Se há algo que nos deve importar e por cuja falta devemos nos sentir afetados, é a verdade. Apesar de tudo, foi a verdade que interessava e angustiava Althusser
A motivação por trás de todos estes artigos sobre Althusser é a verdade. Ou, melhor, a freqüente falta de respeito por ela nos meios acadêmicos. Pode parecer estranho dizer isso, mas o fato é que Althusser é um claro exemplo das imposturas acadêmicas que não podemos tolerar.
Althusser chegou a ter grande influência e prestígio nos meios intelectuais e políticos nos anos 60 e 70 na França e na América Latina. Eu só posso explicar essa fama e esse prestígio pela ignorância dos seus leitores. O caso é que Althusser se apresentava como propondo teses marxistas que, para qualquer leitor de Marx, pouco tinham a ver com o que propusera o pensador alemão — quando não o contradiziam frontalmente.
Não pense o leitor que só hoje, depois de Althusser ter reconhecido seus artifícios e falsificações, me preocupo por escrever sobre tudo isso. Não, já o fiz muito tempo atrás, quando Althusser ainda vivia e era o filósofo de moda nos meios universitários. Decidi escrever minha monografia de graduação, no final da década de 70, para demonstrar o abismo que separava as teses de Althusser das de Marx. Mal podia imaginar que, mais de 20 anos depois, iria encontrar a confirmação das minhas teses pelas declarações do próprio autor. Com efeito, na sua autobiografia, Althusser confessa que inventara um Marx muito seu e que isso fazia parte de uma longa história de imposturas e artifícios.
Criar um Marx diferente do real fazia parte de um modus operandi da sua personalidade acadêmica. Não se cansa de repetir, por exemplo, que aprendera e nunca esquecera “a arte (…) de compor e redigir sobre qualquer assunto, a priori, e, como que por dedução, no vazio, uma dissertação que se sustente e convença”.¹ Antes tinha plagiado um texto corrigido por um professor a quem imitara até a letra. Conta que aprendia por “ouvir dizer”, “recolhendo esta ou aquela fórmula captada de passagem” e, inclusive, pelo que lia “dos meus próprios alunos em suas exposições e dissertações”. (p. 149)
Já li em alguma biografia de Althusser que suas crises psicológicas foram causadas pelos seus anos de cativeiro num campo de concentração alemão. Nada mais natural acreditar nisso, não fossem suas próprias declarações que contam uma história bem diferente: “Mas na realidade devo reconhecer que me instalei bastante bem no cativeiro (um verdadeiro conforto), pois uma verdadeira segurança de arame farpado: sem nenhuma preocupação com meus pais, e confesso que cheguei até a encontrar, nessa vida fraterna, entre verdadeiros homens, o meio de suportá-la como uma vida fácil, feliz pois bem protegida”. (p. 100)
Pois é, Althusser, o autor de uma pretensa teoria marxista de ideologia preferiu o cativeiro da guerra a sua própria família. Surpreende o que ele pensava da família, se levarmos em conta que, pelas suas próprias declarações, ele nunca foi submetido pelos pais ou avôs a tratos cruéis ou a abusos sexuais: “O que a experiência do cativeiro também me ensinou foi como me senti bem vivendo em companhia, não mais do pai e da mãe…, em suma, não mais sob o terrível, digo bem, terrível… do terrível, do pavoroso e do mais assustador de todos os aparelhos ideológicos do Estado que é… a família.” (!) (p. 97) Prefere, assim, a companhia de soldados inimigos e prisioneiros de um campo de concentração à da família, essa coisa apavorante que lhe chocava e fazia tanto mal como o cheiro feminino, o toque, o beijo e o amor carnal de uma mulher.
Mas será que um marxista althusseriano está em condições de reconhecer hoje essas fraudes? Será que está em condições de processar declarações como esta (que explica o que ele fizera com a teoria de Marx)? Vejamos o que diz: “Em síntese, foi a partir de todo esse passado pessoal, dessas leituras e associações, que me apropriei do marxismo como meu próprio bem, pus-me a pensar nele, a meu modo, é verdade, o qual agora vejo que não era exatamente o de Marx”. (p. 196)
Althusser, o Lado Positivo — Há, no entanto, um lado positivo em toda essa história. Althusser vira em Marx uma série de problemas, desde inconsistências a contradições: “Vejo muito bem que o que fiz foi apenas tentar transformar os textos teóricos de Marx, freqüentemente obscuros e contraditórios, se não cheios de lacunas…, em inteligíveis em si mesmos e para nós”. (p. 196) Penso que essa é a atitude filosófica correta ao se ler um filósofo: ler, entender e avaliar. O problema, no caso de Althusser, é que ele corrigiu Marx sem dizer ao leitor o que estava fazendo, propondo uma nova teoria, a dele, Althusser, como se fosse de Marx. É óbvio que o resultado só podia ser, como ele mesmo diz, “um marxismo imaginário”: “O que reconheço de bom grado, pois na realidade suprimi de Marx não só tudo o que me parecia incompatível com seus princípios materialistas, mas também o que subsiste de ideologia…” (p. 196) Isso, sem dúvida, tem um grande valor, pois é por essa atitude que a filosofia e a ciência avançam. Lamentavelmente, não é essa a atitude dos “especialistas” e “leitores” dos grandes filósofos que costumam se contentar com interpretar os autores sem jamais entrar na questão central: “em que tem razão?”, “em que se enganou?” A questão primeira e última na filosofia e na ciência, penso, é a verdade, e é ela que deve orientar nossas pesquisas.
Sem dúvida que essa preocupação de Althusser de querer corrigir os erros de Marx contrasta com o servilismo intelectual de muitos dos seguidores do pensador alemão e que deve muito ao stalinismo. Até hoje, qualquer tentativa de criticar Marx é vista com maus olhos por muitos dos seus seguidores que logo condenam o atrevido com o mote de “reacionário”. Suponho que esse tenha sido um dos motivos pelos quais Althusser não confessara publicamente, já naquela época, que estava corrigindo Marx. Imediatamente teria sido tachado de reacionário, revisionista e condenado ao ostracismo.
Apesar de todas suas imposturas e artifícios, Althusser mostra que, em última instância, o que interessa é mesmo a verdade.
1 Althusser, O Futuro Dura Muito Tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 88.
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |