dos anos, vários estudiosos têm expressado a opinião de que a Guerra de Iraque foi conduzida para reafirmar a hegemonia do dólar na esteira das tentativas de Saddam Hussein de trocar o petrodólar no comércio de petróleo e vender o petróleo iraquiano em troca de outras moedas ou comodities. Caminho análogo tentou seguir a Líbia – o que explica a sorte de Gaddafi – ,  e tem tentado seguir o Irão e a Venezuela, o que explica também as suas relações conflituosas com os Estados Unidos. Por outro lado, a razão da emergência dos BRICS  é uma tentativa -dos países chamados emergentes- de se emanciparem da ditadura do petrodólar americano. 

Do ponto de vista político,  a principal diferença entre o domínio do carvão e do Petróleo está no facto que, o primeiro favoreceu a emergência de uma organização política, que rompeu com a hegemonia constante e solitária dos grande patrões e criou uma democracia socialMutatis mutandis, o modo da extração do gás e do petróleo -que exige muita tecnologia e participação de poucas pessoas-, criou oligarquias

Os petroleiros são milionários e os poucos indivíduos que trabalham para as petrolíferas tem salários exorbitantes. O facto do petróleo ser extraído por máquinas, não favorece uma democracia, ao contrário, cria uma oligarquia de separação entre os poucos ricos – que o petróleo propicia-,  e o resto da população – como é o exemplo de Moçambique – e das pessoas vêm os navios a entrar e sair, sem tirarem disso nenhum proveito.

Enquanto a extração de combustíveis fósseis (carvão mineral) levaram ao alargamento da democracia, o petróleo (e gás) levou ao estreitamento dessas mesmas liberdades, uma vez que os processos em volta da exploração do carvão são mais vulneráveis às pressões populares, o petróleo e o gás -pelos processos de extração, de transporte (navegação transoceânica)– tornaram as redes de energia menos vulneráveis às reivindicações políticas dos movimentos laborais e da sociedade em geral (Timothy Mitchell, democracia do carbono). Esta tese pode ter uma confirmação na diferença entre as exigências e manifestações comunitárias em Tete – em volta da exploração do carvão -, com a opocidade em Cabo Delgado, principalmente, no projecto de exploração do gás off-shore. 

Contudo, no contexto de Moçambique, o modelo-do-carvão chegou com muito atraso. Na época colonial já se tinha começado, entre Tete e Moatize, a exploração de carvão. Alguns estudos sugerem que teria sido Livingstone quem, por primeiro, descobriu as potencialidades de Moatize, mas foi apenas em pleno colonialismo português – a partir de 1948 -, que a Companhia Carbonífera de Moçambique (extinta com a independência) começou uma exploração de uma certa relevância. Porém, as condições sócio-políticas eram muito diferentes daquelas que a Inglaterra tinha enfrentado no século XIX; nada de envolvimento, nada de reclamação de direitos, nada de novas leis, ainda menos para tutelar a saúde dos trabalhadores e das populações que viviam nos arredores dos empreendimentos mineiros. O colonialismo não permitia estas aberturas (o primeiro jornal publicado em Tete foi em 1968!), assim como a brasileira Vale não as permitiu – a não ser em pequena medida – e hoje, não a permite a indiana Vulcan, em conluio com o governo.

A transição para a economia do petróleo (e gás) reduziu significativamente os espaços de conquistas democráticas e jurídicas porque o petróleo/gás comportam uma exploração capital-intensive, diferentemente do carvão que exigia um labour-intensive. O exemplo da área 4 Coral-Sul em Moçambique é sintomático: tecnologias de ponta para extrair o gás no meio do Oceano, impactos ambientais invisíveis, impactos sociais nulos, envolvimento de pessoal local quase que inexistente. 

Hoje estamos numa terceira vaga energética, ligada às energias renováveis, largamente presentes em África/Moçambique que são não apenas o sol, o vento ou às águas mas -sobretudo-, o cobalto, o cobre, o lítio as “terras raras”, ou “metais de terras raras” necessários para a transição energéticacarros elétricos, turbinas eólicas, painéis solares, indústria da defesa e indústria aerospacial. Neste contexto a geopolítica mundial está a transferir-se, não para a China – maior repositório de terras raras mas forte e potente – mas para o continente africano que, com a sua fragilidade/vulnerabilidade torna-se, de  novo, lugar de corrida e conquista dos grandes poderes  mundiais.

As actividades de exploração de minérios críticos já são visíveis em Moçambique, especialmente nas províncias de Nampula e da Zambézia, ricas em terras raras. Este ano, em Pebane, as populações reclamaram contra a russa Tazzeta Resources, enquanto a australiana MRG Metals tem planos de exploração intensiva de terras raras entre Zimbabué e Moçambique. Em suma, a corrida já começou, mas como é que, desta vez, a África no seu todo e, de forma especial Moçambique, podem tirar benefícios da riqueza natural que detém? Será que irão percorrer o modelo democrático” do carvão, ou o elitista do oil&gas?

Não existe nenhuma fatalidade de maldição ou bênção. Governar é prever, antecipar e ousar fazer políticas económicas endógenas e em adequação com as próprias capacidades e necessidades. O fulcro do debate que temos que ter – para além de renegociar os contractos com as empresas que exploram energias fósseis – de uma maneira preventiva, deveria (também) ser em volta de como tirar proveito das energias de transição – os chamados minerais críticos-, como usá-los, não para fortalecer oligarquias mas para alavancar o desenvolvimento do país. Se fossemos (as elites) menos egoístas e mais patriotas, deveríamos ser pró-activos e, tirando ensinamentos dos catastróficos acordos actuais com as multinacionais, tirar o melhor proveito possível dos nossos recursos, não para oligarquias mafiosas, mas para o país, como um todo.

A propósito, se a escravatura terminou quando se descobriram energias alternativas ao trabalho negro, o que é que (nos) aconteceria se, por ventura, o mundo tivesse -com as mudanças climáticas sempre mais ameaçadoras- que abandonar as energias fósseis, sem ter ainda domesticado energias alternativas/renováveis?

Ensaio de Severino Ngonha, Fredson Guilengue, Augusto Hunguana, Giverage do Amaral & Luca Bussotti

Marcos Carvalho Lopes

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