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MOÇAMBIQUE: MAIS CIVIS DO QUE POLIS!

Barbara Cassin, especialista em filosofia prática, moral e política, dirigiu em 2019 um importante “vocabulário” europeu de filosofia, digno do melhor Diderot. À semelhança da famosa enciclopédia – que compreendia artigos de autores famosos como Voltaire, D`Alembert, Rousseau – o dicionário de Cassin inclui artigos de figuras famosas da filosofia contemporânea, dos quais destacamos Alain Badiou – considerado o último elo do que a vulgata americana chamou de french theory, a vulgata europeia de “pós- modernidade” e alguns historiadores da filosofia, de uma maneira mais sistemática, chamaram de “momento francês”, que compreende personalidades filosóficas que vão de Merleau Ponty até Jacques Rancière, passando por Bergson, Sartre, Bachelard, Lacan, Lyotard, Foucault, Deleuze, Derrida – (…).

O que provoca um pouco de suspeita filosófica (no sentido de Marx e Nietzsche) é que, enquanto a tradição dos enciclopedistas – apesar de ter pecado por um certo etnocentrismo –  se inscrevia no quadro do iluminismo, ou seja, pela universalidade do pensamento, Barbara Cassin, mesmo depois do desconstrucionismo de Derrida, Deleuze, Foucault etc., da intercultura de Raúl Fornet-Betancourt, da denúncia do pensamento post-colonial, limita o seu dicionário não só aos filósofos europeus, mas ainda por cima mete como subtítulo da sua obra “o dicionário dos intraduzíveis”, ao mesmo tempo que os diferentes autores dos artigos não cessam de traduzir do grego ao latim, do latim às línguas vulgares europeias: Francês, Inglês, Alemão etc.

Os autores que escrevem o dicionário dela  são europeus, com a sua pequena extensão em alguns filósofos da América do Norte, da América do Sul até africanos mas numa espécie visibilidade segregada (Paul Gilroy). É uma configuração comparável, nas artes, ao museu do Louvre, que  se recusa a acolher obras não Europeias e considera inaceitável que o mesmo tecto em que habitam as obras de Miguel Angelo, Raffaelo, Leonardo Da Vinci, possa acolher artes não Europeias mesmo  sublimes –  Malangatana, Chissano ou Mabunda. Como na museologia, a historiadora da filosofia parece querer insinuar a irredutibilidade do logos europeu para as diferentes tradições de pensamento, mais do que Diderot e os enciclopedistas ela parece ser habitada por um eurocentrismo, cuja inactualidade a filosofia contemporânea não cessa de denunciar.

Francis Wolff, autor da rubrica (voz) Polis (cidade, estado, sociedade, nação) só  considera esta noção intraduzível por não ter equivalentes da Polis grega nas sociedades contemporâneas. Porém ele reconhece que o conceito grego de polis foi estendido, apropriado, desvirtuado, manipulado por diferentes espaços, tempos e compreende tradições de uso. Esta mesma apropriação aparece para o conceito de Civitas, que muitas vezes, na economia do seu uso, aparece com a mesma significação de Polis. Porém, do ponto de vista genético (Foucault diria arqueológico) da arke, início –  estes dois conceitos têm conteúdos e significados bastante diferentes.

O conceito grego de Polis (cidade), que levou Aristóteles a escrever a Politeia (o tratado sobre a política) para significar as condições ideais da organização  da vida na cidade, tem tido – historicamente – múltiplas asserções, algumas delas politiquices e comportamentos que, ao inverso da politeia de Aristóteles, desorganizam a vida das cidades (países). A ideia da polis – grega – foi historicamente traduzida em civis pelos romanos (latim) o que está na origem da ‘cidade’ e, sobretudo, da ‘cidadania’. Porém, polis e civis têm significados assaz diferentes.

