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Os tempos africanos do mundo

ensaio de Severino Ngoenha, Eva Trindade, Giverage do Amaral e Alcindo Nhumaio

As reviravoltas que o mundo dá! Quem diria que em pleno século do pós-história, pós-política, pós-humano, o mundo viveria em tempos africanos?

“George Floyd” de Carsten Smith: https://www.flickr.com/photos/caschie/49965289452/

O conceito de tempo é um dos mais complexos a filosofar, não só para os defuntos tratados de cosmologia, da cosmo-génese de um Teilhard de Chardin, do intuicionismo de Bergson, do ser e tempo de Heidegger, dos rizomas de Deleuze mas até para a moderna Filosofia Carnapiana – ou vienense – da ciência, que encontram no avanço dos estudos da Física contemporânea e de um tratamento mais empírico e técnico da observação do cosmos, no estilo de Stephen Hawking, uma ulterior dificuldade.

Porém, algumas categorias históricas de pensamento nos permitem aferir que as comunidades humanas não se encontram só espacialmente separadas, no espaço cosmológico, mas vivem também temporalidades diferentes. É neste sentido, que falamos de pré-moderno, moderno (Sartre) e pós-moderno (Jean François Lyotard), de tempos ou sociedades pré-históricas, pós-históricas e, ultimamente, de humano e do pós-humano, ao que se podia facilmente acrescentar o pré-humano.

Mudimbe consagrou grandes esforços a trabalhar no que se chama biblioteca colonial, para desvendar e extrair os pressupostos teóricos que nortearam aquilo a que ele chamou de a invenção de África (The Invention of Africa), um conluio ideológico e pseudo-científico, em que participaram a Teologia (com invenção do vermelho e do negro como homens sem alma ou o poligenismo), a Filosofia (com o Bom Selvagem), a Antropologia (com o Pré-Logismo), o Direito (com o Código de Luis XIV e a Ius ad Bellum), para não falar da etnologia cultural do século XIX,com a invenção Levistraussiana de sociedades estagnadas.

Todo este esforço racialista (que vai do Sec. XV ao XXI) tendia, desesperadamente, a justificar e fazer coabitar os valores do cristianismo, do Humanismo, do Iluminismo, das Revoluções Liberais (holandesa, francesa, americana e inglesa), com a escravatura, a opressão e a dominação que se impôs como regra do modo de relação do Ocidente com os Outros.

No Séc. XIX, serviu para justificar o filantropismo pro-colonialista, e na segunda metade do Séc. XX, marcado pelo processo das independências africanas,  novas categorias que continuaram a reinventar a África, como os binómios ‘desenvolvimento-subdesenvolvimento’, ‘primeiro mundo-terceiro mundo’, que subentendiam ajuda, tutela, e ingerência naquilo que Sabeli e Suzana Jorge chamaram o subdesenvolvimento programado, e levou pensadores lúcidos, como Samir Amir, a ver no antípoda da globalização, isto é, na desconexão, a única saída para o continente africano.

Neste processo contínuo de criação e invenção da África, os conceitos que hoje melhor definem a vida e a existência africanas, coincidem paradoxalmente, com as consequências provocadas, nos tempos do mundo, pelo Coronavírus: confinamento, distanciamento social, hospitais inospitaleiros – sem médicos, nem máquinas, nem medicamentos suficientes –, desemprego galopante, crise económica, miséria, incerteza, morte.

A escravatura, génese do processo global, parecia ser um movimento de aproximação, com seus navios negreiros a transportar, ‘gratuitamente’, negros dos confins de África para o centro do mundo: Europa e Américas. Mas estes, na verdade, nunca atravessaram os confins da Casa Grande nem chegaram aos da casa do Uncle Tom (Josiah Henson), ficaram sempre confinados na senzala de Gilberto Freyre. Volvidos cinco séculos da sua viagem gratuita, eles continuam a construir e limpar grandes cidades que não habitam (São Paulo, Detroit, Nova Iorque) e (sobre)vivem confinados nos dormitórios da ‘Jamaica´ em Lisboa, de S. Denis em Paris, nas Favelas do Brasil, em Harlem ou no Bronx nos EUA.

As visitas ao Museu da Mafalala, o Director Ivan Laranjeira fá-las começar na Avenida Marien Ngouabi, qual fronteira entre dois mundos: de um lado a livre circulação do Lourenço Marques e do outro, o confinamento da Mafalala, que se prolonga pelos bairros indígenas, os nossos Sowetos e as nossas townships – Chamanculo, bairro indígena, Xipamanine…

O distanciamento social está presente até na arquitetura das casas coloniais e pós coloniais, com o quarto e a casa de banho do moleque suficientemente perto para estar “à mão” para servir, mas longe o suficiente para não contaminar, com o vírus da sua negritude, o bem-estar dos senhores. Como o pianista negro de Langston Hugues ou do filme Green Book, separado por uma cortina para que a sua música pudesse deliciar e propiciar os passos de dança sem que a sua cara negra perturbasse o ambiente da festa.

Hoje, nós, novos brancos, mesmo com a cor negra, amarela ou encarnada, quando sentamos nos restaurantes da Julius Nyerere, temos a proteção dos guardas e até da polícia, para garantirmos a distância social para com os novos pretos –  meninos da rua, pedintes ou vendedores ambulantes.

