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O HUMANI(TARI)SMO SÁDICO

Ensaio de Severino Ngoenha, José Maria Langa, Eva Trindade, Giverage Amaral, Carlos Carvalho

Moçambique, ultrapassou o Burquina Faso, como lugar onde é derramado o humanitarismo e a caridade do mundo. Com as pragas egípcias que não cessam de se abater sobre nós – Idais, Kenneths, dívidas ocultas, incompetências, Nhongos, Mocímboas da Praia – , não podia ser diferente…

Nós, como país e povo, devemos reconhecer e agradecer a caridade – óbolo – que  nos é feita pelo mundo benfeitor. Mas, ao mesmo tempo, o anti mauss-enismo deste dom (definitivamente interesseiro e não gratuito)  levanta perplexidades e questionamentos – morais e políticos – legítimos quanto ao seu significado. Trata-se de um humanitarismo naïf ou de uma mascara hipócrita da violência? De uma forma sequenciada de boa consciência barata ou de uma compaixão masoquista? De um desprezo condescendente ou de um pretexto para propaganda mediática? De uma manipulação de massas ou, pior,  de um trampolim de uma vontade (apenas dissimulada) de dominação?

 É que mais do que o dom gratuito – na esteira  de Marcel Mauss e do movimento que toma o seu nome (movimento anti- utilitarista nas ciências sociais) – no coração mesmo da caridade de que somos beneficiários, parecem se camuflar ratoeiras que dissimulam um pretexto e uma caução a favor de uma ordem mundial injusta; um humanitarismo algumas vezes oportunista e outras até de perversão política, que suscita e provoca desastres humanos para justificar intervenções subordinadas a interesses económicos de controlo e até de dominação.

Colocar a caridade no lugar da justiça, da solidariedade ou da organização social do mundo, levanta questionamentos éticos que são de natureza diferente dos questionamentos ligados a interesses individuais ou colectivos, de cálculo, de actos desinteressados, de actos de partilha  ou de dom sem retorno.

Para que a ajuda seja humanitária,  não é suficiente que se preste atenção caritativa à situação do outro – pobre ou pontualmente necessitado: é necessário reconhecer, na relação com esse  alter, algo de mais profundo, de consubstancial, da qual a  palavra latina caritas ressoa e remanda ao conceito grego de Agapè:benevolência, simpatia, empatia.  

A filosofia grega negligenciou o seu uso e as suas implicações;  Platão preferia o elam do eros ascensional  e Aristóteles a serena equidade da  philia. O seu significado encontra-se na tradição do Talmud. Na língua  hebraica a palavra para a caridade é tsedaka, vocábulo que significa rectidão (droiture), virtude e equidade que partilha com a palavra justiça –tsedek – a  mesma raiz. A etimologia hebraica indica a ideia de um dever moral e legal, que não se resume a um simples ímpeto de compaixão.

 O Deuteronómio recorda ao judeu que ele foi escravo no Egipto, que a aliança protege os indigentes e sanciona os mestres cruéis; ele afirma o direito do pobre e, em  consequência, o dever do rico de lhe prestar assistência. Sem colocar em causa a questão da propriedade privada, o Talmud faz referência à noção do bem comum (hoje mundializado), na qual a caridade é impossível sem a justiça.

Na tradição grega e latina da Bíblia  ( tradução dos setenta   e vulgata), nos textos evangélicos e dos padres da Igreja- patrística) esses nomes vão designar  o principio da relação de Deus com os Homens, dos Homens para com Deus e dos Homens entre eles.  Misericórdia, compaixão e doçura do agapé, são  os múltiplos rostos do amor que compõem a figura paradoxal da Caridade. Daí que a tentação gnóstica, de separar a caridade da justiça, apareça como um perjúrio. Também a religião islâmica dá especial relevo à caridade: com efeito, ela é um dever imprescindível para o muçulmano, tão importante que ficou como o 3º pilar dos 5 que constituem a base a ser cumprida por todo o crente.

A literatura apostólica é dominada pela necessidade capital de lutar contra a  heresia e a pobreza aparece  como apostasia, porque viola os desígnios de Deus. Por isso, existe  uma desconfiança profunda, nas pregações cristãs, ao corruptor amor do dinheiro. Para Policarpo “o amor do dinheiro é a fonte de todos os males”; Clemente de Roma defende que, “trabalhemos com todas as nossas forças na realização da justiça, verdadeiro nome da caridade”. Estas palavras resumem toda a doutrina ulterior: caridade é antes de mais e sobretudo justiça.

