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O Caso Althusser V: O marxismo imaginário

No método das “leituras” arbitrárias, teses econômicas têm um “profundo” significado psicológico

Vimos até aqui que a vida de Althusser, por própria confissão, é a história de seus artifícios e imposturas. Interessam-nos, entretanto, aqueles episódios que se relacionam com sua vida intelectual e ajudam, em parte, a entender o verdadeiro significado de suas propostas teóricas.

Quem consulta uma biografia sobre Althusser vai encontrar Por Marx e Ler “O capital” como suas contribuições mais importantes. Vejamos o que ele próprio tem a dizer sobre o que aconteceu depois de sua publicação e por quê. Antes disso, lembremos a descrição de um método que aprendera de Guitton: escrever sobre qualquer assunto, a priori, no vazio, uma dissertação convincente. Sobre esse método, ele diz: “Pois ele me conferira… o conhecimento… dos artifícios apropriados para que eu fosse reconhecido (mesmo sendo como impostor, mas eu não tinha outro caminho) dentro da Universidade, em seu mais alto nível”.¹ (Note-se, mais uma vez, o recorrente uso dos termos “impostor”, “impostura” e “artifícios” para descrever seu trabalho e a si próprio.)

Voltemos agora ao relato do que acontecera depois de ter publicado essas duas obras: “Mas provavelmente o caso mais expressivo de meus terrores fantasmáticos… é o terceiro “motivo” que causou várias depressões minhas, em especial a espetacular depressão do outono de 1965. Eu acabara de publicar, em meio à euforia, Por Marx e Ler “O Capital”, que saíram em outubro. Fui então acometido de um pavor incrível, diante da idéia de que aqueles textos iam me mostrar totalmente nu, ou seja, tal como eu era, um ser inteiramente de artifícios e imposturas, e nada mais, um filósofo que não conhecia quase nada de história da filosofia e quase nada de Marx (cujas obras de juventude havia de fato estudado de perto, mas de quem só tinha estudado seriamente o Livro I de O capital, naquele ano de 1964 em que dei um seminário que resultou em Ler “O Capital”). Sentia-me um “filósofo” lançado numa construção arbitrária, bastante alheia ao próprio Marx. Raymond Aron não estava totalmente errado ao falar, ao meu respeito… de “marxismo imaginário”… Em suma, eu temia me expor a um desmentido público catastrófico. Em meio a meu temor da catástrofe… lancei-me naquela catástrofe e “fiz” uma impressionante depressão”. (p. 133-4)

O próprio Althusser não poderia ter escolhido melhores palavras para definir seus escritos sobre o filósofo alemão e sua obra: construção arbitrária, bastante alheia ao próprio Marx. Que quer dizer “eu temia me expor a um desmentido público catastrófico”? Que, contrariamente aos que defendem as “leituras” arbitrárias dos autores, há algo que eles realmente dizem. Pois não podemos realmente aceitar que os autores escrevam para não dizer nada. Se Althusser estava “acometido por um pavor terrível”, isso pressupõe que ele sabia que Marx tinha dito alguma coisa e que ele, Althusser, lhe atribuíra outra. Por isso, é claro, Raymond Aron “não podia estar totalmente errado ao falar, a meu respeito… de ‘marxismo imaginário’”, porque é óbvio que certas coisas que Althusser apresenta como de Marx só poderiam ter sido fruto de sua fértil imaginação, de suas costumeiras imposturas ou de sua insanidade mental. Seu pavor era justificado porque era de se esperar que aqueles que conheciam o filósofo alemão não podiam não perceber as diferenças entre o que Marx realmente disse e o que Althusser lhe atribuía. Não podiam, isto é, deixar de perceber tais imposturas.

