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Argumentação de um filósofo africano do iluminismo alemão

Luís Kandjimbo |*

Refutação anti-cartesiana

No texto anterior afirmámos que a leitura da dissertação sobre impassibilidade da consciência humana de Anton Wilhelm Amo Afer permite concluir que o centro das suas atenções reside na refutação das teses que sustentam a defesa do dualismo mente-corpo do filósofo francês René Descartes.

De resto, o filósofo iluminista ganense afirma-o expressamente, na seguinte fórmula latina: “Ad quae verba ita monemus et dissentimus; mentem cum corpore mediante mutua unione agere, concedimus; Sed cum corpore pati negamus.”[Em resposta a essas palavras, chamamos a atenção e afirmamos o nosso desacordo: admitimos que a mente actue com o corpo por meio de uma união mútua, mas negamos que sofra com o corpo.]

A referida fórmula do discurso argumentativo traduz a observância de um procedimento da “disputatio”, isto é, do debate académico, que neste caso consiste no uso de expressões como “dissentimus” [afirmamos o desacordo] e “negamus” [refutamos]. Por conseguinte, trata-se da refutação de um dos elementos centrais do pensamento cartesiano. Deriva daí a interpretação de três filósofos ganenses, nomeadamente, William E.  Abraham, Kwame Nkrumah (1909-1972) e Kwasi Wiredu (1931-2022). Em sentido contrário encontram-se, entre outros, dois autores norte-americanos, Stephen Menn e Justin E. H. Smith, que se encarregaram de traduzir as dissertações e a publicar um livro dedicado a uma parte da vida, especialmente ao itinerário académico de Anton Wilhelm Amo Afer. Como veremos mais adiante, Stephen Menn e Justin E. H. Smith questionam o alcance da refutação anti-cartesiana de Anton Wilhelm Amo, bem como as interpretações dos três filósofos ganenses contemporâneos. A título de informação, pode ser útil referir um outro motivo de desacordo suscitado pela obra de Wilhelm Amo. É o que pensava Kwame Gykye (1939-2019),um outro filósofo ganense, quando  considerava que tal motivo residia no facto de o discurso, as problematizações e os temas abordados por Anton Wilhelm Amo não merecerem a inscrição no universo da filosofia africana.

Um proeminente wolffiano

Ora, Anton Wilhelm Amo Aferé o jovem de origem africana, adoptado por uma família de holandeses de alto estatuto social, que em 1727 se tinha matriculado na Universidade de Halle, na Alemanha, tendo defendido um trabalho de licenciatura em Direito, “De Jure Maurorum in Europa”,[Sobre o Direito dos Negros na Europa],em 1729. Quando chegou a Halle, palpitavam no ambiente intelectual as ideias do filósofo e professor Christian Wolff (1679-1754), discípulo de Gottfried Leibniz (1646-1716). Era o wolffianismo e as ideias de uma filosofia médica que dominava em Halle. Mas Wolff tinha sido expulso, em 1723.A sua transferência para a Universidade de Wittenberg efectiva-se em Setembro de 1730, sendo estudante matriculado sob a designação de “Anton Wilhelm Amo, von Guinea in Africa”. Por força de um concurso anunciado pelo decano da Faculdade de Filosofia, em Outubro do mesmo ano, foi promovido à categoria de “Magister”. Regressou à Universidade de Halle em 1736. Gozava então do estatuto de “Dozent”, professor, na Faculdade de Filosofia,identificado como “Antonius Wilhelmus Amo, philosophiae ac liberalium artium Magister, ex Africae provincia litorali Guiné ortus” [Anton Wilhelm Amo, Doutor em Filosofia e Artes Liberais, originário da Guiné, província costeira de África]. Data desse período a publicação das lições proferidas na Universidade de Halle, sob o título, “Tractatus de arte sobrie et philosophandi preciso” (Tratado sobre a Arte de Filosofar com Sobriedade e Precisão).

