Realizar a promessa da liberdade, da justiça e da felicidade para todos
ensaio de Severino Ngoenha

O título O Desafio Africano da Filosofia carrega uma dupla significação que merece ser elucidada. Primeiro, ele pode ser entendido como o desafio que a África coloca à filosofia — o modo como as experiências históricas, as rupturas coloniais, as resistências culturais e os projetos de libertação africanos interpelam a filosofia global, forçando-a a sair do seu eurocentrismo, da sua abstração autossuficiente, e a confrontar-se com a historicidade concreta dos povos africanos. Segundo, trata-se também do desafio de fazer filosofia a partir da África — um esforço de pensar desde o continente, com as suas feridas e esperanças, as suas línguas, espiritualidades e sistemas éticos, e propor uma filosofia que não seja mera repetição ou imitação, mas criação autónoma, crítica e comprometida com a libertação humana.
No fundo, esta dupla acepção pode ser sintetizada numa só: o verdadeiro desafio africano da filosofia é este — tornar-se ação e pensamento voltado para a liberdade e a felicidade dos povos. Não apenas dos povos africanos, mas de todos os povos. Porque, como dizia Amílcar Cabral, “lutamos pela liberdade, pelo progresso e pela felicidade dos povos”. E é essa promessa — essa ética e esse ideal — que a filosofia africana autêntica carrega.
Para compreender o alcance desse desafio, importa lembrar que a história de África não se resume à dor. Ela é, sim, marcada por um passado ferido — escravaturas sucessivas, colonizações brutais, expropriação dos corpos e das culturas —, mas o mais essencial não é o que África foi, é o que África deve ser. Essa tensão entre o passado ferido e o futuro prometido é o que o filósofo Ernst Bloch chamou de princípio esperança: uma força utópica realista que move os povos a realizar o que ainda não é, mas que deve ser.
Neste sentido, propomos pensar África em três tempos ou três dimensões históricas:
- A África do Sofrimento: marcada por séculos de opressão, começando pelas escravaturas árabes e europeias. A primeira retirou-nos a possibilidade de descendência, esvaziando a força biológica dos povos africanos. A segunda arrancou-nos as culturas, as línguas, os panteões, impondo-nos referências exógenas. Ficámos praticamente sem recursos próprios, obrigados a pensar, criar e imaginar a partir dos quadros mentais ocidentais.
- A África da Grandeza: que existiu antes da opressão. Civilizações como o Egipto negro, os impérios do Mali, do Zimbábue, os reinos do Congo e de Benim, revelaram capacidade de organização política, criação filosófica, matemática, arte, espiritualidade e diplomacia. Esta África foi ocultada ou negada pelas ideologias racistas do século XIX — como as de Gobineau ou Hegel —, que forjaram uma narrativa de inferiorização para justificar a dominação colonial. Mas pensadores como Cheikh Anta Diop, Théophile Obenga e tantos outros desconstruíram essa falsificação histórica, mostrando que África não é um vazio, mas uma matriz civilizacional esquecida.
- A África da Promessa: é o centro da nossa reflexão. Uma promessa que não se resume à libertação nacional ou à independência política, mas a um verdadeiro projeto de humanidade. África prometeu a si mesma — através das lutas de libertação, dos sonhos dos seus líderes e das resistências das suas populações — construir um mundo mais justo, mais acolhedor, mais solidário. Essa promessa foi enunciada por figuras como Toussaint Louverture e a revolução haitiana, por Marcus Garvey, W.E.B. Du Bois, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Amílcar Cabral, Kwame Nkrumah, Julius Nyerere, Eduardo Mondlane e tantos outros. Eles não lutaram apenas contra o colonialismo, mas por um novo mundo, por uma humanidade reconciliada.
Realizar essa promessa significa construir uma África onde os próprios africanos possam viver com dignidade, e onde não precisem mais emigrar e morrer nas travessias do Mediterrâneo. Significa também que África possa tornar-se um lugar de acolhimento, onde todos — vindos de onde vierem — possam viver sem medo, num espaço de hospitalidade e de comunhão. A africanidade deixa, então, de ser uma questão de raça e torna-se uma questão de idéia: uma ética da coexistência, da partilha, da fraternidade.
A Carta Africana dos Direitos dos Povos expressa esse ideal. Diferente da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que se centra no indivíduo, a carta africana entende que não pode haver liberdade plena fora da comunidade, fora da partilha, fora do reconhecimento mútuo. E é essa visão que pode fazer da África uma proposta válida ao mundo. Uma proposta contra os racismos, contra os egoísmos, contra o ultraliberalismo que concentra riqueza em poucas mãos e multiplica a violência.
Mas para isso, é preciso mais do que declarações. É necessário um espírito. Um espírito africano. Aquele do ubuntu, que reconhece que somos porque somos com os outros. Que a justiça de um só não basta — ou é injustiça. Esse espírito deve deixar de ser um lema retórico para tornar-se fundamento das políticas, das escolas, das economias e das culturas africanas. Só assim a África poderá realizar a sua promessa.
Esta promessa, repitamos, não é apenas nossa. É uma herança histórica, um chamado ético, uma dívida em relação a todos os que sonharam antes de nós. Mas é também uma responsabilidade presente: a de pensar e agir para que essa profecia se realize. Porque uma filosofia que não transforma o mundo não é filosofia. E o filósofo africano, hoje, não pode contentar-se com comentar, imitar ou criticar: ele deve engajar-se. Engajar-se na construção de uma África reconciliada com a sua grandeza, mas também aberta à sua missão no mundo: fazer emergir uma nova humanidade, liberta da dominação e da injustiça.
África é, pois, uma promessa a realizar. E o desafio africano da filosofia é esse: transformar essa promessa em realidade.
ensaio de Severino Ngoenha