Imposturas que Althusser não se cansa de reconhecer e enumerar. Quando lembra os exames para se formar professor, diz com franqueza: “Posso lembrar que tanto no exame escrito como no oral tratei a maioria dos assuntos sem conhecê-los bem! Mas eu sabia “fazer” uma dissertação e disfarçar razoavelmente minhas ignorâncias tratando, a priori, de qualquer assunto… o que Jean Guitton me ensinara para o resto da vida”. (p. 146) Isso aconteceu em 1948. Quase vinte anos depois, faz o mesmo ao escrever os dois textos mencionados: escrevera sobre Marx sem conhecer, como ele mesmo diz, “quase nada de filosofia e quase nada de Marx”! Mas mesmo assim conseguiu enganar muita gente. Nem todos, naturalmente, mas aqueles que não se incomodam com a verdade ou não querem ou não podem conferir as fontes.

Mas o próprio Althusser se incomodava com a verdade, à sua maneira. Sabia de sua impostura quando escreveu aqueles dois textos sobre Marx. Mas só se preocupou com ela pela possibilidade de ser desmascarado. E é franco o suficiente, mesmo na sua autobiografia escrita para expiar sua culpa por ter estrangulado sua mulher, como para reconhecer que seu “método” de aprendizado consistia em “aprender por ouvir dizer” (p. 149) “recolhendo esta ou aquela fórmula captada de passagem”. Lembremos esta outra declaração: “Mas talvez eu tivesse uma outra capacidade bem minha. A partir de uma simples fórmula, sentia-me capaz (que ilusão!) de reconstruir, se não o pensamento, pelo menos a tendência e a orientação de um autor ou de um livro que não tinha lido”. (p. 149) É isso que fizera com Marx naqueles dois textos famosos e que provocaram o pavor que o levou a uma nova depressão ou, melhor, como ele mesmo diz, “[à] espetacular depressão do outono de 1965”. (p. 133)

Mas não são menos problemáticas as coisas que afirma a partir do que de fato lera. Numa época em que começara a realmente ler Marx, diz: “Pus-me a trabalhar no espantoso manuscrito de 1858… no qual se encontra essa fórmula surpreendente: “Não é a anatomia do macaco que explica a anatomia do homem, mas a anatomia do homem que explica a do macaco”. (p. 185) Esta frase de Marx não esconde nenhum mistério. O contexto é a transformação dos sistemas econômicos, e o que diz, mutatis mutandis, é simplesmente que um sistema econômico anterior não pode explicar um sistema econômico posterior, mas vice-versa. Quero que o leitor faça uma pausa e pense nessa fórmula. Pode mesmo conferir a fonte. Não vejo como ela poderia ser lida fora de um contexto econômico. Mas, de modo surpreendente, ela vira uma fórmula freudiana! Sim, isso mesmo, segundo Althusser, “É evidentemente a própria antecipação da teoria freudiana do a posteriori: o significado de uma afeto anterior só se dá em e mediante um afeto ulterior que simultaneamente o assinala como tendo existido retrospectivamente e o inverte em seu próprio significado anterior”. (!?) (Meus grifos) Gostaria de saber o que Marx e Freud diriam sobre semelhante “leitura”. Esse é o problema: se essa leitura psicanalítica de Marx é possível nesse contexto, então tudo é possível. Pois, desse modo, a imaginação febril se instalaria como parte fundamental do método interpretativo. Em que sentido podemos imaginar Marx pensando em “afetos anteriores” e “afetos ulteriores” quando claramente estava considerando processos econômicos? Para Althusser, note-se, a fórmula de Marx é “evidentemente” uma antecipação de Freud. Isto é, salta à vista, é óbvia! “Evidente”!? Se for evidente, então, e mais uma vez, toda leitura é possível e cada autor termina dizendo tudo, o que quis e o que não quis, o que pensou e o que jamais poderia ter passado pela sua cabeça. No fundo, então, não se trata de pensar, refletir, pesquisar ou procurar a verdade mas de forjar, inventar, fraudar e falsificar. É o resultado do “método” das “leituras” que ampara os impostores.

1 O Futuro Dura Muito Tempo. São Paulo : Companhia das Letras, 1992, p. 88-9, meus grifos.

GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS, filósofo e professor da UFG, é articulista do Jornal Opção

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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