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O post-mortem da Teologia Reconciliatória de Tutu

Por José P. Castiano & Jorge Ferrão

A narrativa teológica de Desmond Tutu teve profundas mudanças nos anos 70, como resultado da sua confrontação com as temáticas levantadas pela African Theology e Black Theology. Para Tutu, havia uma posição não negociável: Teologia, como qualquer outra área do conhecimento humano, tinha que ser contextualizada. Dito de forma mais simpática, ela deveria tomar em conta as condições concretas e contextuais em que viviam os seus crentes. Nenhuma teologia deveria  ter a prerrogativa de ser “universal”. A Teologia Negra tinha a ver com um interesse existencial do negro, pelo facto de este estar diariamente entre a vida e a morte: se Deus era todo-poderoso, por que seria que Ele permitia o sofrimento, somente, de uma parte do seu rebanho, os negros?

Tutu era defensor incansável de que a luta pela libertação cultural da Igreja deveria incluir a formação dos missionários porque, segundo ele, em África, antes de alguém tornar-se pastor ou padre, tinha, antes, que se converter ao cristianismo ocidental e à sua cultura. Por outra, antes de missionarem, tinham que negar a sua africanidade, incluindo a mudança de nomes tradicionais para, assim,  obterem nomes verdadeiramente cristãos no acto do baptismo ou da ordenação.

Este princípio da dependência da mensagem da teologia para os seus crentes estava tão claro para Tutu que ele achava que, como exemplo, enquanto nos anos 70, na Europa, se discutia nas universidades se «Deus existe?» ou mesmo em alguma literatura se proclama a «Morte de Deus!», “a nossa população — escrevia Tutu — não duvida da existência de Deus e ela sabe perfeitamente bem o que quer dizer Deus. Ela (a população) não precisa ser convencida que Deus é bom e omnipotente”[1]. O exercício linguístico de saber se Deus existe ou não poderia ser interessante para o Ocidente, mas tornava-se “irrelevante” para os povos africanos, acrescentava.

De facto, aspectos da vida pessoal de Tutu, conjugados com o contexto, influenciaram para que a sua Teologia sofresse profundas transformações. Desde 1972, Tutu assumiu, em Londres, a posição de director da divisão africana do Theological Educational Fund. O seu trabalho era emitir pareceres ao Fundo Teológico sobre estudantes de teologia provenientes da África Subsaariana e para as instituições religiosas onde poderiam estudar. Num momento em que muitos países africanos completavam uma década de independência, as lutas armadas de libertação nas colónias portuguesas estavam praticamente na sua fase final e, no seu país de origem, o sistema do apartheid se encontrava ao rubro, Tutu na sua qualidade de promotor dos recursos humanos para a Igreja Anglicana, viajava por vários países africanos, tais como Zaire, a Nigéria, os Camarões, o Gana, a Serra Leoa, Quénia, Uganda, etc. Em três anos, visita mais de 20 países subsaarianos tipificados por uma diversidade de condições políticas. Isto permite-lhe obter uma perspectiva das narrativas religiosas e, sobretudo, contrapô-las com as respectivas condições políticas em cada caso. Nesses países já proliferavam, nos seminários católicos, fortes discussões sobre as condições e possibilidades de uma teologia africana.

No Zaire, os debates teológicos eram, vivamente, influenciados pelo dilema entre a fidelidade à política do Coronel Joseph-Desiré Mobutu da authenticité, e a fidelidade às doutrinas teológicas europeias. Na sua qualidade de “presidente”, Mobutu tinha obrigado às cerca de 80 missões e igrejas protestantes existentes no Zaire a juntarem-se numa só Igreja Nacional, a chamada Eglise du Christ au Zaire. A par disso, concedeu um reconhecimento oficial a poucas igrejas católicas e à Igreja de Jesus Cristo na Terra fundada pelo profeta Simon Kimbangu, esta última baseada na “doutrina indígena”, ou seja, praticando curas tradicionais. Uma das “orientações” da authenticité era a africanização da liturgia e das lideranças das igrejas.

Na Nigéria, Tutu confronta-se com a já crónica divisão entre católicos e muçulmanos, sendo estes maioritariamente do Norte do país. Tutu visita o país ainda antes da recuperação da guerra de Biafra. Pela primeira vez, ele se confronta com a necessidade de fundamentar um diálogo teológico entre as duas grandes religiões, daí a sua proposta para a criação de um Centro de Estudos para o Islão e para o Cristianismo na Universidade de Ibadan.