Em 1738, é citado como um dos mais proeminentes wolffianos, nolivro do historiógrafo e filósofo iluminista alemão Carl Günther Ludovici (1707-1778), intitulado “Ausführlicher Entwurf einer vollständigen Historie der Wolffischen Philosophie” [Esboço Desenvolvido de uma História Completa da Filosofia Wolffiana].Por essa razão, Anton Wilhelm Amo Afer mereceu um verbete no “Dicionário de  Filósofos Alemães do Século XVIII” da prestigiada editora inglesa Bloomsbury Publishing, na sua edição de 2016.

Negando o desacordo

Os dois norte-americanos referidos, Stephen Menn e Justin E. H. Smith, parecem não levar a sério a argumentação e a intenção refutativa de Anton Wilhelm Amo Afer, nem as posições dos três filósofos Africanos que qualificam as posições do iluminista ganense como anti-cartesianas. Eles entendem que Kwame Nkrumah atribuía a Amo, presumivelmente, duas visões anti-cartesianas. A primeira aponta para o sentido segundo a qual a mente deveacomodar ideias de coisas extensas. A segunda, numa outra presunção, refere que a mente é considerada como parte integrada ao corpo, para lá do que Descartes admite.

Stephen Menn e Justin E. H. Smith vêm contrariar o sentido do que são as presunções atribuídas a Nkrumah, por exemplo. Consideram que Anton Wilhelm Amo problematiza as ideias de Descartes em cinco ocasiões distintas, na sua tese de doutoramento. A primeira ocorrência, dizem eles, se verifica quando Anton Wilhelm Amo corrobora a sua própria visão de que a alma não pode sofrer paixão por contacto, pois tudo o que toca ou é tocado constitui um corpo, formado na mente de Deus e integrado por outras substâncias pensantes que não estabelecem qualquer “vínculo e relações muito estreitas com o corpo”. No dizer de Stephen Menn e Justin E. H. Smith, Anton Wilhelm Amo nega aqui que possa haver qualquer representação na mente de Deus, “uma vez que a representação supõe a ausência da coisa a ser representada”. Em vez disso, os pensamentos não sensoriais de Deus sobre as substâncias criadas são aqueles que, presumivelmente, dizem respeito ao conceito dessas substâncias, como totalmente presentes na mente de Deus. A terceira ocorrência parece ser uma invocação de Descartes, novamente, com a qual Amo esclarece a noção de “sentidos internos”, definindo-os como “paixões ou afectos da alma”. Stephen Menn e Justin E. H. Smithre ferem ainda que, posteriormente, Anton W. Amo estabelece a diferença entre sua própria visão e a de Descartes sobre o seguinte tópico. O filósofo iluminista ganense nega que possa haver paixões da mente, uma vez que toda sensação ocorre apenas no “corpo vivo e orgânico”. Os dois autores norte-americanos atribuem a Amo uma citação importante da carta endereçada à princesa Elisabeth, na qual Descartes explica que “há duas coisas na mente humana das quais depende todo o conhecimento que podemos ter a respeito da sua natureza”. No dizer de Stephen Menn e Justin E. H. Smith, em sua referência final a Descartes, o iluminista ganense critica-onovamente, não tanto por ter uma visão errada relativamente ao facto de a mente poder ou não experimentar paixões, mas pela auto contradição sobre este assunto. Supõe-se que Amo considera que Descartes seja compelido a compartilhar a sua visão, segundo a qual a mente, na medida em que é definida como uma coisa pensante, não pode sofrer paixões, pois “pensar é uma acção da mente, não uma paixão”. Para Stephen Menn e Justin E. H. Smith, o filósofo ganense não critica Descartes, por conceber a mente como excessivamente distinta do corpo. Ao invés, critica-o pelo facto de não ser suficientemente distinta. Dizem eles que, longe de rejeitar o dualismo cartesiano, Anton Wilhelm Amo apresenta uma versão radicalizada, na medida em que, para ele, toda sensação é “sofrimento” nos seres vivos. Portanto, atacam a posição de Kwame Nkrumah em virtude de acreditar que Anton Wilhelm Amose opõe a Descartes, quando defende que a mente não pode sentir dor. Entendem que se trata de uma posição que poderia ser levantada por maioria de razão contra o próprio Anton Wilhelm Amo.