Para os gregos, a ideia de pertença, ser membro da polis, que em latim e nas  línguas vulgares, como o nosso português, se traduz por cidadania, era reservado àqueles que tinham o sangue grego (que nas constituições modernas resultou na ius sanguinis). Quando se fala de polis grega, entende-se uma residência, um lugar no qual vive um genos, uma determinada estirpe. A polis é o lugar onde pessoas determinadas, com específicas tradições, culturas e religiões têm o seu próprio ethos. A fobia dos estrangeiros, pelo medo da mistura de costumes e civilizações, levou até o grande Platão a legislar, de uma maneira quase soviética, as condições de saída de Atenienses para o estrangeiro, assim como a entrada dos estrangeiros em Atenas.

Esta determinação ontológica e genológica do termo polis não se encontra no latim civitas,  que provem de Civis, (conjunto de pessoas que se reuniram para dar vida a uma cidade). Civitas é o produto do encontro, da comunhão e da partilha de pessoas sob as mesmas leis, para além de qualquer determinação ética ou religiosa. Mas estas pessoas têm de aceitar fazer juntos as leis e submeterem-se  a elas de igual maneira. É a famosa “concórdia romana” de Tito Lívio.

Como Roma, fundada sobre o consenso de pessoas expulsas de outras cidades, de refugiados, até de bandidos que se juntam no mesmo lugar e que se conclui, com a famosa constituição antoniana de Caracala, na qual todos os que vivem no interior das fronteiras do império viram Civis Romani, a cidadania moçambicana – hoje ameaçada por diferentes formas de racismo, de retorno, não tem nada de genético, de ácido desoxirribonucleico (ADN): raça, religião, etnia, nem sequer devia estar associada, no seu sentido primeiro e mais profundo, ao lugar de nascimento, mas à adesão aos valores que subentendem o nosso viver colectivo (em comum).

Os cidadãos do que hoje chamamos Moçambique, são changanas, fugitivos zulus; macondes divididos entre as margens do Rovuma; madeirenses e transmontanos, forçados pela política ou pobreza a migrarem para trabalhar nas terras de Chokwé, militares ou filhos de militares colonizadores convertidos à causa de Moçambique, Goeses resultantes dos estratagemas coloniais. São brancos, pretos, indianos; cristãos, muçulmanos, hindus, e é esta a “romanidade da Civis” moçambicana, contra a helenidade dos racismos e apartheides que rezam as nossas diferentes constituições (1975, 1990, 2004 e 2018). A única gema que a moçambicanidade comporta é a pluralidade, o reconhecimento das diferenças e a tolerância.

Seria estranho que tenhamos feito da luta contra os apartheides de todas as formas, uma das nossas diferenças específicas e nos transformarmos, por nossa vez, em segregacionistas e racialistas. Devemos estar vigilantes, sobretudo aqueles que são dotados de poder, em fazermos da gema moçambicana ou da moçambicanidade uma raça, etnia, ou qualquer credo político-partidário ou religioso. Mutatis mutandis, nenhuma raça, credo ou religião deve, também, constituir-se ou perpetuar-se em privilégios, o que destoaria, e cheiraria a um retorno colonial.

Os brancos, os mulatos, os goeses moçambicanos são nossos concidadãos de gema e se lhes  deve todo o respeito que se deve a todo e qualquer outro moçambicano. Mas não se lhes deve reconhecer nenhum privilégio particular, para além daqueles que se reconhece a todo e qualquer moçambicano. Os moçambicanos de confissão muçulmana, independentemente da instrumentalização de que o islão sofre e é vítima por parte de bandidos, traficantes de diamantes, droga e/ou petróleo, não são, e não devem ser alvos de nenhuma discriminação;

Maputo, a nossa Roma (Urbes), tem um grande valor simbólico, enquanto sede das grandes instituições políticas, mas não vive nela nenhuma estirpe ou raça; não tem nenhuma semelhança em termos de significado com Atenas ou Alexandria. Ser ou viver em Maputo ou no Sul não autoriza nenhum privilégio a ninguém.

