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O melhor dos mundos possível

Este texto repete argumentos desenvolvidos no livro de Severino Ngoenha Resistir a Abadon (Paulinas Editora, 2017)


Fome, dívidas ocultas,  calamidades naturais, Covid-19, guerras; em que raio de mundo vivemos?

Para Gottfried Leibniz (1646-1716), filósofo da harmonia e da justiça universais “a perfeição suprema de Deus, ao produzir o universo, escolheu o melhor plano possível, onde existe a maior variedade e a maior ordem (…). o resultado é o mundo actual, o mais perfeito possível”.

A ficção mais célebre do melhor dos mundos situa-se na sua teodiceia. O filósofo alemão constrói a sua narrativa a partir de um diálogo sobre o livre arbítrio do humanista Lorenzo Valla. O oráculo de Apolo revela a Sextos que ele vai violar Lucrécia e causar a queda da monarquia dos tarquines em Roma. Diante de Sextos que lamenta a injustiça da sorte que lhe é reservada, Apolo responde que a sua presciência não é responsável pelas acções dele e que estas derivam da sua própria natureza de pecador. Porém, não responsabiliza Júpiter de criar tal natureza. Valla não vai mais longe e conclui que essa decisão é uma imagem do mistério incompreensível da providência divina.

 Isto não satisfaz Leibniz, que pretende esclarecer a razão dos decretos divinos. É por isso que acrescenta na sua própria fábula: o piedoso Teodoro surpreende-se que Júpiter não tenha podido dar a Sexto uma outra vontade e Júpiter envia-lhe a sua filha Pallas (Minerva). Se no pequeno mito, Apollo significa a previsão divina e Júpiter a omnipotência, Minerva é o entendimento iluminado que poderia dar razão da criação mostrando o palácio dos destinados.

Este palácio estranho representa não só o que acontece, mas também tudo o que é possível. Nele, os mundos são ordenados segundo as diferentes situações que contêm. O palácio é construído como uma pirâmide de possíveis, que se seguem até ao infinito. A pirâmide parece inspirar-se na torre de babel com escadas e uma biblioteca, e contém os apartamentos que são os mundos e espaço aberto compreendendo a vida de um dos habitantes.

Em cada apartamento, Teodoro pode ver, num abrir e fechar de olhos, a vida de um Sexto possível, um Sexto que não peca, um Sexto sábio. Mas o registro dos destinados de cada quarto está numa lista dos indivíduos. Basta que Teodoro dê um estalido de dedos sobre uma destas linhas  para poder ir até aos detalhes fechados dentro de cada vida prevista. Ele põe assim o dedo não no próprio Sexto, mas num outro indivíduo que lhe corresponde, sobre o fio de toda uma série.

À medida que Teodoro sobe a pirâmide, chega a mundos cada vez mais perfeitos e no último apartamento, o do mundo actual, Sexto comete o crime previsto desde toda a eternidade, mas dependendo simplesmente da sua natureza. Neste mundo excelso, está acumulado o máximo de diversidade e de perfeição.

Se voltarmos a percorrer a pirâmide, não na companhia do metafísico–teólogo-cosmólogo e professor Pangloss (do sarcasmo de Voltaire contra o melhor dos mundos), mas guiados pela epopeia macabra que vai da Ematum à guerra de Cabo Delgado, o resultado é toda uma outra fábula.

As personagens são: franceses, que rejubilam pelas encomendas de barcos; banqueiros e especuladores suíços que emprestam dinheiro para a transacção; armadores holandeses que transportam; libaneses e moçambicanos que adulteram as contas; população moçambicana que tem de pagar as dívidas; embarcações de pesca que apodrecem nos portos; lanchas usáveis por militares  e a população que por aqueles é maltratada quando não metralhada. Estas categorias exibem-se piramidalmente alinhadas de baixo (maior imperfeição) para cima (mais perfeição).

No andar de baixo, rés-do-chão, uma turba de anónimos, analfabetos, esfomeados, indigentes, sem domicílio fixo porque obrigados quotidianamente a fugir de  ataques terroristas, primeiro em  Muxúngue e Santugira, agora também em Mocímboa da Praia, Palma…

No andar imediatamente acima, surgem os militares, alguns fardados, outros esfarrapados, crianças com armas, jovens mobilizados à força pelos serviços de recrutamento obrigatório, sequestrados, drogados e obrigados a usar metralhadoras, fanatizados pelas ideologias nacionalistas, pecuniocráticas e petro-jihadistas. Aquela massa de miúdos, mobilizados à força para defender razões e causas que desconhecem, pode ser legal e legitimamente esfolada, segundo as diferentes convenções de Genebra, porque fardados com roupas que lhes foram impostas e preferiam nunca ter usado.

No segundo andar vem a plebe, a massa de trabalhadores que há-de pagar as ingentes dívidas externas, malta preciosa contra a qual a sociobiologia não pode fazer nada; crianças que nascem para pagar os empréstimos, homens e mulheres que vivem nas zonas suburbanas das cidades, labutam horas a fio no formal e no informal, carregam sacos, fazem estradas por onde não podem passar, casas nas quais não viverão, produzem comida que lhes é interdita. Por outro lado, alimentam-se de farinha, peixe seco, de cerveja, de “tentação” e “boss”, de produtos geneticamente modificados e géneros fora de prazo. Mas são uma matula preciosa, porque sem eles o reembolso dos juros da dívida não seria garantido.

