Existe um Direito Internacional Pós-colonial?
Luís Kandjimbo |*
Uma resposta afirmativa à pergunta formulada no ante-título não faz sentido porque pressupõe o reconhecimento injustificado do carácter benigno do pós-colonialismo, fundado na ignorância da natureza maligna do colonialismo.
Como se sabe, a área do saber ou campo científico do que assim se convencionou denominar tem hoje, paradoxalmente, uma consagração institucional, enquanto conjunto de disciplinas, por exemplo “direito pós-colonial”, “literatura pós-colonial”, a que se designa por “estudos pós-coloniais”. Sendo possível admitir a existência de um Direito Internacional Colonial, poder-se-á falar de um “Direito Internacional Pós-colonial”? Tal como prometido, este é o nosso tópico de conversa.
Ascendência anglo-saxónica
A invocação da benignidade do colonialismo ou do pós-colonialismo configura uma argumentação dominante nos chamados “estudos pós-coloniais”. Assenta no determinismo temporal da presença europeia em África de que deve depender a datação dos acontecimentos históricos que ocorrem após o século XV. Curiosamente, os “estudos coloniais” não têm a mesma dignidade institucional e disciplinar nas universidades que elevaram os “estudos pós-coloniais” ao estatuto de disciplina académica.
Quanto a nós, estamos perante uma expressiva manifestação do modo como a proeminência do pensamento ocidental eurocêntrico de ascendência anglo-saxónica resiste aos modelos teóricos alternativos mais adequados à diversidade epistemológica do mundo actual. Por outro lado, a controversa denominação como disciplina académica visa de modo anacrónico revelar a potência de uma Europa quese organizava em torno do colonialismo, enquanto período histórico. Além disso, regista-se o reconhecimento de uma impotência epistemológica revelada através de uma conceitualização ambígua que tece as agendas de investigação e ensino de acordo com interesses hegemónicos em determinados países anglófonos.
É comum dizer-se que na génese dos estudos pós-coloniais está a publicação, em 1978,do livro “Orientalismo” de Edward Said (1935-2003). Uma década depois, acresciam as propostas de três autores anglo-saxónicos, Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tijin, “The Empire Writes Back”, 1989,[O Império Está de Volta].Maso uso mais antigo do termo “pós-colonial”, enquanto conceito periodológico, no contexto académico, parece ter ocorrido em1910 com oensaio escrito porT. W. Allen (1862-1950) e publicado no “Journal of Hellenic Studies”, ao referir-se a um “poeta pós-colonial”, quando comenta as acções de Agamémnon na Odisseia, obrado poeta grego Homero.
Da década de 50 à década de 70 do século XX, o termo foi sendo usado nos domínios da linguística e das literaturas, exclusivamente como marcador periodológico. Em1983, no congresso da Modern Language Association of America (MLA), [Associação Americana de Línguas Modernas], realizado na Universidade do Texas, Austin, a comparatista e crítica literária indiana, Gayatri Spivak,presidiu a um painel integrado por Edward Said, Homi K. Bhabha e William Pietz. Nessa ocasião, o termo “pós-colonialismo” foi usado em sentido sem conotação temporal. Transita para os estudos africanos nos anos 70, fixando-se especialmente nos estudos literários em 1990, através da sua consagração pelaPublications of the Modern Language Association of America (PMLA), [Revista da Associação Americana de Línguas Modernas], ao publicar as actas de um evento científico da Associação do Pacífico Sul para Estudos de Literatura e Linguagem com o seguinte título: “Nacionalismo, Regionalismo e Internacionalismo na Literatura Pós-colonial”.
Interpretações e sentido
Alguns autores interpretam o termo “pós-colonial” atribuindo-lhe vários usos e sentidos. O historiador turco-americano, Arif Dirlik (1940-2017), apontava três usos do termo: (a) descrição literal das condições nas antigas colónias, caso em que o termo tem referentes concretos, como em sociedades pós-coloniais ou intelectuais pós-coloniais; (b) descrição de uma condição global após o período do colonialismo, caso em que o uso é mais abstracto e menos concreto em referência, cuja imprecisão compara-se ao uso anterior; e (c) descrição de um discurso sobre as orientações epistémicas e psicológicas, analisadas como produtos dessas condições.
