Severino Ngoenha e Carlos Carvalho
Em pleno desvelamento macabro da diabolicidade humana do processo sul africano, Desmond Tutu aconselhou ao jornalista e filósofo guineense Filomeno Lopes, a não perder tempo a ouvir todo o decálogo das perversidades humanas, mas a ocupar-se na busca de soluções, o que se traduz – hermeneuticamente – no dístico que ornamentava a casa do prelado em Cape Town: How to turn human wrongs into human rights?
A fenomenologia dos horrores da BO – assim como as eventuais revelações de Chang nos EUA – não vão nos revelar nada de substancialmente novo; “quem mais” e “quantos mais” não mudará a essência da questão: o desmoronamento do Estado em acto e, com ele, os ideais de independência, unidade nacional e integridade territorial que, desde a sua génese, ele tinha simbolizado e suposto incarnar.
À força de ouvir quotidianamente o que, doravante, se tornou a telenovela macabra da nossa sacanização por Rosários, Nhanguemelos e outros mosacanistas, corremos o risco de sombrear na raiva da vingança e da lei taliónica de “olho por olho” e assim ficarmos cegos ao desafio fundamental com que estamos confrontados: desconstruir – no sentido derridiano – o chivalismo promíscuo e mafioso que capturou (Mosca) o Estado, como tem feito com coragem e abnegação a sociedade civil. Porém, o desafio mais importante e, ao mesmo mais difícil, é recolocar Moçambique nos carris dos valores (políticos e morais) da sua génese: um país unido, solidário e com um direito atento, sobretudo, aos mais fracos.
A lotaria da administração da justiça sorteou o juiz Efigénio Baptista para arbitrar o dilema existencial e a encruzilhada histórica de Moçambique: uma viragem radical ou o eclipse de um projecto de Moçambique unido e integro, objectivo (telos) sonhado e construído com sacrifício e sangue de muitos heróis. Se a escolha do juiz resultou do acaso, do destino ou de uma predestinação, essa conotação e interpretação dependerá dos credos filosófico-teológicos de cada um, pois o histórico de ideias, apesar de disputas doutrinais milenárias e de milhares de páginas escritas sobre o assunto, não nos legou uma posição unânime e definitiva. Contudo, por uma questão de metáfora e da coincidência linguística de significado, o nome do meritíssimo escolhido se presta a uma retórica reveladora.
Aqueles românticos, que apesar dos pesares, aprenderam a amar este país e o seu povo, até fazerem dele o seu Édipo, esperam – com um inconsciente freudiano – que o juiz Efigénio seja o Baptista que, mesmo que seja só com a presunção, ou água benta, do também promíscuo judiciário, ele escolha e possa com o julgamento em curso, baptizar o advento de uma nova era: não de uma justica efémera da vingança de Talião, não da lavagem das mãos poncio-pilatiana sobre a sorte e sofrimento de milhões de cristos inocentes de que nosso país é constituído, mas uma justiça católica – no sentido latino de universalis e fraternitas – valores que constituíram, sempre, os motes e pilares de todas as revoluções liberais ou socialistas e também a pedra angular de todas as nações que se constroem e resistem às metamorfoses dos tempos e das circunstâncias.
Terá o direito penal a capacidade e a pujança de assumir a tarefa titânica da reconstrução, que se tornou uma urgência dramática para a nossa sobrevivência como país e povo? Paul Ricoeur considera o direito penal um escândalo intelectual, na medida em que acrescenta um sofrimento ao sofrimento, o sofrimento da pena ao sofrimento do mal feito a uma outra pessoa ou a uma comunidade; Karl Jaspers, como resposta aos crimes da segunda guerra mundial, postulava a necessidade de uma justica que não se limitasse a estabelecer os factos, mas comportasse uma dimensão catártica, e Desmond Tutu – contra os crimes do apartheid e o perigo da dissolução violenta da comunidade – sublinhava a necessidade de uma justiça reconstituinte.
A nossa BO não pode jogar o papel de restauração nem de catarses, não pelo escândalo intelectual de acrescentar sofrimento aos rosários e nhangumeles que estão em proeminência mas porque o próprio processo penal em acto é, na verdade, um palco do Game of Thrones onde elefantes, sem o mínimo cuidado pelo “capim” do pobre-povo, se entregam a actividades nefastas e niilistas. Senão, como explicar as exorbitantes quantias de dinheiro do miserável erário público que se continuam a gastar com advogados, em nome do falso patriótico repatriamento de Chang, sem compromisso com a verdade?
