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Moçambique na encruzilhada do “choque das civilizações”

Ensaio de Severino  Ngoenha, Luca Bussotti, Geveraz Amaral, Eva Trindade, Carlos Carvalho

O filósofo francês Alan Renault, autor de uma monumental obra de filosofia política, defende que o livro mais lido e discutido no século XX foi  “A Theory of Justice”(1971) de John Rawls, tema maior do século XX, quer entre as nações e sociedades quer no interior delas.

Não há dúvida, porém, que o livro mais controverso foi “O Fim Da História E O Último Homem” (1992) de Francis Fukuyama, considerado pelos especialistas como uma péssima interpretação da filosofia da história Hegeliana. Entre os seus detractores  está o seu conterrâneo e colega Samuel Huntington cujo livro, “The Clash Of Civilizations And The Remaking Of World Order” (1996) (que, contrariamente àquele, suscitou, depois de uma indiferença inicial, uma onda de discussões com defensores e críticos, sobretudo depois do 11 de Setembro de 2011 que apareceu para muitos como a confirmação da Guerra de Civilizações.

Como liberal, Fukuyama acreditava, de um maneira naïve, que o fim da guerra fria não marcava só o fim dos totalitarismos, mas, finalmente, o advento e a vitória da liberdade e, com ela, também o fim das injustiças e das guerras. Esta utopia tinha também alimentado a esperança de muitos de nós, sobretudo com o advento da perestroika e  da glasnost , liderados por Gorbatchov (1985).

Huntington, com um realismo cínico, releva a impossibilidade de um mundo sem guerra (em paz), mas não pelo lugar das armas nas economias do mundo – sobretudo depois da criação do império bélico ou industrial durante a Segunda Guerra Mundial – nem da necessidade intrínseca que parece habitar os EUA de ter sempre um inimigo para garantir a própria coesão interna e sobrevivência, e da impossibilidade de transformar a Democracia num sistema social, através de uma partilha do mundo e dos seus bens entre todos os habitantes da Terra. Ele busca numa histórica contraposição e rivalidade religiosa-civilizacional  os condimentos necessários para sustentar a sua tese.

Apesar dos esforços para desconstruir os conceitos herdados de Frazer e Durkheim e demonstrar, que, ao invés de ser algo aleatório ao homem, o sagrado é um dos seus ingredientes principais – Mircea Eliade (a história das religiões) e René Girard (remodelação da antropologia) – a ideia de uma emancipação de Deus fez o seu percurso: cada vez menos religião e cada vez mais progresso, como se a relação entre os dois caminhassem a par e passo e como se o desenvolvimento das técnicas confirmasse esta metamorfose. O saber tomava assim prioridade, ascendência, sobre a transcendência; a técnica dominava a selvajaria do mundo. Morte dos poderes ocultos e entrada em cena de uma racionalidade profana. Daí, e como reacção, os títulos O retorno do sagrado (Dominique Grisoni), A vingança de Deus (Gilles Kepel) fizeram história. As guerras de religiões, para o ocidental, soam como um anacronismo histórico(na tradição etnológica do Ocidente as religiões simbolizam a impotência do homem primitivo em explicar o mundo).

Huntington, para o qual a razão histórica diferenciou e criou civilizações distintas hoje em conflito, regressa ao criacionismo. Isto é mais claro nos seus seguidores e colegas da Universidade de Princeton, os historiadores William Wallace e Bernard Lewis. Estes retomam as críticas onde Fukuyama as tinha deixado e postulam uma história futura feita essencialmente de choque de civilizações diferenciadas por culturas religiosas, como já tinham sugerido Hobbes e Nietzsche.

No essencial, defendem que as divisões entre países pobres e ricos, entre democracias e regimes totalitários, não serão decisivas nos conflitos futuros, dado que já não existe um mundo desenvolvido diferente do mundo comunista e do terceiro mundo. Os regimes políticos e as questões económicas continuarão a ter um papel, mas serão as civilizações e os seus eventuais conflitos a dominar a cena mundial. O motivo é simples: os homens pertencentes a estas diferentes civilizações têm uma visão divergente da relação entre Deus e o homem, indivíduo e grupo, cidadão e Estado, pais e filhos, marido e esposa, assim como da importância relativa dos direitos e das responsabilidades, da liberdade, da autoridade, da igualdade e da hierarquia. As diferenças resultam dos processos que se desenrolaram durante séculos e não estão prestes a desaparecer.

