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O jovem Rorty: ad hominem e metafilosofia pragmática

O artigo “Recent Metaphilosophy” [Metafilosofia recente], publicado em 1961, é o complemento esotérico de “O filósofo como especialista” (que comentamos aqui). Nele, Rorty emprega o estilo contido da filosofia analítica, enumerando seus passos argumentativos e propondo uma interrogação metafilosófica que dialoga criticamente com os livros Philosophical Systems, de Everett W. Hall (1960), e Philosophy and argument, de Henry W. Johnstone (1959).

A perspectiva de “metafilosofia sintática” proposta por Hall justifica a virada linguística e a aproximação da linguagem ordinária: pressupõe um compromisso categorial de cada corrente filosófica com um conjunto de termos, mas defende uma forma de realismo do senso comum e a necessidade de “purificação” da linguagem ordinária.

Para Rorty, este anseio de pureza e a adesão a uma forma de verdade por correspondência repõem a reivindicação de algum tipo de neutralidade, passo que pode ser revisado com ajuda da perspectiva de “metafilosofia pragmática” proposta por Johnstone, para quem teorias filosóficas se distinguem das teorias científicas justamente por não poderem ser testadas por correspondência (RORTY, 1961b, p. 311). Johnstone não vê o filosofar como uma “transação entre o homem e uma realidade não humana diante da qual ele verifica suas afirmações, mas essencial e primordialmente como uma transação entre um ou mais seres humanos” (RORTY, 1961b, p. 311).[1] Deste modo, os problemas filosóficos são “criados pela divergência entre homens” (IDEM, p. 312)[2] e os debates filosóficos são pontuados por argumentos que inevitavelmente devem ser ad hominen.

Assim como não podemos decidir sobre a validade de um argumento filosófico apelando para alguma forma de evidência exterior, as críticas quanto à ausência de consistência interna também se mostram inúteis diante dos compromissos que cada um assume e encarna. É inevitável que a única alternativa seja apelar para o ad hominem em relação à coerência pragmática em relação “[à] intenção original daquele que propôs o argumento” (RORTY, 1961b, p.314).

Para Johnstone, o filósofo constrói sua individualidade (selfhood) na medida em que consegue crescimento pessoal, o tipo de “transcendência” que advém da demonstração de consistência em recorrentes argumentações ad hominem dirigidas contra ele (ALVES, 2013). Por isso fala de uma ética da controvérsia que não se difere totalmente da ética geral, pois quando alguém procura a si mesmo através do debate filosófico está também efetivamente expondo-se. Nisto estaria a diferença do filósofo para o sofista, este último não possui responsabilidade intelectual em relação àquilo que diz e, por isso, pode mudar seus pressupostos para conseguir seu único objetivo: reduzir o opositor ao silêncio (ALVES, 2013; RORTY, 1961b, p. 315).

Desta forma, na descrição de Johnstone, o filósofo na busca de autotranscendência deve manter-se constantemente atento à maldição que o leva a reivindicar um tipo de autoridade não humana. Rorty, em seu artigo, cita a passagem onde Johnstone sintetiza este dilema:

As posições filosóficas têm origem na tentativa de evitar um destino claramente percebido. Para o filósofo, como para Édipo, este destino tem a forma do envolvimento em uma situação desumana; o filósofo procura evitar a arrogância, o desleixo, a mesquinhez, o cinismo ou a dúvida que o faria correr o risco de desumanizar esse pensamento. Mas, assim como para o Édipo, a tentativa do filósofo de evitar o seu destino serve apenas para levá-lo a aprofundar-se em suas labutas… Por entre as ramificações de seu compromisso, pode haver males piores do que a arrogância ou o desleixo que o fizeram refugiar-se neste compromisso… Os momentos de descoberta filosófica são as ocasiões em que o filósofo se engaja em genuína controvérsia. Ele não pode evitar a controvérsia mais do que Édipo poderia evitar interrogar aqueles que detinham as pistas fatais… Mesmo que seu trabalho esteja destinado a dar frutos desumanos, ele deve executá-lo como um homem. Afigura-se que a fim de ser humano, tem de sempre passar de um ato inumano para outro… O paradigma de argumentos fatais para posições filosóficas, então, é a acusação de que o filósofo adotou um modo de desumanidade na sua própria tentativa de evitar a desumanidade. Os argumentos que têm-se caracterizado como válidos durante todo este livro são aquelas que se enquadram nesta paradigma. (JOHNSTONE apud RORTY, 1961b, p. 315)[3]