   No andar superior, os pecuniocratas: aqueles para quem o taco é o totem diante do qual se ajoelham; contraem dívidas ilícitas; fazem negociatas, especulam sempre na condição de terem uma percentagem, uma comissão (mesmo que seja a preço do sofrimento, da fome, da miséria, da indigência e até da morte dos demais). Não sentem escrúpulos em deslocar as populações e se beneficiar com o dinheiro dos reassentamentos, em construir portagens nos centros urbanos, em aumentar os preços dos produtos de base, em vender o património do Estado, em esvaziar os cofres dos bancos. São altas personalidades cujo valor, único, é a pecúnia.

Mais acima, os traficantes: de armas, de produtos tóxicos, de órgãos humanos, de drogas, de produtos de contrabando, de vacinas; de prostitutas, crianças sequestradas, emigrantes sem segurança e escravos (…). Eles são simplesmente a marinha mercante; lockianos e ferrenhos defensores das liberdades políticas e económicas, mas orgulhosos proprietários dos novos  navios negreiros.

Seguem-se noutro andar, os financiadores. Não perdem tempo com negócios inúteis: a agricultura, o trabalho, a construção, os hospitais, as escolas – isso não é rentável. Financiam prioritariamente o que está a dar e emprestam dinheiro a preço de usura. Pagam as guerras, os massacres e expulsão de populações. Os seus parceiros em Moçambique já abriram Atm’s em quase todos os distritos, não para favorecerem o trabalho, a produção, a agricultura, a economia, mas por temerem que se lhes escapem as quinhentas dos pobres.

No vértice, os vencedores – segunda guerra mundial –, os membros do conselho de segurança das Nações Unidas, ao mesmo tempo garantes da paz e maiores fabricantes de armas. Eles são os únicos detentores legítimos (Max Weber) de armas de destruição maciça, através das quais consolidam as suas posições hegemónicas, e zelam para que a ordem piramidal – a melhor possível – não sofra alterações. Fazem-no, politicamente, com vetos, economicamente com sanções e militarmente com intervenções e guerras “justas”.

No romance Ziraili na Zirani, do escritor tanzaniano William Mkufya, leitor de Leibniz[1], a personagem do professor Fikirini Zirani, ateu convicto, morre numa batalha e vai para o inferno habitar num lugar reservado aos espíritos dos filósofos materialistas que negaram a existência do céu e do inferno. Lá se encontram o fundador do partido social-democrata alemão, August Bebel, o socialista Ferdinad Lassalle, o tio Hu (Ho Chi Minh), Mao Tse Tung, Bolshevin, o revolucionário russo Nicolai Bukharin, o anarquista russo Pyotr Kropotkin, a activista dos direitos da mulher Clara Zetkin…

Após algum tempo de ambientação, o professor Zirani consegue fazer uma escapada ao paraíso. Para sua grande surpresa, o trono está vazio: Deus permanecia, luteranamente, abscôndito. A única presença é a dos anjos e do diabo em grande confraternização.

Como diria o nosso Guebas, o professor Zirani é mesmo um distraído. Não ouviu dizer que, desde as “Meditações Metafísicas” de Descartes, Deus foi mandado de férias (deus ex machina); não ouviu que em Sevilha (Fedor Dostoievski, dos irmãos Karamazov) Ele foi convidado a desaparecer e intimado a não voltar sob pena de ser crucificado pela segunda vez? Não soube que em Nietzsche, do Assim falava Zaratustra, a ameaça tinha sido executada?

Mas então quem ocupa o trono que outrora fora de Deus? Marte, Ares ou Belzebu? O apocalipse propõe a figura de Abadom, o anjo do abismo, exterminador que capitaneia a armada de cavalos terrificantes e aparelhados para a guerra. Sobre as cabeças deles, coroas semelhantes ao ouro; têm rostos de homens, cabelos de mulheres, dentes de leões, equipados com couraças de ferro; os muitos cavalos, quando correm para o combate, fazem ranger as ferragens. Do cavalo, ele subiu aos aviões, aos submarinos; da espada, passou aos carros armados, aos mísseis, aos drones. Doravante utiliza técnicas inauditas: bombas humanas nas praças públicas para as quais as defesas tradicionais são impotentes.

Abadom, monstro do apocalipse, aparece sempre com cara humana. Ele seduz pela beleza: cabelos de mulher, fardas militares, hinos nacionais, fanfarras e paradas grandiosas, a elegância das marchas do exército vermelho, a ordem e a disciplina dos marines, o garbo dos soldados de Napoleão, os aviões militares cruzando os céus com cores de libelinhas e borboletas, os trajes requintados, da tecnologia de ponta.

Abadom seduz com o seu poder, a sua grandeza e a sua glória; as epopeias dos seus grandes generais: o alemão Bismark, o francês Napoleão Bonaparte, o americano Schwartzkopf. Seduz com a sua riqueza (coroa de ouro/dólares/euros). Mas a sua verdadeira linguagem é o terror, os massacres, os homicídios, a guerra. Leibniz não desdenha este idioma, até propôs a Luís XIV  a invasão e ocupação do Egipto Otomano o que “mudará o curso da história, fará a felicidade da humanidade, estenderá o império do salvador desde o Egipto até às nações mais recuadas do globo, não somente até ao Japão (…) Mas (…) até às paragens mais desconhecidas da Austrália. Assim, a idade de ouro renascerá para o cristianismo e veremos a igreja primitiva ressuscitar florescente. Enfim, o sol da justiça dissipará, pela clareza, nuvens e incertezas e veremos uma moral perfeita, e a imagem da vida celeste, passar da imaginação dos filósofos para a realidade da vida humana”.

Infelizmente Maquiavel tinha razão, no mundo e nas cidades, os capitães vêm antes dos filósofos; Leibniz, “conselheiro do príncipe”, antes do Leibniz filósofo; a guerra, antes da paz.

Filho da mãe só DJ (Preto Show).

Severino Ngoenha e Carlos Carvalho


Marcos Carvalho Lopes

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