Por sua vez, o filósofo ganense Anthony Kwame Appiah, baseando-se na sua experiência e conhecimento das realidades culturais, sustenta que em Áfricao “pós” no “pós-colonial”, assim como o “pós” no “pós-moderno” corresponde ao “pós” do gesto de limpeza do espaço de muitas áreas da vida cultural africana contemporânea. E isso nada tem a ver com a colonialidade. Pode-se dizer, acrescenta Appiah, que a ausência dessa relação é uma marca da cultura popular, detal modo que os empréstimos de formas culturais internacionais são claramente indiferentes à questão do neocolonialismo ou ao “imperialismo cultural”.Portanto, os sentidos e os usos dos termos “pós-colonial” e “pós-colonialismo” são ambíguos, sendo legitimo questionar a sua utilidade, no contexto africano. É o que acontece ao nível do Direito Internacional.
Origem colonial do direito internacional
A argumentação segundo a qual o Direito Internacional Público contemporâneo tem origens coloniais, mantendo conexões com desigualdades e exploração de outros povos, é elaborada por Antony Anghieno seu livro “Imperialism, Sovereignty and the Making of International Law”, 2005,[Imperialismo, Soberania e Criação do Direito Internacional]. Este tema é crucial para a compreensão do “sistema de mandato” que se constituiu por oposição ao tipo de colonialismo praticado no século XIX. Para Antony Anghie, o surgimento de Estados soberanos e o fim de territórios coloniais teve uma importância capital para a afirmação do direito internacional. Mas entende ser necessário reavaliar a relação entre o direito internacional e a soberania dos Estados do chamado Sul Global, na medida em que ainda são observáveis os efeitos incapacitantes do neocolonialismo e o carácter duradouro das relações coloniais, após as independências. Antony Anghie denuncia o neocolonialismo como fenómeno que deve ser estudado e que se situa nas origens do processo de descolonização, de acordo com o já referido “sistema de mandato” da Liga das Nações, que precedeu a ONU.
Os méritos que se atribuem ao movimento das “Abordagens do Terceiro Mundo para o Direito Internacional” estão associados aos contributos relativos ao que tem sido a marginalização ou sub-representaçãode povos não-ocidentais. Por essa razão, o movimento assume a forma de discursos contra o eurocentrismo. Há correntes que se recusam em aceitar que o direito internacional tenha sido expurgado do legado imperial, apesar do exercício do direito à autodeterminação e do princípio da igualdade soberana dos povos não-europeus.
Outras gerações de juristas
Como vimos, o professor egípcio Georges Abi-Saab (1933), um dos integrantes da primeira geração de juristas internacionais do Terceiro Mundo, por conseguinte do movimento “Abordagens do Terceiro Mundo para o Direito Internacional”,TWAIL I, considera que os Estados do recém-independente Terceiro Mundo começaram por contestar a universalidade e a legitimidade do sistema jurídico internacional. Cultivavam a crença num sistema do direito internacional cujas mudanças deveriam beneficiar a humanidade inteira, não apenas cidadãos das antigas potências coloniais. Os membros da segunda geração, do movimento “Abordagens do Terceiro Mundo para o Direito Internacional”,o chamado TWAIL II, reconhecem o papel desempenhado pela geração anterior nas acções empreendidas, tal como foram mencionadas pelo professor egípcio Georges Abi-Saab. Essa geração distinguiu-se pelo seu “contribucionismo” que se traduziu na presença do mundo não-ocidentalna construção do direito internacional.
O jurista internacional queniano James T. Gathii sublinha o facto de,a partir da década de 90 do século XX, os investigadores que integram a segunda geração do movimento “Abordagens do Terceiro Mundo para o Direito Internacional”,TWAIL II, terem assumido o compromisso de desenvolver as ideias e as preocupações da primeira geração, no contexto do fim de século. A coexistência das duas gerações de juristas internacionais tem vindo a permitir que elas contribuam para criação de um novo sistema de direito internacional. A rede de membros é multinacional e nas dinâmicas dos debates distinguem-se obras e autores.