A cidade, Roma,  é ‘mobilis’, como tenta provar toda a literatura de Virgílio e toda a filosofia augustiniana. A nossa Roma, Moçambique e não Maputo, deve ser também ‘mobilis’. Para a Roma histórica isso significava  que ao nascerde um pacto de respeito das leis, ela se projeta no futuro; estar-se juntos, fazer comunidade (moçambicanidade), para juntos perseguir um fim.

Virgílio chama a esse fim, imperium sine fine, o que quer dizer que Roma (tal como pretendem hoje os americanos) deveria dar a lei a todo o mundo o que iria criar consenso no mundo inteiro. Estamos juntos, não tanto pelo fundamento, mas pelo objectivo: através do consenso e da concórdia produzida pelas leis poderemos ter uma “Roma” mobilis – não Maputo, mas Moçambique mobilis. Não tendo, os moçambicanos, a pretensão de ditar leis a seja quem for, temos, sim, o imperativo de fazer consenso, aproximando do povo as  instituições que representam a nossa lei –  como concórdia e consenso. Esta é a única significação que pode ter para Moçambique a ideia romana  de civitas augescens (cidade, lei, consenso em crescimento); este é o único crescimento legítimo para a nossa moçambicanidade.

Há coisas que não podemos fazer, por exemplo, deslocar a África do Sul, balcão de onde nós, Lázaros do sul, apanhamos as migalhas que caem da mesa do senhor;

não podemos mudar a história, vista como passado, que transferiu a capital da Ilha de Moçambique para a Delagoa bay. Contudo, o que nos impede de descentralizar, mudar ou partilhar os lugares de poder e das instituições de soberania? O que nos impede de deslocar um dos poderes para outras zonas do país?

O Brasil transferiu a sua capital do Rio do Janeiro para Brasília e a importância do Rio ficou intacta. A África do Sul tem três capitais: Cape Town (Legislativa), Pretória (Executiva) e Johannesburg (Financeira). Esta seria uma boa forma de desmaputizar Moçambique, o que seria muito mais importante do que ter que escolher presidentes e ministros pelas suas origens e não  pelas suas competências.

Apesar das sua profundas diferenças, Polis e Civis têm em comum o imperativo do respeito da lei por todos, a começar por aqueles que são supostos fazê-la respeitar. A nomos (a lei) tem origens terrenas (nomos tem a ver com pastorícia), a lei é originalmente o processo através do qual se divide a terra e o gado (comunia, fraternidade, igualdade), mas com base num logos. Por isso a nomos (lei) tem que fundar-se numa justiça –  mais alta –  é o discurso dos filósofos Heráclito e Empédocles, apesar de pecarem pelo seu etnocentrismo.

Os filósofos – políticos –  intervêm na polis, na civis –  e em Moçambique – para recordar a necessidade imperiosa de combinar a nomos (leis) da polis e a iura da civis com a justiça – celeste. E o filósofo italiano G. B.Vico (como mais tarde Schmitt) não cessava de recordar a origem comum entre polis e polemos (guerra), como a recordar que onde não há justiça há guerra e que a guerra é filha das injustiças.

É também hoje, uma ligeireza –  até injustiça epistémica – continuar a dar ao logos um significado étnico, o que outrora impediu aos helénicos de traduzir e ler Virgílio, Horácio, Ovídio, Lucrécio e impede hoje os dicionaristas da ‘euro-intradutibilidade’,  de ler um Filomeno Lopes (Guiné Bissau), José Castiano (Moçambique) ou Eduardo Oliveira (Brasil).

O logos não é étnico e o ethos europeu não é o único logos capaz de fazer diálogos.  Porém, polis e civis nos recordam o imperativo e primordialidade da lei e a sua relação intrínseca com valores  morais e busca da justiça.

Severino Ngoenha, Giveraz Amaral, Eva Trindade, Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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