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O Caso Wittgenstein

O percurso da filosofia mostra que ela  se faz e refaz mesmo através do  suicídio teórico e da autofagia  intelectual

Gonçalo Armijos Palácios*

            Wittgenstein é um caso sui generis na história do pensamento filosófico. Entre outras razões, por ter influenciado profundamente o pensamento contemporâneo ao escrever duas obras radicalmente opostas. São elas o Tractatus Logico-Philosophicus, publicada originalmente em alemão, em 1921, e Investigações filosóficas, publicada em 1953. A primeira obra influenciou profundamente os membros do Círculo de Viena e a corrente de pensamento que surgiu no início do século XX, o chamado neopositivismo, positivismo lógico ou atomismo lógico, e que deu lugar ao que se conhece como filosofia analítica.

            O neopositivismo foi, primeiramente, um movimento antimetafísico que procurava afirmar o valor das ciências positivas — afirmar, isto é, o que se devia considerar como incontestável e positivamente científico. Um dos meios para se lograr esse objetivo foi denunciar todo tipo de discurso pseudosignificativo. Ou seja, aquele tipo de linguajar que só aparentemente fazia algum sentido e que, se bem analisado, demonstrava-se um sem-sentido. Os meios para essa empreitada eram fornecidos pelos últimos desenvolvimentos na lógica matemática, devidos, fundamentalmente, aos trabalhos do alemão Gottlob Frege e do inglês Bertrand Russell. Daí por que essa corrente de pensamento fora denominada positivismo (ou neopositivismo) lógico, por um lado, e o movimento mais amplo que ela chegou a constituir tenha sido — e ainda é — conhecido como filosofia analítica da linguagem. No centro de suas preocupações, então, está justamente ela: a linguagem.

            Como, então, conceberam os neopositivistas a filosofia e sua história? Sem exageros, e numa palavra, como, fundamentalmente, um emaranhado de disparates. Essa, então, foi a ‘leitura’ que o Círculo de Viena, o primeiro Wittgenstein e os filósofos analíticos fizeram da filosofia tradicional. A filosofia não podia mais ser concebida como o estudo do ser ou de qualquer realidade metafísica.

            Num sentido, esse grupo — heterogêneo, na verdade, pois abrigava inclusive pensadores de tendências marxistas, como Otto Neurath — foi profundamente influenciado pela filosofia kantiana. Com efeito, Kant quis fornecer um fundamento epistêmico às ciências naturais e negou a possibilidade de conhecermos essências metafísicas, de chegarmos a conhecer, noutras palavras, o que as coisas, o mundo, o ser, pudessem ser em si mesmos. A diferença está em que, em lugar de procurar tais fundamentos na própria constituição das formas que o ser humano possui para perceber e pensar (as chamadas por Kant formas a priori da sensibilidade e as categorias do entendimento), os neopositivistas acreditavam que um estudo da estrutura lógica da linguagem forneceria tais fundamentos. Num sentido importante, em Kant, a filosofia passa a ser concebida principalmente como epistemologia, como teoria do conhecimento; a partir dos neopositivistas, por outro lado, como filosofia da linguagem. Para os últimos, à filosofia cabia, quase que exclusivamente, fornecer-nos ferramentas para distinguir entre o discurso significativo, o da ciência, e o discurso pseudo-significativo, o da filosofia e da metafísica. Um dos meios para atingir esse objetivo foi fornecido pela lógica matemática. Qualquer proposição, se significativa, podia ser reduzida a uma, e somente uma, forma lógica. Caso não pudesse sê-lo, mostrava-se, não falsa, mas carente de sentido. Desse modo, as proposições da metafísica e da filosofia tradicional seriam, não falsas, mas sem-sentido, vazias de conteúdo, constituindo-se assim, filosofia e metafísica, num pseudodiscurso.

            Wittgenstein, originalmente, quis estudar com Frege, quem o remeteu a Bertrand Russell. Profundamente influenciado pelas pesquisas desses dois pensadores, Wittgenstein escreve e publica o Tractatus, em 1921, traduzido e publicado em inglês no ano seguinte. É nessa tradução inglesa que está a famosa “Introdução” do lógico e filósofo inglês.

            A Introdução de Russell é uma pequena jóia porque mostra como, mesmo entre pensadores que compartilham um determinado paradigma conceitual, chegam a se estabelecer profundas diferenças. Nela, Russell, fazendo um resumo das principais ideias do seu pupilo e amigo, diz coisas como estas:

Partindo dos princípios do simbolismo [da lógica matemática, isto é] (…) a obra mostra, em cada caso, de que modo a filosofia tradicional e as soluções tradicionais resultam da ignorância dos princípios do simbolismo e do mau uso da linguagem. Resulta disso que nada correto pode ser dito em filosofia. Toda proposição filosófica é gramática ruim, e o máximo que podemos esperar alcançar por meio da discussão filosófica é levar as pessoas a perceberem que a discussão filosófica é um erro. (!)

            A contradição que Russell enxerga na concepção de filosofia de Wittgenstein não é sem fundamento. A concepção de filosofia do primeiro Wittgenstein é, reconhecidamente, paradoxal — como veremos depois. De qualquer forma, isso mostra, sobre a filosofia, coisas surpreendentes. Como esta: a filosofia pode existir apesar da existência de filosofias suicidas e autofágicas.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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