Estrutura da “disputa tio”

A pertinência das objecções dos dois norte-americanos deve ser avaliada à luz da normatividade do discurso académico no século XVIII, nas universidades alemãs. Para tal é necessário trazer à conversa o tipo de dispositivo de comunicação universitária que na tradição europeia se designa por “disputatio” cujas formas seminais já se encontravam nos livros e diálogos filosóficos dos clássicos ocidentais e outros originários de África. Ao nível académico, a “disputa tio” institucionaliza-se na Idade Média. Entre os téologos e filósofos escolásticos, a estrutura discursiva formal da “Summa Teológica”, obra de S. Tomás de Aquino (1225-1274), é um dos exemplos de excelência. O estudo da estrutura e função da “disputa tio”, da Idade Média ao Iluminismo, tem constituído um tema privilegiado com que se têm ocupado alguns investigadores europeus e norte-americanos, tais como Olga Weijers, Alex Novikoff (1913-1987)e Joseph S. Freedman.

No contexto institucional académico, “disputa tio” é o termo latino com o qual se define a dissertação, a disputa ou a polémica. Em contexto escolar, esta actividade discursiva pedagógica tem o seu equivalente no que se designa por “lectio”, isto é, lição. Foi usual até ao fim do século XVIII.  Na Alemanha, a redacção de uma “disputa tio” constituía um requisito para obtenção do grau de doutoramento. Tratava-se, portanto, de uma dissertação que, de um modo geral, podia comportar uma polémica académica. A título de exemplo são conhecidas as atitudes de Leibniz através das quais valorizava a arte das controvérsias, apesar das suas críticas contra o modelo da “disputa tio”.Ainda nesse tempo, a língua de prestígio académico era o latim e a “disputa tio” representava a codificação das regras de debates académicos, entre as quais, o desempenho dos papéis dos que defendem e argumentam, proponentes, e oponentes, as fórmulas e os conectores discursivos, os turnos no uso da palavra e o bom uso do ónus da prova. Até à década de 1720, para quem se habilitava a obter o grau terminal em Filosofia e Artes, a obrigação consistia em apresentar uma “disputa tio philosophica inauguralis”. Daí em diante, passou a ser exigida uma “disserta tio philosophica inauguralis”, tal como aconteceu comAnton Wilhelm Amo. Portanto, na avaliação da robustez filosófica e argumentativa dessa dissertação não pode ser ignorado o nível de exigência das fórmulas e dos protocolos académicos alemães da época.

Objectivos e ónus da prova

Na Alemanha, a “disserta tio philosophica inauguralis” visava a prossecução de quatro objectivos. 1) Obtenção de um grau académico; 2)Refutação ou apoio de teses e pontos de vista de colegas no contexto institucional universitário da Faculdade de Filosofia, Artes, Medicina, Direito ou Teologia; 3) Revelação de competências como proponente ou oponente em debates académicos, recorrendo a expedientes como traduções e outros exercícios de cariz retórico; 4) Exame de tópicos novos.

Ora, a leitura da tese de doutoramento de Anton Wilhelm Amo não deixa dúvidas acerca do cumprimento rigoroso do ritual académico da “disputa tio”. A sua conduta revelava igualmente o rigoroso cumprimento do princípio canónico do debate filosófico, «affirmanti (non neganti) incumbit probatio», segundo o qual o ónus da prova é obrigação do proponente.Anton Wilhelm Amo, remetendo para a fonte donde extrai o pensamento do oponente, resume a controvérsia com as teses de René Descartes, nos seguintes termos:

1) Em latim:

Status controversiae.

“Homo res materiales sentit non quoad mentem sed quoad corpus vivum et organicum. Haec dicuntur et defenduntur Contra Cartesium eiusque sententiam in Epistol. part. I. Epist. XXIX. ubi ita habet: Nam cum duo sint in anima humana, ex quibus pendet tota cognitio, quam de eius natura habere possumus, quorum unum est quod cogitet, alterum quod unita corpori possit cum illo agere et Pati”.

“Ad quae verba ita monemus et dissentimus; mentem cum corpore mediante mutua unione agere, concedimus; Sed cum corpore pati negamus.”

1) Em inglês: The state of the controversy.