As viagens de Tutu incluíram, extensivamente, a África Austral em países como Tanzânia e Moçambique, para além de Zâmbia, Rodésia (hoje Zimbabwe), Suazilândia e Malawi. Sobre Moçambique, Tutu declarava que a política da assimilação era bem mais discriminatória que o apartheid dado que enquanto neste havia “clareza” das fronteiras entre negros e brancos, nas condições da assimilação, os negros que só poderiam ser dirigentes do seu povo, assim que estivessem a ser “seduzidos” para aceitarem as condições de ser branco ou assimilados. Values and personhood lies in whiteness. What blasphemy! — escreveria Tutu no seu relatório sobre Moçambique.

Nestas viagens, Tutu entra em contacto com a nata da academia e da teologia africanas do seu tempo, particularmente, nas universidades de Makherere (Uganda), Fourah Bay (Serra Leoa) e de Nairobi (Quénia). Nesta última tem encontros com Odera Oruka e com Ali Mazrui. Os encontros fortificaram suas convicções a favor da Teologia da Libertação latino-americana, com cujos líderes e teóricos Tutu mantinha contactos.

Um outro factor importante que, mais tarde, “formatou” as ideias de reconciliação de Tutu foram os contactos permanentes que ajudou a desenvolver e manter entre os negros da África do Sul e dos Estados Unidos. Alabama era o destino dos negros sul-africanos, desde o século XIX, em viagens facilitadas pela fixação dos missionários, primeiro da American Board, na zona da África Austral. Líderes do ANC, como John Langalibalele Dube, A. B. Xuma, Isaka ka Seme e outros receberam a sua educação na Tuskegee Institute em Alabama, uma instituição fundada por Booker Washington.

Assim, os debates sobre a libertação dos escravos, protagonizados principalmente por Washington e Du Bois, em torno do Black Souls, influenciaram-se mutuamente com os debates em torno da Teologia Negra e Teologia Africana, ao qual Tutu, mais tarde se mete no meio, principalmente após as viagens aos EUA, em 1973, por ocasião duma conferência sobre a Black Theology. Nesta conferência, participara John Mbiti que, na altura, ataca a African Theology como sendo a versão africanizada da Black Theology. Tratava-se, segundo Mbiti, de uma teologia praticada pelos negros americanos e não tinha legitimidade para qualquer adaptação ao contexto africano porque, na sua base, estariam o ódio, a amargura e o sofrimento dos escravos.

Por isso, ela expressava-se nos termos de um Deus negro, Igreja negra, libertação negra e tudo o mais “negro” possível. Este tipo de teologia baseia-se, acrescentaria Mbiti, na consciência sobre a cor negra. E, na óptica de Mbiti, nas escrituras sagradas, não se encontra nada sobre esta cor. Este tipo de Teologia poderia adaptar-se muito bem para o caso da África do Sul, onde os negros teriam o mesmo grau de “amargura” e “ódio” contra o branco, por causa do sistema do apartheid, mas não seria este o caso para o resto da África.

Naturalmente que Tutu defendeu a possibilidade da adopção da Teologia Negra, não tanto pela expressão black, senão, com base nos escritos do seu compatriota Steve Biko, como forma de mostrar o engajamento no repúdio à arrogância da Teologia Ocidental que foi produzida, principalmente com Paulo e suas epístolas, com a pretensão de ser universal. Segundo Alain Badiou, os esforços de Paulo consubstanciaram-se em evitar que o cristianismo se reduzisse a ser apenas uma seita judaica, por via da Ressurreição (Cfr. Badiou: São Paulo: A Fundação do Universalismo. Ed. VS, 2018).

Tutu viria a articular a sua teoria da reconciliação baseada nesta nova problematização da Teologia Negra Africana, algo assemelhada à política de reconciliação de inspiração de Mandela. O fim do apartheid na África do Sul, com a eleição de Nelson Mandela como o primeiro presidente negro, marca o triunfo, na sua plenitude religiosa e política, do espírito da reconciliação.