No período da mutação de valores que foi o iluminismo, a questão dos fundamentos da relação social encontra-se no centro dos debates filosóficos. Seguindo o cartesiano, que consiste em pôr em causa todas ideias recebidas  para deduzir  os verdadeiros princípios, os filósofos do iluminismo  (século XVIII)  rejeitam os fundamentos judaico-cristãos e procuram um fundamento “mais conforme à natureza do homem”. A palavra caridade, demasiado emprenhada de uma conotação cristã, não podia ser retida e foi rebaptizada com a figura laica de benfeitor (por não terem lido a Suma Teológica de Tomás de Aquino), considerada mais em conformidade com a lei natural. Rousseau,  no Emílio, faz dizer ao seu vigário  savoyard (i.e. natural da Saboia), que procura as máximas que devem guiar a sua conduta: “eu encontro-as no fundo do meu coração, escritas pela natureza com caracteres imutáveis”. Montesquieu, por sua vez, declara que “o criador deu-nos leis imutáveis da natureza – antes mesmo do estabelecimento das  sociedades – que nenhuma autoridade pode nem mudá-las nem aboli-las”. 

Porém os livros e pensamentos menos propalados – mas não menos difusos, sobretudo entre a aristocracia – do iluminismo eram, entre outras, as posições (existenciais) libertinas  do Marques de Sade, homem que desafia os valores dos homens e de Deus.  Sade reduz a relação ao amor. Mas para o escândalo – muitas vezes só aparente e hipócrita – dos bem pensantes, o amor sádico resume-se na posse, no uso, no desfrutar do alter, que se torna uma vítima; e a dor, o sofrimento, a agonia  desta, pode até ser uma fonte ulterior de prazer para o predador.

 Apesar dos aparentes anátemas que se lançam a Sade, é sobre o espectro  do utilitarismo que se desfralda o século XIX, e a sodomização da África se torna sistémica com a filantropia a aparecer como a justificação deste novo regime moral. Não uma sodomização de 120 dias – o título de um dos livros de  Sade era Nos 120 Dias de Sodoma – mas uma que começara com a escravatura, mudou a forma no século XIX, com o colonialismo, e perpetua-se hoje com o  humanitarismo imperialista.

A filantropia  caritativa da ius  predicanda evangelium chega a  África de navio – outrora negreiros e agora coloniais – onde viajam juntos figuras, aparentemente antónimas (missionários, militares e mercantes), mas animados por um desígnio filosófico comum que Hegel, nas suas Lições da História da Filosofia invoca – a  colonização – do interior da construção dessa história. A mesma relação da história da filosofia e a colonização é estabelecida por Husserl na sua conferência de Viena de 1935, onde encoraja a  Europa a assumir a plena consciência de si, do seu telos filosófico: colonizar o mundo, porque sem a colonização europeia, o mundo seria, nas palavras de Emmanuel Levinas, sem orientação.

Hoje, o que provoca suspeita sobre o humanitarismo, é que os caminhos que trilha, como outrora o filantropismo-colonial, tem o mesmo kronos e é concomitante  aos tempos da rapina (destruição da floresta, exploração sem limite de recursos, destruição de tecidos sociais e mortes);  a industria humanitária e a industria de rapina (rapinadores e caridosos) provêm dos mesmos lugares e as suas acções beneficiam, in primis,  os seus próprios países.  As chamadas diplomacias económicas,  que suscitam e sustentam o apoio humanitário são feitas, muitas vezes, pelas mesmas pessoas e agências que facilitam o processo de corrupção, como foram as dívidas ocultas;  as companhias assim instaladas com o apoio de regimes democráticos, por onde passam, para além das rapinas provocam conflitos de escalas variadas, que vão de pequenas guerrinhas – que eles chamam étnicas – a autenticas deportações como é o caso de Cabo Delgado.  Se fizermos um mapeamento das guerras no mundo, como faz a Universidade Upsaala, constatamos que a África (que não produz armas) é o continente com maior focos de conflitos, e que esses conflitos dão-se, em prevalência, onde há recursos: gás, petróleo, diamantes, columbita e tantalita ou coltan. Constataremos, sobretudo, que os mesmos países e as mesmas  companhias estão em todos os teatros de conflitos, o que legitima a suspeita  de uma intrínseca cumplicidade entre o humanitarismo – sádico, de ajuda e perdão cíclicos de dívidas que eles mesmos provocam – de que nos prodigalizam e a desumanização dos conflitos com que somos sodomizados.