Com o seu longo artigo “TWAIL: A Brief History of Its Origins, Its Decentralized Network, and a Tentative Bibliography”, [TWAIL: Uma Breve História de suas Origens, Rede descentralizada e uma tentativa de Bibliografia], publicado em 2011, James T. Gathiifaz o balanço e inventaria as publicações. Entre investigadores que pontificam no movimento merecem referência Anthony Anghie,Universidade de Utah, Bhupinder Chimni, Universidade Jawaharlal Nehru, Issa Shivji da Universidade de Dar-es-Salaame Makau Mutua, Universidade de Buffalo. Em emergência está uma geração de mulheres que impregna o movimento com novas perspectivas. A título de informação, mencionamos aqui alguns nomes: Vasuki Nesiah, Sylvia Tamale, Celestine Nyamu, Dianne Ottoso, Penelope Andrews, Berta Hernandez-Truyol, Hope Lewis (1962-2016), Lama Abu-Odeh, Adrian Wing, Athena Mutua, Leslye Obiora, Sundhya Pahuja, Sylvia Kangara, Mosope Fagbongbeo.
Grandes temas
Numa breve síntese da produção reflexiva dos membros do movimento das “Abordagens do Terceiro Mundo para o Direito Internacional”, o jurista turco, Şahin Eray Kırdım, identifica oito grandes temas.
1) O eurocentrismo do direito internacional. Com ele problematiza-se o direito internacional como resultado da história e experiência europeia, transplantados para o mundo não-europeu. Por outro lado, o direito internacional é apresentado como produto da civilização cristã.
2) O direito internacional como dispositivo legitimador do colonialismo. Isto significa que a história do direito internacional está indissoluvelmente ligada ao projecto colonial. Para o efeito, o inventário de regras do direito internacional sobre a aquisição de terras, reconhecimento, responsabilidade do Estado e sucessão, fornece elementos significativos.
3) A “missão da civilização” como eufemismo do colonialismo. É um tema sobre o qual a crítica procura compreender o que durante décadas servia para ocultar os fundamentos morais da intervenção contínua do Ocidente nas sociedades do Terceiro Mundo.
4) O direito internacional como instrumento destinado aos povos não-europeus. Desde as suas origens estava ao serviço da violência contra os infiéis e os bárbaros, legitimando-se assim a desumanização e a escravização praticadas pelas potências coloniais europeias.
5) O conceito de soberania europeia para fins coloniais. O Estado soberano, à luz dos conceitos operatórios usados pelas potências imperialistas europeias, era considerado o actor legítimo, representante de um povo ou de uma comunidade e de suas formas de organização política. Daí emanava a legitimidade da colonização de territórios soberanos não-europeus.
6) O direito internacional como suporte da ordem internacional desigual e injusta. Através da função instrumental ao serviço do colonialismo é possível analisar o direito internacional em diferentes campos em que intervém, cobrindo, por exemplo, a cultura, a política, a economia, a defesa e a geografia física.
7) O direito internacional que se distingue pela falsa reivindicação de universalidade. O monismo do direito internacional é apresentado como uma universalidade que se caracteriza pela sua vocação eurocêntrica e cristã, culturalmente hegemónica.
8) O direito internacional e sua transformação de acordo com as experiências vividas pelos povos do Terceiro Mundo. Faz a apologia de um direito internacional com impacto na vida cotidiana. Por conseguinte, as funções do direito internacional implicam o respeito dos interesses e das necessidades dos povos do Terceiro Mundo.
Conclusão
Portanto, o debate sobre a existência de um “Direito Internacional Pós-colonial”está inscrito na agenda do movimento “Abordagens do Terceiro Mundo ao Direito Internacional”. Por conseguinte, é multidisciplinar, cabendo no seu seio todas as contra-dircursividades que visam liquidar as hegemonias epistémicas ocidentais e suas resistências. O espectro de experiências históricas e correntes de pensamento evidencia-se através das origens dos membros da rede transcontinental, bem como da presença das mulheres. Os verdadeiros problemas do debate são de ordem conceptual. Donde o conceito de Direito Internacional, a marginalização dos sujeitos com personalidade jurídica internacional e as qualificações que concorrem para a sua definição constituem tópicos privilegiados dessa agenda. Neste sentido, apesar dos empréstimos que provêm dos Estudos Literários, da História e da Teoria Política, a problematização do “pós-colonial” e do “pós-colonialismo” no Direito Internacional afasta-se dos cânones com que aí se opera.
*Doutorado em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.
[Produção científica do investigador]
Publicado originalmente em 18/06/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/novos-problemas-outros-estados-e-sujeitos-internacionais/