Segundo Wallace, a linha que divide, de maneira mais significativa, a Europa do Leste da do Oeste poderia ser a fronteira da cristandade ocidental do século XV. Esta linha passa pelos limites que separam actualmente a Rússia da Finlândia e dos países bálticos, corta a Bielorrússia e a Ucrânia Oriental Ortodoxa, faz um desvio a Oeste para isolar a Transilvânia do resto da Roménia e depois atravessa a Jugoslávia seguindo quase exactamente os limites entre a Croácia e a Eslovénia. Nos Balcãs, esta linha coincide com a fronteira histórica entre o império dos Habsburgos e o Otomano.

Os povos situados no Norte e no Oeste desta linha são protestantes e católicos. Percorreram o caminho do Feudalismo, do Renascimento, da Reforma, do Iluminismo, da Revolução Francesa, da Revolução Industrial e querem integrar-se numa economia europeia. Os do Leste e Sul são ortodoxos e muçulmanos. A rede de veludo cultural substitui a de ferro, ideológica.

Para Lewis, o conflito entre a civilização ocidental e a islâmica dura há já 1300 anos e é improvável que cesse ou se atenue. Então, aquilo a que assistimos seria o prolongamento de um conflito secular entre civilizações religiosas. Esta liga-se à tese popperiana da existência de inimigos da sociedade aberta, isto é, do Ocidente, do seu modo de vida, dos seus valores.

Até hoje, para os moçambicanos, tais análises eram meras reflexões académicas, apesar deste conflito civilizacional ter tocado já há muito tempo países vizinhos ( tais como Tanzânia, Quénia, Somália, entre outros). Porém, a partir do dia 5 de Outubro de 2017, o conflito passou para dentro do nosso país. Começámos, portanto, a procurar fornecer explicações do fenómeno com que estávamos começando a lidar: estranho e novo para nós, mas na verdade o mais actual desta modernidade instável e conflituosa.

As tentativas de explicação que tivemos até agora do conflito em Cabo Delgado remontam a três perspectivas fundamentais: 1. Económica: as péssimas condições materiais de grupos tais como os Kimwane e os Amakhwua impulsionaram a revolta contra o Estado. 2. Políticas: as populações acima mencionadas foram excluídas da governação da Frelimo de forma sistemática. Não identificando na Renamo uma solução possível, resolveram enveredar para um caminho político autónomo, cujo objectivo fundamental seria a instauração dum sistema institucional alternativo, o Estado islâmico. 3. Religiosas: um Islão tradicionalmente presente no norte do país (mas minoritário e débil se comparado com o Islão rico do Sul, ligado ao partido no poder) veio reclamar uma fé mais autêntica, baseada na Shariah.

Tais factores se entrelaçam todos mas, entretanto, existe uma perspectiva, talvez mais ampla e fundamental, que permitiria enquadrar os factos de Cabo Delgado no seio de uma visão histórica braudelianamente de longue durée, que até agora não foi ainda considerada.

O elemento que todos perceberam deste conflito é que “não percebemos”: é quase como se esta guerra estivesse a acontecer numa outra parte do mundo, fora de Moçambique. Ela não tem nada a ver com o eterno conflito contra a Renamo, pois apresenta elementos mesmo “estranhos”. Esta estranheza, esta alienação provavelmente deriva do facto de nos encontrarmos diante de uma civilização diferente daquela que os moçambicanos, inclusive os académicos, sempre consideraram como “a nossa”: a civilização ocidental, com algumas expressões, mais ou menos coloniais ou pos-coloniais, de matriz africana.

No caso de Cabo Delgado, não seria sustentável afirmar que os “insurgentes” representam e simbolizam o que foi chamado de Oriente, e que tradicionalmente entrou em choque com o Ocidente?

Edward Said, que introduziu este conceito, defendia que o Oriente é uma mera representação do Ocidente, dando um exemplo significativo que envolvia um país africano: recordando as palavras no parlamento britânico de Lord Balfour, concluiu que o Oriente, simbolizado pelo Egipto, é porque os ocidentais (no caso os ingleses) assim o conhecem e o representam, finalmente, dominando-o.

Samuel Huntington vai mais além e defende que o “choque das civilizações” tem as suas raízes na eterna luta entre Ocidente e Oriente, as duas civilizações predominantes. Só que Huntington propõe uma visão mais precisa da de Said: o Oriente é, basicamente, o Islão.

Estas duas civilizações confrontaram-se durante séculos na afirmação de monoteísmos conflituantes e em proselitismos que conduziram a guerras e conquistas recíprocas: depois de um longo período de conquista e ocupação da península Ibérica pelos mouros[1], chegou o tempo de reconquista de Isabel, a Católica, que coincidiu ou até teve como consequência a conquista do Novo Mundo, a dominação da África, o engodo da modernidade ocidental e a imposição de um modelo único que subalternizou todos os outros.