Os governos democráticos, aparentemente ciosos pelo respeito dos Direitos  Humanos e boas práticas económicas dos nossos governos, facilitam, com a sua diplomacia, a instalação das suas companhias/instituições/ONGs  cujas práticas em termos de  desrespeito pelo ambiente, pela integridade dos territórios e das comunidades, da vida das populações, não podem de maneira nenhuma não conhecer. Porém, como na boa prática da caridade – onde  a mão esquerda não deve saber o que faz a direita – eles apoiam, ao mesmo  tempo, o orçamento do estado,  seduzem jovens com  bolsas de estudos, suscitam organizações da sociedade civil, incentivam a corrupção, armam guerrilhas e terroristas, tudo isso direccionado a romper com a paz social.

O oximoro  de tudo isto é que aqueles que nos acodem são os mesmos que ateiam  o fogo que nos queima,  e a sua ajuda é um maquiavelismo que o florentino nunca ousou imaginar.  É uma forma de colonialismo pós colonial, de modo a nos terem sob as suas botas. Então o humanitarismo resulta uma  estratégia de dominação, um business humanitário, imoral; isso se verifica nas dívidas ocultas, nas guerras dos chongos , e agora em Cabo Delgado….

Enfim, por que metamorfoses redutoras a história fez sucumbir a caridade! depois de ter sido agapé, de ter sido sinónimo de esmola, de ter representado o colonialismo (filantropia) ela invoca hoje a cumplicidade de uma ordem injusta no funcionamento do sistema mundo.

Por isso, a figura retórica que melhor ilustra o amor humanitário é a Filosofia da Alcova (título de outro dos livros do Marquês de Sade), aulas de libertinagem económica, política e social numa orgia entremeada de discussões filosóficas sobre os direitos humanos e a democracia.

Nos 120 Dias de Sodoma, quatro nobres e quatro prostitutas se enclausuraram para praticar actos abomináveis e indizíveis, que poderiam levá-los à forca. Mas não os praticaram entre si: o objecto das suas afeições eram 36 jovens ( hoje a  África e a pele negra), torturados dia a dia, até serem sacrificados e descartados no final.   

Sadismo – permitir-se a tudo sobre as suas vítimas, até a pedofilia  e  práticas caprofílicas – definido pela moral bem pensante como aberração horrível de deboche, de sistema monstruoso e anti-social que revolta a natureza, e é aquilo com que o sadismo humanitarista nos sodomiza  no quotidiano. Talvez não seja um acaso que o termo sadismo só se tornou famoso na caneta do psiquiatra alemão Richard Freiherr von Krafft-Ebing, num catálogo de psicopatias sexuais, e hoje também sociais, que atinge as relações no espaço-mundo. Ao amor sodomizante, em que nos fazem sucumbir os sadistas humanitários, corresponde  um amor ágape que é o que vivem trabalhadores em estaleiros navais franceses, ou certos funcionários em bancos suíços e russos, ou participantes em tribunais americanos, ingleses e sul africanos.  As nossas mães e filhos que morrem, vítimas de tiros dos Nhongos – de ontem e de hoje – dos petro-jihadistas em  Mocímboa da Praia, contrapõe-se a fraternitas dos trabalhadores que se afadigam, coitados, a produzir as armas que nos matam; ao sofrimento dos deportados de Cabo Delgado contra-rima a felicidade dos exploradores milionários de gás, os traficantes de droga e diamantes, os militares e as oligarquias corruptas.

Salvador Dali e André Masson inspiraram-se nas imagens sadianas  de crueldade para compor as suas obras. Há quem as veja (as imagens sadianas) como percursoras do foco da sexualidade que permeia toda a psicanálise de Sigmund Freud. Mais surpreendentemente, a filósofa Simone de Beauvoir via, no que ela considerava a filosofia radical de liberdade de Sade, o percursor do existencialismo.

Oxalá que a nossa determinação em existir, com dignidade, livres de todas as formas de caridade e óbolos disfarçados, seja ainda mais radical do que o sadismo humanitário.

Severino Ngoenha, José Maria Langa, Eva Trindade, Giverage Amaral, Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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