Desmond Tutu, bispo anglicano e Prémio Nobel da Paz, preside uma Comissão da Verdade e Reconciliação cujo princípio, uma justiça restaurativa, nos oferece exemplo, pelo menos por enquanto, da corporificação do espírito de reconciliação num contexto em que se devia evitar, a todo custo, o temido banho de sangue pós-apartheid.

Tutu declara que há um outro tipo de justiça, cujo propósito central não pode ser punitivo; deve ser sim restaurativo, dedicado à “cura” das feridas. Ela tem como o centro a humanidade do causador das mais vis atrocidades. Este tipo de justiça acredita, diz-nos Tutu, na bondade essencial de todas as criaturas de Deus e que, na base dela, existe, em todos, a possibilidade latente de se tornarem bons e justos. Portanto, os perpetradores das injustiças devem ser reabilitados e não, em primeira linha, punidos ou ostracizados pela comunidade.

A comunidade tem, aos olhos da justiça restaurativa, o dever de reintegrar os que cometeram estas atrocidades. Tutu chega a declarar que uma ofensa (racial neste caso) deve ser considerada como um “distúrbio do equilíbrio social”. Por isso, o processo da restauração deve permitir que o ofensor e a vítima se reconciliem e a paz seja restabelecida. Era preciso buscar um ponto reconciliatório dentro das mesmas narrativas religiosas, ou seja, do interior da chamada espiritualidade originária africana (ubuntu). Algo que fosse tão engenhoso a ponto de evitar o que lavaria à uma derrota de todos: a guerra ou um “banho de sangue”, como se dizia. Neste caso, o espírito reconciliatório corporiza-se em forma de “princípio” que todos deveriam seguir, de um “consenso” ao qual supostamente todos deveriam aderir; enfim, um “compromisso” que todos deveriam acreditar: amnistia individual sim (não a uma amnistia geral), mas a troco da verdade, ou seja amnesty for truth, na verdade de “toda verdade”.  E afirmaria Tutu, em 1998, perante Kerry Kennedy, activista americano para os Direitos Humanos:

“Nós não deveríamos temer confrontar-nos com as pessoas naquilo que eles fizeram de mal. Perdoar não significa tornares-te num tapete (na porta) para as pessoas limparem as suas botas [sujas]. O nosso Deus é muito indulgente.” (Cfr. Tutu, D. 2011: God is not a Christian, p.38).

A justiça restaurativa que parecia a única alternativa de “resolver” o problema dos que tinham medo de assistir o inferno ainda nesta vida, ela, porém, adiavam as convulsões sociais porque a «bomba social», esta que a justiça restaurativa, a todo custo, pretendia evitar que detonasse (e conseguiu), permaneceria latente, exibindo o seu fumo e potência ameaçadora, de tempos em tempos. Faltava o principal da justiça restaurativa: a justiça económica – ou seja a tal economic freedom do EFP de Julius Malema. As injustiças sociais continuariam a ser problema na RSA.

Quanto a nós, a partir desta janela do Índico: é justo adiantar que o problema estava mal identificado: não era nem o branco, nem o negro; não o de confiar na bondade humana que há em todos nós, mas sim desconfiar o mal que também há em nós todos; o problema era a estupidez humana. E estúpidos encontramo-los em toda parte e de todas as cores.

O que também falhou é o modelo do “purgatório terrestre”; ele nunca havia de funcionar porque as almas feridas neste mundo vivem de verdade; elas sentem ainda a falta do pedaço de terra retirado, o emprego que falta, o piso da bota dos novos senhores, o sabor de um pão mal amassado ou ainda uma educação superior ainda não descolonizada e nem des-racializada. As greves dos estudantes universitários na África do Sul são uma prova disso. Os estudantes exigiam, no fundo, uma des-racialização da universidade e, consequentemente, de toda a sociedade.

A Igreja deve ser chamada a reformular a sua profecia consoante as dificuldades e os problemas das pessoas viventes, de carne e osso! E esses são os problemas para a nova Teologia dos Pobres. Estes que ainda não saboreiam os frutos da Rainbow Nation. Pois, que irá reinventar esta nova teologia reconciliatória, na qual os pobres terão o seu Banquete, não somente platónico, senão numa mesa real. God was not a Christian, indeed! (X)

[1]             Cfr. Allen, J. (2006): Rabble-Rouser for Peace. The Authorised Biography of Desmond Tutu. Rider. London, Sydney, Glenfield, South Africa, India. p.136.

Marcos Carvalho Lopes

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