A partir da metafilosofia de Johnstone podemos nos aproximar da linguagem ordinária sem a tentação de purificá-la, compreendendo que vocabulários trazem consigo formas de vida e comportamento intersubjetivo. Rorty rejeita tanto em Hall quanto em Johnstone a ideia de que o campo filosófico deva ser tomado como uma área diferente do restante da cultura. Pergunta então se “existe alguma particular similaridade entre a autodescoberta de Édipo e, digamos, a refutação que Waffle faz de Dimble quanto ao sem sentido da sensibilia?”. Para o filósofo norte-americano a situação do filósofo não é mais próxima de Édipo do que a do cientista ou do poeta (RORTY, 1961b, p. 317): é o processo intersubjetivo de debate que produz o conhecimento. Os debates metafilosóficos não deveriam ocorrer separados de análises mais amplas, que envolvam, por exemplo, os procedimentos científicos e controvérsias políticas, sob o risco de tornarem-se abstrações sem força, formalizações facilmente ignoradas.[4]

Neste texto, Rorty afirma que a filosofia analítica fez evidente a importância da metafilosofia. Porém, os analíticos costumam ser “reducionistas” ao tratar de seus opositores, não aplicando os mesmos critérios a si mesmos. A proposta de Rorty é seguir o impulso de uma “metafilosofia pragmática” e pluralista que tem origem em Dewey, mas se apresenta em Johnstone e também em Richard McKeon. Ao invés do hábito escolástico de apontar o que seriam “erros” e “disparates” das escolas rivais, os filósofos analíticos deveriam parar de se vangloriar por obter “vitórias fáceis ao invocar distinções ad libitum”, que são “um mau presságio para o futuro”. Para fugir deste costume, “é tão importante ignorar distinções irrelevantes quanto formular as que seriam relevantes”, já que “controvérsias filosóficas frutíferas somente são possíveis quando ambos os lados têm a paciência para investigar os critérios de relevância de seus oponentes” (RORTY, 1961b, p. 318).[5]

P.S: este texto é um trecho adaptado de minha tese de doutorado Uma defesa da poesia: poesia e autocriação na filosofia de Richard Rorty (UFRJ, 2013)


[1] “in Johnstone’s eyes, philosophizing is not a transaction between a man and a non-human reality against which he checks himself, but essentially and primarily a trans action between two or more human beings”.

[2] “for Johnstone what is “given to” philosophy are problems, and problems are created by men disagreeing.”

[3] Positions are taken in philosophy in order to avoid a clearly perceived fate. For the philosopher, as for Oedipus, this fate takes the form of involvement in an inhuman situation; the philosopher seeks to avoid the arrogance, slovenliness, pettiness, cynicism, or doubt that threatens to dehumanize this thought. But just as for Oedipus, the philosopher’s attempt to avoid his fate serves only to drive him deeper into its toils… For among the ramifications of his commitment, there may well be far worse evils than the arrogance or slovenliness that made him take refuge in this commitment… The moments of philosophical discovery are the occasions in which the philosopher engages in genuine controversy. He cannot avoid controversy any more than Oedipus could avoid interrogating those who held the fatal clues… Even if his work is destined to bear inhuman fruit, he must perform it like a man. It would appear that in order to be human, one must always be passing from one inhuman act to another… The paradigm of arguments fatal to philosophical positions, then, is the charge that the philosopher has adopted a mode of inhumanity in his very attempt to avoid in humanity. The arguments which I have characterized as valid through out this book are those that fall under this paradigm.

[4] Curiosamente, Rorty cita o livro de Michel Polanyi Personal Knowledge como exemplo de análise metafilosófica mais ampla, autor que permanece marginal, muitas vezes sem o reconhecimento como um “legítimo” filósofo.

[5] This lapse into the scho lastic habit of winning easy victories by invoking distinctions ad libitum bodes ill for the future. It is quite as important to ignore irrelevant distinctions as to formulate relevant ones, and fruitful philosophical controversy is possible only when both sides have the patience to investigate their opponents’ criteria of relevance.

Marcos Carvalho Lopes

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