Severino Ngoenha, Alcindo Nhumaio, Giverage do Amaral, Eva Trindade
Se Newton, que dizia ver longe porque montado sobre os ombros de gigantes, ou até o mais recente Einstein, dostoievskianamente, regressassem e visitassem os hodiernos laboratórios, não necessariamente da NASA ou do CERN (Organização Europeia de Investigação Nuclear), mas até do nosso misterioso Centro de Investigação da Manhiça, ficariam de certeza desfasados em relação às tecnológicas em uso: computadores, microscópios, barras magnéticas, cromatógrafos, entre outros. Da mesma maneira, se Luis Pasteur ou Marie Curie investigassem até os laboratórios uthuianos da defunta faculdade de medicina de Inhambane, precipitadamente encerrada, ficariam desnorteados.
Em contra partida, Alberto Magno, professor da Sorbonne e magister do pai da suma teológica (Tomás de Aquino) ou os sábios de Salamanca – Francisco Vitória, Suarez e Gentile – , pais do Direito Internacional Público do século XVI, estariam como peixes na água e continuariam a protestar catedraticamente as exegéticas hermenêuticas jurídicas, como faziam outrora, sem precisarem de mudar nada nos métodos pedagógicos de então e, quiçá, os seus conteúdos. Os primeiros talvez re-editassem a teodiceia com as provas da existência de Deus e, os segundos, a ius inventionis que legitimou a conquista de Colombo e de Isabel a católica, a ius adbellum, que se tornou no método de relação da Europa com os outros (evidentemente, com o fundo pretextual da ius predicanda evangelium).
A diferença entre a Naturwissenschaften e a Geisteswissenschaften em Dilthey residia no objecto e no método. Jean-francois Lyotard, na condição pós-moderna, situa a diferença na linguagem e na enunciação dos saberes. Mas a principal distinção talvez se situe no lugar da técnica nos processos da produção científica. Enquanto as disciplinas e os saberes empíricos se tornaram tecnófilas e se deixaram impregnar, e aumentar a sua perfomatividade, pelo desenvolvimento das tecnologias modernas, as ciências humanas e sociais mostram-se reticentes e, às vezes, tecnofóbas.
Dos vasos medievais às farmácias de Dubrovnik (Dalmácia) venezianos, a ciência médica, por exemplo, não parou de se sofisticar e hoje integra no seu arsenal os raios-X, as Hernioplastias, Videolaparoscopias diagnósticas, Biopsias, EEG-Mapeamento, Polissonografia, e toda a espécie de scanners corporais. Até a agronomia, a veterinária ou a botânica não prescindem hoje de tecnologias para obter resultados mais probantes e em consonância com a evolução dos tempos.
Enquanto isso, a filosofia, o direito, a sociologia e de uma maneira geral, as studia humanitates continuam apegadas aos princípios heurísticos e as epistemologias que estão na sua origem, mas também, infelizmente, às suas taras metodológicas arquetípicas, passadas e ultrapassadas.
As humanidades continuam ligadas a exegeses e a processos de aprendizagem catedratais, com o professor, qual Platão no jardim do academus, ou Tomás nos bancos da Bolonha medieval, para o gáudio do repetita iuvant dos discípulos a pregar, e aqueles limitando-se a tomar notas e a decorar para depois repetir nos exames. Filósofos e juristas continuam cartesianamente a cogitar e cicerianamente a interpretar, mesmo se não em latino latinorum, mas em português moçambicanorum, a fazer da didaké uma simples interpretatione (hermenêutica), quando não é uma mera exegese.
Não há nenhum filósofo, jurista, sociólogo que se respeite, que dentro do bolso do seu casaco Yves Saint Laurent não tenha um telemóvel, uma conta no facebook, whatsapp, linkedin; esses instrumentos não são usados na completude das suas funcionalidades, no geral com muita pouca utilidade profissional, o que aparece deslocado na sociedade onde o M-pesa, M-kesh, conta móvel são usado sem todas barracas e dumbanengues.
A diferença entre a Naturwissenschaften e a Geisteswissenschaften reside hoje, essencialmente, no uso científico da tecnologia, na adequação às metamorfoses do tempo e à evolução da ciência e da técnica como possibilidade de fazer ciência.
Porém, apesar das diferenças de graus, todos utilizamos os inauditos artefactos modernos, com maior frequência para blogs, fofocas e debates intelectualóides, para recreação, expansão do ego através de postagens fotográficas de todos os micro segundos de vida, enfim, como aliado fiel de todo tipo de procrastinação.
De repente, o coronavírus chega e obriga os universitários – do Xipamanine como os de Tóquio, de Muavire como os de Paris, de Montepuez como os de Los Angeles, de Chibuto como os de Londres – a utilizar os “brinquedos”, outrora proibidos no nosso ambiente escolar, como meios de aprendizagem, como verdadeiros utensílios pedagógicos. De repente, a criança macua, ronga e changana, crescida no campo, educada por baixo de uma árvore, viu-se catapultada a ser estudante cibernético, a ser alfabeto digital. De repente tinham que aprender como se cultivava a mandioca, dançava-se o mapiko, faziam-se os ritos de iniciação, tocava-se a timbila por meio de instrumentos produzidos, e sob vigilância não autorizada, dos homens-deuses do Silicon Valley.
É o Moçambique pré-moderno a catapultar-se para a era pós-moderna e digital, ou para a promiscuidade entre a vida à volta dos escombros da tradição e algumas horas passadas por dia, na telescola, Google classroom, webnar, Zoom, Google meet, Skype?
