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O Perigo da desigualdade

ensaio de Severino Ngoenha, Thomas Kesserling, Carlos Carvalho

Uma dos canais de televisão nacional (não vamos dizer qual para não provocar o efeito Ronaldo sobre as ações da CocaCola) no seu telejornal principal, apresentou como prova da desobediência popular ao decreto presidencial contra a COVID, quatro imagens loquazes, não tanto pela desobediência mas pela dramática discrepância – que emerge – dos nossos estádios de vida e desenvolvimento e mais ainda do fosso entre o nível social e técnico dos moçambicanos em relação aos novos alienos, extra terrestres em ascensão. 

De Quelimane a reportagem mostra um taxista de bicicleta que transportava, numa subida íngreme, uma mulher e seus dois filhos; da mais técnica Nampula,  um moto taxista transportando uma família inteira; no mais romântico Maputo, uma matula apinhada  num my love sem love. Nos antípodas, o mesmo telejornal mostra, na parte internacional, a  imagem futurística do milionário Benson, proprietário da Virgin, em viagem turística no espaço.

A aporia de não poder respeitar um decreto, apesar de necessário, porque assente num dilema existencial: respeitar a lei e ficar a trabalhar a partir de casa;  como trabalhador informal e sem uma verdadeira casa, isso equivale  a uma escolha impossível: morrer – provavelmente – amanhã por COVID ou – certamente – hoje de fome. O decreto, como toda a lei, se quer igual para todos. Porém, perante a fome e as possibilidades de prevenção, “alguns são mais iguais do que outros”. Esta desigualdade é endémica na nossa sociedade, mas torna-se monstruosa quando comparada com o  nosso pedalar  desobediente – na luta pela sobrevivência – aos voos   do táxi-turismo espacial. Não é só a violência da fome contra o esbanjamento e a  desmedida, mas também a diferença entre a nossa técnica rudimentar do tchova (a bicicleta foi patenteada por outros) contra a cibernética e engenharia espacial. Mesmo mundo, mesma humanidade?

As primeiras viagens no espaço (Gagarin) e à Lua (Armstrong) serviram para reafirmar a unidade do espaço terra – hoje confirmada pelos impactos globais das mudanças climáticas – e pelos estudos da genética e do ADN, que desconfessam as históricas doutrinas racialistas (poligenismo, eugenismo, sociobiologia…) e reafirmam, de maneira categórica, a natureza comum do género humano. Como então explicar as abissais diferenças técnicas e sociais que vivemos entre países e no interior deles?

A revista Forbs habituou-nos a quantificá-las, mostrando quanto muitos poucos detêm a maior  parte das  riquezas mundiais. Os economistas (Thomas Piketty) nos ensinam os mecanismos histórico-sociais  do eterno retorno (Vico/ Nietzsche) da acumulação  de grandes fortunas na mãos de pequenos grupos.

Na segunda parte do Traité sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, Rousseau defendeu que o declínio da moral  começou com a criação da propriedade privada. “O primeiro homem que se apoderou de pedaço de terra e teve a ousadia  de dizer esta terra é minha e que encontrou pessoas ingénuas que aceitaram essa usurpação como um facto, fundou o que é hoje, a sociedade civil. Quanto vício, quanta guerra, quanto assassinato, miséria e horror poderiam  ter sido evitados se alguém tivesse arrancado as estacas.” Para  John Locke as desigualdade têm a sua origem na invenção do dinheiro, que  se tornou totem com Lévy  Strauss e filosófico com Simmel

Trabalhos científicos mais recentes, dão-nos informações mais precisas sobre a evolução  do homem  desde o Cro-Magnon, e como este foi acompanhado por metamorfoses biológicas, mas também sociais, que levaram à divisão do trabalho, à diferenciação social, à invenção das técnicas e ao surgimento das desigualdades. Jared Diamond mostrou a ligação intrínseca entre a cooperação do número de participantes e a rapidez do desenvolvimento cultural, técnico e económico.

O domínio da técnica levou também à diferenciação entre países e sociedades e até a relações de dominação dos melhores apetrechados sobre os outros. É o que explica, em parte, a escravatura e o colonialismo, cuja preponderância terminou, não por alguma evolução moral mas porque a descoberta da máquina a vapor em 1712  tornou, gradualmente, a escravatura anti económica. O que aconteceria se a actual crise ecológica forçasse ao abandono das energias fósseis sem, ainda, fontes alternativas?