Os nossos hospitais (se podemos chamá-los de hospitais) lembram-nos que, se tivéssemos que nascer em maternidades, mais de 90% dos moçambicanos estaria ainda no ventre. Seríamos um país de mulheres de ventres inchados, à espera da parteira ou de  fístulas obstétricas. Se tivéssemos que esperar a homologação da OMS para tomar os nossos chambalacatis, cacanas ou os remédios da panelinha de barro, morreríamos sem ter o nulla osta das indústrias farmacêuticas.

Os pobres coitados da Europa, que só têm um hospital em cada quarteirão, um Médico por 200 Habitantes e aspirinas, medicamentos de marca e genéricos reembolsados pelas caixas de segurança social, estão desesperadamente negros e africanos de sofrimento…

Desemprego galopante? Pobreza? Miséria?:  nós moçambicanos fizemos disso o nosso modus vivendi, a nossa especialidade, até com eufemismo chamamos aos mais de 90%  de moçambicanos desesperados – que correm as ruas para encontrar um pedaço de pão (expostos ao dilema existencial ‘ou morte por corona vírus ou morte de fome’) –  de trabalhadores informais.

A nossa única certeza é a incerteza. O que existe de mais incerto, que depender da chuva e da seca, das cheias, do Idai, do Keneth, das calamidades, do resto dos peixes das traineiras dos chineses,  dos frangos envenenados da Polónia?

Era deveras curioso, ver as pessoas que em São Paulo, Londres, Paris, Barcelona, Roma, se sentiam humilhadas porque tinham que ficar na bicha para receber a esmola (óbolo).

E nós, países transformados em mão estendida, com governantes transformados em especialistas da esmola, usando um vocabulário, politicamente correcto, mas que esconde mal o seu significado: parceiros de cooperação, doadores,  que na verdade são os senhores que determinam as nossas vidas. Ficamos quase com mais esperança de salvação  quando chega a troika ou a missão da FMI do que durante a Páscoa.

Mas como somos resilientes, até aprendemos a viver com a morte: aos sábados e aos domingos os cemitérios são o principal ponto de encontro; até as cerimónias nas famílias, por ocasião de morte, tornaram-se ágapes, com cerveja, vinho, tontonto. É que a morte, tornou-se tão familiar, tão próxima, tão presente que como o pequeno Príncipe, tivemos que a abastecer, acarinhar, refrear,  torná-la amiga. Ela pode vir no nosso maior vírus, a fome, na malária, no SIDA, nos produtos, comprados nos supermercados, fora de prazo, na falta de medicamentos, ou em medicamentos fora de validade, em balas ideológicas, religiosas, ou no petróleo; mas ela, a morte, está sempre à espreita, é mais companheira de viagem que a vida.

Um Professor de Harvard e perito da OMC, perguntava-se como chamar este período do Coronavirus, uma vez que os ‘pós’ definem uma época em função do que ela já não é.  Na verdade, não é preciso procurar longe, tocamos globalmente com os dedos o que são “Os Tempos Africanos”, que não se adequam nem com as categorias do Pré Moderno, do Moderno ou do Pós Moderno.

Bem vindo mundo global, aos tempos africanos. Bem vindos ao confinamento, à distância social, a hospitais inospitaleiros, ao desemprego, à miséria, à fome, à incerteza e à morte sempre à espreita; bem vindos ao mundo que vocês  criaram para nós.

A experiência dantesca do inferno dos tempos africanos produzirá mudanças existênciais ou prevalecerá a razão cínica e a necropolítica denunciados por Peter Sloterdijk e por Achile Mbembe?

Oxalá, que esta experiência dolorosa da africanização do mundo, da vossa africanização, de se sentirem pretos, cafres, negros, blacks, vós leve a uma reflexão, e que esta seja pós globalização neoliberal.

Enfim, o problema é nosso, continuaremos a pensar e acreditar que estes gajos têm alguma coisa de humano, que as nossas dores e lágrimas podem ainda suscitar compaixão e sentimentos humanos. Diógenes e Nietzsche continuam nos mercados –hoje financeiros –  em vão à procura do homem. Mas como podem –  caro Nietzsche –  super homens e com impulsos de vontade potência ter sentimentos humanos?

O juramento pós COVID-19 será como o que foi depois da segunda guerra mundial: «nunca mais isso». Mas só na Europa. E entre nós? O ‘corona vírus’ das guerras da Argélia, do Vietnam, dos massacres de Madascagar e de Cabo Delgado hoje, não farão parte do compromisso pós corona. Continuaremos a construir estátuas para De Gaulles, mesmo se deixou os companheiros africanos na glória da libertação e a hossanar Churchills, não obstante o milhão de mortos “estratégicos” quando da separação da Índia e do Paquistão.

Temos que nos preparar para transitar dos aplausos aos negros médicos cubanos, em vivas a Le Pen, a Bolsanaro, a Trump e a Salvini.

A polícia de Mineápolis já deu o tom, asfixiando o negro e a negralha, o vírus  que impede a felicidade do mundo.

Os juros das dívidas e das guerras  continuarão a asfixiar as economias e as vidas domadas (danadas), no chão, sem respirar; para a ‘salvação’ da humanidade.

Marcos Carvalho Lopes

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