O Game of Thrones – adaptado para a televisão por David R.R. Martin, e inspirado na história dos Stuarts da Inglaterra, até podia ter sido retirado da história recente de Moçambique, com o mesmo resultado: alianças, traições, complôs (…) numa postura maquiavélica da política, onde o príncipe – título do livro mais conhecido do filósofo Florentino – e não a polis (Aristoteles), ou a República (Platão) são o centro da política, com todas as baixezas da luta pela conquista do trono que isso implica (compra de votos e subalternidades no interior dos próprios partidos, manipulação das pertenças étnicas e regionais, filiações e direitos herdados) e com monarcas a se fazerem rodear por ricos cortesãos – chivais, nhangumelos, rosários, mas também ministros, juízes e deputados cujas posições dependem, não tanto das competências mas da subalternização, favores e proximidade com o Napoleão do dia. Basta ver o Guiness dos homens (e famílias) mais ricos de Moçambique, publicado pela revista Forbes, para constatar a relação intrínseca entre a potestade e a riqueza.
As alianças, traições, complôs, sobre o fundo de um maquiavelismo de busca nietzschiana de poder, demonstra que o julgamento da BO é uma guerra de tronos, entre aqueles que o perderam, aqueles temem as consequências de perdê-lo, e aqueles que se vêem predestinados a conquistá-lo. Como diz o Zarathustra de Nietzsche “ olhe só esses supérfluos! Eles adquirem riqueza e ficam mais pobres. Eles querem poder e, em primeiro lugar, a alavanca do poder, muito dinheiro – esses desamparados! Veja-os subir, esses macacos ágeis! Eles sobem uns em cima dos outros e assim se empurram pela lama e pelo abismo! Todos querem se aproximar do trono: é loucura deles – como se a felicidade estivesse no trono! Frequentemente, a lama está no trono – e frequentemente o trono também está na lama.
Numa recente poesia, muito sentida, Jorge Rebelo pergunta-se “Onde nos perdemos?” O direito penal em acto na BO, pode punir desvios invocando as leis e as normas (da anormalidade ) em vigor. Mas é esse anormal (imbuído no próprio judiciário) feito norma que é preciso radicalmente modificar.
Depois da segunda guerra mundial o tribunal de Nuremberga não pôde julgar e condenar todos os que simpatizaram e/ou se empatizaram com o nacional socialismo. Julgaram-se alguns como exemplo, mas o essencial foi a criação de alicerces para um novo começo . O mesmo aconteceu com o Japão, com a França de Vichi ou o pós-fascismo na Itália de Mussolini, ou o regime de Franco na Espanha ou o de Salazar em Portugal. Quando o que está em causa são os fundamentos axiológicos do viver comum, o direito é um instrumento útil, mas, esse braço do estado do direito, precisa de um acto político forte, que ele sozinho não pode protagonizar. Cada dia que passa damo-nos conta da multiplicidade daqueles que foram coniventes e estiveram implicados – por cumplicidade, negligência, superficialidade, cobardia, indiferença, trafulhices – nas dívidas ocultas. Não temos como julgar todos, nem BOs suficientes para albergá-los a todos. Aliás, a normalização das boladas ultrapassou, de longe, a nomenclatura política e tornou-se no modus vivendi de parte da sociedade moçambicana. Como Nuremberga decretou os crimes contra a humanidade, a BO pode declarar os crimes contra a moçambicanidade mas, como aquela, não tem como punir judicialmente a transmutação de valores que se operou.
O desafio existencial com que estamos confrontados é a coragem política de retirar o poder usurpado pelo principado (como instituição de poder) e restituí-lo à polis, à civis através de uma reforma, em profundidade, das instituições, da distribuição democrática de poderes e da redução drástica das prerrogativas presidenciais. Não é uma questão de pessoas mas o imperativo ético-político de voltar à génese e ao espírito do direito positivo; a lei-mito fundadora de Roma é o resultado da confluência e acordo entre pessoas de proveniência, crenças e raças (é a Concórdia romana de Lívio, mas está já presente no primeiro livro da história de Roma, ab urbe condita); a ideia platónica da justiça (república) como harmonia da alma (pessoa) com a cidade, e submetida ao espírito da lei (Montesquieu) da divisão de poderes como optimização da democracia.
A primeira República Moçambicana teve como primeira preocupação a Justiça e a redistribuição de riqueza pelo povo e isso foi completamente esquecido no desenrolar dos acontecimentos a partir da 2ª Constituição que regulava a 2ª República. Hoje está cristalino que importa re-escrever a axiologia e a Constituição com alguns dos ideais da Utopia que nos guiou. Com a participação de todas as pessoas, temos de discutir com o Povo as grandes linhas do que deve ser o nosso viver em comum, como deve ser a organização do nosso Estado, a repartição e limites dos três poderes (Justiça, Legisladores e Executivo). Mas devemos ter cuidado com o espírito principesco que habita muita da nossa classe política e não só, porque não podemos permitir a contaminação da actual podridão que dia a dia nos suga e ofende.
Severino Ngoenha, Carlos Carvalho