“Human beings sense material things not with respect to their mind but with respect to their living and organic body. These things are said and defended against Descartes, and against his view in the Letters, Part I, Letter 29, where he says: “For as there are two things in the human soul on which all the knowledge that we are able to have of its nature depends, one of which is that it thinks, the other that, united to a body, it is able to act and to suffer together with it.”

“In reply to these words we caution and dissent as follows: we concede that the mind acts together with the body by means of a mutual union. But we deny that it suffers together with the body.”

1) Em português: O estado da controvérsia.

“Os seres humanos sentem as coisas materiais não através da sua mente, mas através do seu corpo vivo e orgânico. Enuncio estas proposições e defendo-as contra Descartes e contra sua opinião formulada nas Cartas, Parte I, Carta 29, onde ele diz: ‘Pois como há duas coisas na alma humana sobre as quais todo o conhecimento que podemos ter sua natureza depende, uma das quais é que pensa, a outra que, unida a um corpo, é capaz de agir e sofrer junto com ele’.”

“Em resposta a essas palavras, chamamos a atenção e afirmamos o nosso desacordo: admitimos que a mente actue com o corpo por meio de uma união mútua, mas negamos que sofra com o corpo.”

É ao abrigo da regra de ouro do ónus da prova que Anton Wilhelm Amo vai até às últimas consequências, ao manifestar o seu desacordo com René Descartes.

Tese negativa

Na parte final da sua dissertação, Anton Wilhelm Amo formula aquilo a que designa por “tese negativa”. Interessa prestar atenção à observação final que nela se integra.

   a)Em latim:

“Nota finalis. Finis hujus dissertationis conscribendae, contrariae fuerunt sententiae quas vide cap. II. in formatione quaestionis. Item ne confundamus ea quae corpori et menti diverso respectu, conveniunt. Quidquid enim in mera mentis operatione consistit, illud soli menti, quidquid vero sensionem, facultatemque sentiendi supponit, conceptum que involuit materialem, illud corpori omnino tribuendum est. TANTUM.”

a) Em inglês:

“Final note. The aims of writing this dissertation were the contrary opinions (for which see Chapter 2, in the formation of the question), and that we should avoid confusing those things which are appropriate to the body and the mind in different respects. For whatever consists in a mere operation of the mind is to be attributed to the mind alone, but whatever presupposes sensation and the faculty of sensing, and involves a material concept, is to be attributed entirely to the body. END.”

b) Em português:

“Nota final. Os objectivos de escrever esta dissertação foram as opiniões contrárias (para as quais ver Capítulo 2, na formação da questão), e que devemos evitar confundir as coisas que são apropriadas ao corpo ea mente em diferentes aspectos. Pois tudo o que consiste numa mera operação da mente deve ser atribuído apenas à mente, mas tudo o que pressupõe sensação e a faculdade de sentir, e envolve um conceito material, deve ser atribuído inteiramente ao corpo. FIM.”

Conclusão

A nossa proposta de conversa prosseguirá na próxima semana. Continuaremos a explorar o problema da epistemologia do desacordo com um olhar selectivo sobre a recepção da obra do filósofo ganense. Para o efeito, exercitaremos o diálogo com Stephen Menn e Justin E. H. Smith, trazendo à conversa Chris Meyns, professora da Universidade de Utrecht, que, em 2018, publicou um artigo sobre Anton Wilhelm Amo, tendo chegado à conclusão de que a perspectiva do filósofo ganense era eclética, levando-o a formular um distinto quebra-cabeças filosófico. Mas, ao mesmo tempo, considera que a sua visão sobre a mente revela particular interesse filosófico devido ao modo como a explicação da sensação restringe o que ele diz acerca da relação entre a mente e o corpo, em particular a possibilidade de cognição baseada nos sentidos. Portanto, interessará identificar os aspectos em que se analisa a justificação subjacente ao conhecimento veiculado por Anton Wilhelm Amo Afer e René Descartes, os dois sujeitos a que se reporta o desacordo.


*Doutorado em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.

[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 23/04/2023 em: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/argumentacao-de-um-filosofo-africano-do-iluminismo-alemao/

Marcos Carvalho Lopes

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