De repente, os nossos “brinquedos” converteram-se em objetos pedagógicos. Mas como os brinquedos são próprios de crianças, foi necessário que estas ensinassem aos seus professores como eles de facto funcionam, na esperança que os velhos dinossauros aceitassem voltar a ser crianças (a ku thlelela ka u tsongwana).
Depois do recreio, com o desconfinamento, voltaremos às coisas sérias. Mas o que são coisas sérias? O que deve ser a pedagogia no século XXI? Os monólogos da repetita iuvante as pregações dos professores?
Os estudantes revolucionários de 68 não queriam aulas em que os professores se limitassem a dizer o que eles podiam ler num dicionário ou numa enciclopédia, o que levou ao questionamento, ainda actual, da função do professor universitário, e a exigência de uma pedagogia democrática. Os “brinquedos” dos nossos meninos, mais os dicionários e as enciclopédias, que aliás incluem (para a paz da alma de Diderot) mais informações que os dinossauros, e até dão potencialmente acesso a conhecimentos mais sólidos que aqueles que os magisteres podem transmitir.
Então os estudantes de hoje podem legitimamente interrogar, como outrora os de 68, se ainda precisam de professores e até cantar: We don’t need no thought control; No dark sarcasm in the classroom; Teachers leave them kids alone; Hey, teachers, leave them kids alone (Pink Floyd: Another brick in the wall), o que deu origem à chamada pedagogia democrática.
A não ser que os professores reinventem para si uma nova missão e façam dos efeitos do corona vírus uma oportunidade para uma mudança científica e pedagógica. Os americanos dizem que a nova função do professor é ser um coach, nós diríamos um sinaleiro. O coach não joga pelos seus atletas e nem o sinaleiro conduz no lugar dos automobilistas. Eles indicam o caminho a seguir. Trata-se, por conseguinte,de enveredar por uma pedagogia que faz do estudante o centro do processo pedagógico, o que não pode coexistir com longos monólogos dos professores acerca do que eles sabem e não sabem, mas permitir que os estudantes sejam os principais protagonistas do processo de educação (ensino e aprendizagem).
Na língua de Mao Tse Tung, 危機 (Wéijī) é usado para significar crise e também oportunidade. O corona vírus, vindo da China de Xi Jim Ping, entre as maleficências existenciais e económicas, obrigou, até aos conservadores do cogito filosofia ou da iura semper interpretanda do Direito, a se metamorfosearem e se adequarem, a veritas philia temporis, tecnológico que John Dewey chamaria de pragmatismo.
A resiliência na educação, que levou à experiência do ensino virtual, não pode ser abandonada. Ela não significou só megas, plataformas, descoberta da utilidade dos artefactos que tínhamos à disposição e não usámos convenientemente, mas uma oportunidade de mudança nas relações pedagógicas entre professor e estudante e, sobretudo, na relação com a produção e transmissão do saber, com o estudante no centro, no caminho da investigação e do espírito de autodidata.
O drama deste processo é que já não podemos, doravante, prescindir desses “brinquedos” na educação, mas também não sabemos como se fabricam. Eles são uma oportunidade de melhorar o nível de conhecimento mas também de aumentar a dependência em relação aos seus donos…
Se usarmos um dos casos mais difíceis do silogismo clássico, teremos um raciocínio dijuntivo, com uma conclusão aporética:
Ou utilizamos o ensino virtual ou não o utilizamos.
Se o utilizamos ficaremos dependentes dos fabricantes e dos seus monitores
Se não os utilizarmos ficaremos marginalizados e por isso mais dependentes.
Em ambos os casos estamos condenados a uma maior dependência.
O filósofo camaronês Marcien Towa denuncia na educação tradicional africana a tara do secretismo. Os conhecimentos da farmacopeia, dos poderes tradicionais, dos conhecimentos metafísicos e os ligados à evolução ontológica do ser africano, eram passados de boca a orelha, de pessoa a pessoa, o que fazia com que a morte da pessoa conhecedora comportasse o desaparecimento do saber, condenando o velho africano de Amadou Hampâté Ba a ser uma biblioteca ambulante.
Na contraface deste secretismo que nos é tradicional, hoje o uso das tecnologias disponíveis, enquanto instrumentos pedagógicos, faz com que os conhecimentos que os professores transmitem aos estudantes sejam ouvidas por muitas pessoas, mas também lidas, dissecadas e utilizadas por muitos e em outros lugares.
No mundo de competição em que vivemos, não se pode tomar este facto de forma ligeira, pois os terrenos produtivos e férteis que comunicamos aos nosso alunos podem ver amanhã nascer uma fábrica made in EU, CHINA, ou EUA; os lugares com boa água, uma Heineken qualquer, da receita do fruto do embondeiro (malambe) um comprimido patenteado e com a proibição de o usarmos, ou então programas obscuros de novos pro savanas.Até a patente da tisana anti-Covid19 de Madagáscar, nunca será malgaxe nem africana (se de facto funcionar).
Como antes na NASA, hoje também temos moçambicanos no CERN – onde há poucos meses descobriu-se o átomo de Deus. Neste momento, está o Justino Cardoso, artista de Nampula, contratado para fazer uma banda desenhada sobre o Centro. Temos necessidade da criatividade dos artistas, mas também, e sobretudo, uma criatividade científica que nos leve a produzir um “huawei” made in mozambique.
“Se isso agrada aos trumps ainda bem.
Se não agrada, não importa.
É para amanhã que construímos as nossas casas,
Sólidas, como sabemos fazer”.
Parafraseando Langston Hughes.
Talvez seja por aqui que se passa hoje a educação libertária de Paulo Freire.