O cheque-mate deste longo jogo de Xadrez foi a queda do Império Otomano, (durante a guerra de 1914/18) e o seu fracionamento em pequenos reinos (acordo Sykes-Picot) só que esta divisão obedecia já uma outra lógica, marcada por princípios políticos e económicos; já não se tratava de um conflito entre Iavé e Allah, não se tratava do proselitismo pela salvação das almas perdidas, mas da emergência de uma nova ‘divindade’: o petrodólar.

Então a história chegava ao seu fim, e com ela chegava o fim de uma realidade ideológica que nasceu em nome da justiça e do bem-estar. Em seu lugar emergiu, não um mundo político-liberal, mas uma nova religião com os seus deuses, anjos e arcanjos, seus profetas e seus séquitos (Shell, Mobil, BP, Total…) , seus demónios e seus prevaricadores (guerra de recursos, desterritorialização das populações, poluição ambiental): é petrodólarocratismo, que sustenta a aliança – improvável – entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita, que data desde 1945 quando o Presidente Franklin Roosevelt, de retorno da conferência de Yalta, se encontrou com Abdal-Aziz al Saud, primeiro rei da Arábia Saudita, a quem prometeu protecção e apoio tecnológico em troca do petróleo.

O que não se previu era quão renhida iria ser a competição, não só entre os habituais predadores (USA, França, Inglaterra, Espanha, Itália, Portugal) mas também com os novos contendores, recentemente convertidos ao novo monoteísmo do rendimento a todo o custo: Rússia e China.

Porém a prevalência desta longa e violenta confrontação depois das cruzadas (Amin Malouf), conquistas e reconquistas, prolonga-se nos dias de hoje, no interior das alianças e em novos espaços, com a guerra iniciada em 2001  e ainda não acabada –  com o atentado às Torres Gémeas, com a guerra da Síria, com a ocupação da Palestina por Israel, com os Al Shabaab…

É possível supor que Moçambique constitua o novo teatro deste longo confronto para a vitória de uma ou da outra civilização? Dentro de tal conflito temos um petro-Islão, cuja finalidade é competir economicamente com o petro-Ocidente, e um teo-Islão, que pretende ter a hegemonia cultural e religiosa em relação aos valores dito judaico-cristãos. Mas se trata de duas vertentes do mesmo conflito e do mesmo choque de civilizações, que nós moçambicanos ainda não compreendemos na sua essência, pois nos é estranho. Paradoxalmente, ela catapulta pela primeira vez, Moçambique para o centro do mundo; de fora da periferia da arcaica luta Frelimo-Renamo, para dentro do conflito civilizacional contemporâneo.

Podem dizer o que quiserem, podem moçambicanizar como quiserem o conflito deles em volta dos nossos recursos, instrumentalizando as nossas insuficiências em termos políticos, económicos, sociais e até étnicos, como aliás já o fizeram na guerra dos 16 anos. Mas como então acabou ficando claro o leat motif, com os seus bispos, cardeais, evangelistas, profetas, mas também com os seus mártires, não os que morrem porque se alinham numa causa, nem os que tiram proveito das migalhas que caem das mesas de seus senhores, mas aqueles que vagueiam como novos judeus, prontos a fugir de novos Hitlers para preservar a única coisa que pensam ainda ter: a sobrevivência.

Se no desenrolar da guerra fria fomos chamados somente a ser palco, e não se reconheceu a nossa pertença à história (duvidou-se da legitimidade existencial da nossa contribuição para ela), hoje somos chamados a ser actores, se não pelos fazedores da história, pela circunstâncias da abundância dos recursos naturais necessários ao culto do petrodolarocratismo. É nossa responsabilidade desempenhar o nosso papel de modo que sejamos actores válidos da pós-história e do processo de apaziguamento das civilizações. É nestas circunstâncias da política mundo, que cai sobre nós com toda a força da sua perversidade, que nós somos chamados a ser Moçambique e fazer comunidade. Para além da perversão e da perversidade do sistema e dos outros em relação a nós não podemos escapar à questão fundamental da nossa responsabilidade. O que é e como fazer política, quando se está na encruzilhada de conflitos seculares e globais?

Severino  Ngoenha, Luca Bussotti, Geveraz Amaral, Eva Trindade, Carlos Carvalho


[1]Povos originários do Magrebe, de pele com tonalidade escura, assim designados durante a dominação Romana e a Idade média.

Marcos Carvalho Lopes

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