O colonialismo foi uma opressão benéfica para os colonizadores (permitiu o que a teoria marxista chama de acumulação primitiva do capital), mas desestruturou as sociedades africanas e provocou um ulterior atraso que levou à discrepância extrema de hoje: bicicletas (sublimadas numa magnífica exposição de Gemusse) versus naves espaciais. O gap técnico, o mais extremo que a historia conheceu, é assustador;  tanto mais que as mudanças climáticas fazem renascer teorias maltusianas, confortadas pela progressão da inteligência artificial e das manipulações do ADN do pós humano. Isso mostra quanto é íngreme a estrada em que temos que  pedalar e esgalhar, para minimizar as discrepâncias crescentes…

Entre bicicletas-motas-my loves e as aeronaves espaciais, há os Mercedes, Rolls Royce, e os vôos charter para casamentos principescos – nos dubais do mundo – dos nossos carapaus de corrida, cuja riqueza não se deve a nenhum saber e só é explicáveis por uma associação das teses de Rousseau e Locke: é a privatização de bens comuns que está na génese de uma classe de desiguais (alienígenas e extra terrestres locais) em relação ao  todo do povo.

O dogma meritocrático do neoliberalismo se reduz, nos arrivistas e novos ricos, ao ADN; ter nascido em famílias detentoras de ingentes somas de capital;  ser filho de um pai que lutou pela igualdade (o que parece autorizar e dar direito à exploração dos demais); capacidade de se imiscuir nos círculos do poder e dentro dele manobrar para privatizar e transformar bens públicos em posses individuais. Mas isso só é possível graças a uma política cúmplice e, por isso, responsável das desigualdades e da violência que elas provocam.

 A extensão da desigualdade tem um grande impacto no bem-estar de todas as pessoas (Richard Wilkinson e Kate Pickett). A violência das favelas é proporcional às discrepâncias sociais do Brasil; o insucesso do Ubuntu económico na África do Sul não é estrangeiro aos recentes tumultos nem às xenofobias recorrentes. As diferenças económicas e sociais extremas matam os pobres de fome mas também obrigam os ricos a refugiar-se nas prisões voluntárias dos condomínios. À medida que a violência da distribuição desigual se acentua, surgem novas, inéditas e mais sofisticadas formas de protestos: mendicidade, roubos, prostituição, assaltos, sequestros, ataques armados.

Em Cabo Delgado, para além das trafulhices, ingerências e incompetências militares e estratégicas, a violência armada não pode ser completamente dissociada  da corrupção, como também a ineficiência da nossa capacidade de resposta não é alheia à corrupção pecuniacracia.

Se por um milagre (anti-ecológico) de qualquer santo, a Total voltar e se, por um milagre ainda maior (que só pode ser feito pelo próprio Cristo), obtivermos os almejados dividendos sabemos – para além de discussões barrocas sobre quem deve gerir os absurdos ‘fundos soberanos’  (que soam já como artimanhas  de apropriação ilícita) – que temos de utilizá-los para garantir a sobrevivência, a saúde e educação dos moçambicanos de hoje, para que os de amanhã possam existir e ter uma perspectiva de vida menos pior que  a dos moçambicanos de hoje

A Légion Étrangère dos ruandeses ou os patrões para quem eles trabalham, pode pacificar a região – no estilo  e linguagem de Mouzinho de Albuquerque – e por fim ao terror dos jiadistas; mas a violência que resulta da economia de predação e desigualdade, exige uma metanoia.  As políticas de desigualdade são um mau cálculo social, elas acabam por afectar (mesmo se de maneiras diferentes) uns e outros, ricos e pobres. As diferenças entre sociedades apaziguadas – que fazem a inveja do mundo – não se situam na moral individual (suíços, noruegueses e suecos íntegros e honestos e sul africanos, brasileiros e moçambicanos larápios e desonestos) mas na moral social. A particularidade dos países emergentes não está no seu QI (malaios, indianos ou coreanos não têm um coeficiente de inteligência superior ao dos tanzanianos, angolanos ou moçambicanos) mas na rigorosa e audaz aposta na educação. Países desenvolvidos e emergentes (até o nosso Ruanda salvador)  têm em comum  rigor, transparência, respeito pelo direito e pelas instituições.

Por isso, a questão não é voltar ao homem selvagem e pré-social de Rousseau mas realizar o que está no ADN de toda a política verdadeira, da esquerda moderada à direita não reacionária: liberdade e igualdade. As revoluções – francesa, haitiana, russa, chinesa, de 68 – foram lutas contra as desigualdades; as esquerdas, todas – marxista, leninista, trotskista, maoísta – foram tentativas políticas de lutar contra as desigualdades; as filosofias da miséria (Proudhon e os socialistas utópicos Saint Simon, Jean Giresse, Robert Owen) como as misérias da filosofia (Marx e os  seus muitos acólitos e deturpadores) foram um esforço teórico para reverter a função social do pensamento; as nossas lutas pelas independências basearam-se no direito à igualdade.  

Não nos enganemos, mesmo se o nosso tempo, o tempo do neoliberalismo e do indivíduo mónada, sacrifica,  contra a história  da “longue durée” (F.Braudel), a igualdade no altar da meritocracia, a paz social tem um preço e um nome,  chama-se justiça e solidariedade e, como escrevia Cabral, para nós  a democracia não é um direito mas um dever.

ensaio de Severino Ngoenha, Thomas Kesserling, Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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