ensaio de Severino Ngoenha, Luca Bussotti, José Maria Langa, Eva Trindade, Giveraz Amaral
As nações fabricam os seus ícones e fazem-no não pela veleidade de os ter, mas por aquilo que os antropólogos chamaram de mitos fundadores, que são bases a partir das quais pessoas dispersas e diferentes por raça, crença, tribo ou religião podem identificar-se e juntos fazer comunidade; é o que os romanos chamaram Civis.
O Estado moçambicano nasceu oficialmente a 25 de Junho de 1975, mas o seu processo de gestação remonta ao chipandear do 25 de Setembro de 1964 quando, real ou supostamente, Chipande, deu o primeiro tiro; não contra um português ou branco qualquer, cuja presença talvez fizesse também dele vítima de razões que ignorava, mas contra o colonialismo, a dominação e a opressão.
Depois desse suposto primeiro tiro, hoje sarcofogado no anónimo museu de Chai, continuámos por uma década, a dar chipandeanamente tiros, que foram demonstrando, a nós próprios e ao mundo, quão determinados estávamos a ser livres. Amílcar Cabral, que às kalashnikovs preferiaas “armas da teoria”, dizia, no quadroda CONCP, que cada tiro de um combatente era uma resposta política do país e do povo. Este é o primeiro sentido que se deve dar e reconhecer ao 25 de Setembro; é a primeira legitimidade do uso das armas e do exército.
Politicamente independentes, tivemos que fazer face a ataques externos, desde Smith em Chicualacuala até às invasões Sul-africanas e os seus corolários – aquilo que uma falaciosa ciência política chama de guerra civil. Entretanto, as nossas armas e o nosso exército (de soldados anónimos pela causa da liberdade, como disse Cabral na ONU) tiveram que transformar-se em baluartes da nossa vontade de soberania e da causa de outros povos oprimidos da região: Zimbabwe e África Sul.
Infelizmente o lugar das armas no nosso processo de libertação, e depois na defesa da nossa soberania, foi tão importante que, as nossas movediças bandeiras nacionais, símbolos da nossa determinação de existência, continuam a ostentar, chipandeanamente uma arma. Porém, ao lado dela temos uma enxada e um livro, metaforicamente a significar que o traballho – a produção, a solidariedade – e o estudo, não só tinham o mesmo valor que a arma mas, à medida que estas – enxada e livro – se iam impondo e vincando, saberiam substituir aquela (a arma). Com o trabalho saberiam fazer políticas de autossustento e de solidariedade, com o estudo e a razão as políticas de diálogo, de inclusão, de consenso e de paz, onde necessariamente as armas teriam sempre menos expressão.
Exércitos com gênesis não só menos nobres, mas antónimos ao nosso – que nasceram, se formaram e se fortificaram com conquistas, colonizações, quer na antiguidade quer no período moderno –, conseguiram metamorfosear-se, pela inclusão de pessoas e pela transformação dos seus propósitos e acções.
O exército dos assírios (cerca de 1300-600 a.C.), cuja função fundamental era conquistar, mudou paulatinamente e tornou um meio de resgate e integração das classes mais populares dentro do Estado, mediante a conscrição obrigatória. Foi assim na Grécia democrática, na Roma republicana. E foi justamente em Roma que o exército começou a mudar ou, pelo menos, a complementar a sua típica função guerreira com uma outra mais pacífica, orientada à construção e manutenção de estradas, pontes e outras grandes infraestruturas civis. Napoleão, o “inventor” do exército moderno, com a sua Grande Armée, acentuou o elemento popular de participação de grandes massas de cidadãos nas empresas de conquistas que ele levou a cabo por toda a Europa, com uma evidente identificação ideológica dos militares nos ideais revolucionários que ele queria difundir. Nas duas Guerras Mundiais, todos os exércitos, inclusive os dos nazis e dos fascistas italianos, combatiam sim para conquistar o domínio de outros territórios, mas sob o impulso de um ideal, certo ou errado que ele fosse. O mesmo processo de inclusão e incorporação dos vencidos entre nós foi feito por Ngungunhana no império de Gaza.
Este breve historial permite compreender que os militares, ainda mais se de origem popular e não profissionais, sempre tiveram uma significativa identificação com a causa do seu combate, independentemente desta ser a conquista, a defesa de um território, ou a afirmação de ideais democráticos atenienses, revolucionários franceses ou moçambicanos de libertação. Isto fazia com que os exércitos fossem ordenados, respeitadores das regras (que, na antiguidade e até nos processos de luta de libertação como o nosso, podiam ser muito cruéis), mas sem fugir daquilo que era, formalmente ou não, estabelecido pelos sistemas jurídicos dos próprios tempos.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o papel do exército mudou radicalmente – pelo menos na maioria dos países – em paralelo com uma grande mudança política: o Direito tomou o lugar das armas para a resolução dos conflitos entre Estados (e no interior destes), invertendo a lógica de Clausewitz, para quem a guerra é a continuação da política com outros meios. A função do exército foi assim, em muitos casos, substituída por outras tarefas, ligadas à nova ordem mundial pacificada.
O exército contemporâneo visa manter a paz em situações de tensões ou ameaça de guerra aberta (o peace-keeping), ou ajudar em caso de calamidades naturais (como o nosso, com muitas debilidades, fez durante o Idai e o Kennedy), como muitas vezes aconteceu em países de todos os continentes. Um exército, em suma, que não só está plenamente inserido dentro de uma lógica jurídica, mas que representa o primeiro impulsionador do sistema de respeito para os Direitos Humanos e para a reconstrução de uma sociedade de paz, centrada nos valores do humanismo.
Paulatinamente, o exército de qualquer país do mundo entrou na órbita do multilateralismo e do Direito Internacional (e internacional humanitário, em caso de conflito), tendo como pressuposto básico o respeito das prerrogativas das pessoas, mesmo se inimigas (Convenção de Genebra). Não é possível dizer que o ideal kantiano de uma paz perpétua se tenha realizado, mas alguns instrumentos de tutela jurídica constituem hoje uma ferramenta que orienta, pelo menos em princípio, o comportamento colectivo das próprias forças armadas.
Desafortunadamente, a nossa história parece ter feito o sentido inverso. A enxada e as políticas de autossustento foram diminuindo – deixando espaço ao pedintismo, a ‘boladas’, a pecuniocracias e a dolarocratismos – que se traduzem hoje numa maior dependência e nos recuos das razões do chipandeado tiro em Chai. A educação (e a razão) foram substituídos por diplomas, pela marginalização daqueles poucos que tomaram a sério o que o livro simbolizava, bem como a separação entre a educação e a melhoria da vida das comunidades. Por isso, o recurso à razão – e à democracia – como solução dos nossos problemas como povo, foram sucumbindo à veleidade da força, aumentando o poder e a importância das Kalashnikov, em detrimento da enxada e do livro. Assim as Kalashnikovs (e com elas o exército), deschipandeanizaram-se: de instrumentos de libertação e defesa da soberania tornaram-se instrumentos para defender coisas ocultas e intensões estranhas (Jorge Rebelo); das mãos de nacionalistas e de jovens com causas e ideais voltados ao bem estar social, caíram nas mãos de grupelhos de bandidos. Violadores de mulheres, traficantes de drogas, senhores de guerra, de quem as nossas populações têm horror, mesmo maior de que o medo que tinham das armas dos colonialistas portugueses, contra quem atirámos o nosso primeiro tiro em Chai.
Chipandear significa fazer uma destrinça radical entre, de um lado, os militantes que se viram obrigados a servir-se de armas (Amílcar Cabral) pela causa da libertação e para lutar contra a opressão e, do outro, os militontos (Filimone Meigos) e os seus avatares: os transfugos, os chefes ambíguos, incapazes e corruptos que manipulam e sacrificam rapazes e raparigas pelas suas veleidades e ideais dolarocráticos.
Os ícones dos mitos fundacionais se fazem e desfazem. As suas estátuas, construídas com elevados custos foram mais tarde destruídas sem pena: Tito na Jugoslávia, Ceausescu na Roménia, Lénine na Rússia.
Em Cabo Delgado pode estar a morrer, juntamente com as populações locais, aquele Direito que os libertadores – outrora ícones – tinham imposto como mito fundador do novo Estado a construir, procurando ultrapassar os abusos de centenas de anos de colonialismo e de trabalho forçado imposto pelo colonialismo português.
Algo de terrível está a acontecer a Moçambique e aos moçambicanos: a barbaridade de Cabo Delgado, que não é só a fraqueza militar, mas sobretudo a perda dos ideais e valores comuns, pode estar a matar Moçambique.
ensaio de Severino Ngoenha, Luca Bussotti, José Maria Langa, Eva Trindade, Giveraz Amaral