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O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO NO DESENHO DO MUNDO PÓS-CORONA VÍRUS

Severino Ngoenha, Giverage Amaral,  Eva Trindade e o Carlos Carvalho

Refletindo sobre o principio de precaução de Hans Jonas os autores avaliam as consequências do corona vírus e a necessidade de construir proposta efetivas de um novo mundo.

O princípio da precaução conforme apresentado por Hans Jonas[1], nasceu no âmbito das considerações ecológicas e obrigando-nos a pensar sobre a intervenção do homem em relação a natureza.  A precaução como princípio, constituiu o pano de fundo da Declaração das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio,1992) na qual foi anunciada a intenção de se proteger o ambiente, por onde diferentes Países deveriam observar amplamenente este princípio sem poupar esforços políticos e nem económicos para a prevenção da degradação ambiental.

A precaução remete a necessidade de um questionamento sobre os riscos e às incertezas da técnica e da ciência, a serem considerados para a construção de uma ética aplicada ao avanço tecnológico, que não deve prejudicar nem a vida humana nem a biodiversidade.

Se convocamos o princípio de precaução para analise das diferentes pandemias e para o modo como foram geridas em países diferentes, podemos agrupar os diferentes governos em (1) aqueles que não negaram a existência e a periculosidade do vírus, levaram a sério a necessidade da aplicação do princípio de precaução e (2) aqueles que o menosprezaram completamente. E podemos ver que no segundo grupo a pandemia trazia muito mais dano e sofrimento.

O mundo conheceu várias pandemias de impacto e gravidade diferenciada, porém, alguns aspectos particulares da que vivemos, do corona vírus, merecem uma menção especial, até pela dimensão do paradoxo que ela introduz. Assim, Sete (07) são as razões que exigem uma análise científica rigorosa da pandemia em curso:

  1. Ela está a matar uma grande quantidade de seres humanos de todos os quadrantes e de todas as condições sociais.
  2. Ela está a enfraquecer as economias do mundo inteiro e, sobretudo daquelas que já são tradicionalmente mais fracas.
  3. Ela exacerba fenômenos de racismo estrutural, mete a nú as incongruências das nossas lideranças mundiais e de consequência, as contradições dos nossos sistemas eleitorais e democráticos.
  4. Ela demonstra a debilidade do sistema da globalização ultra liberal, a sua vocação unilateral para o ganho fútil, mesmo que seja em detrimento da maioria e da preservação do ambiente; os seus variantes sociobiologistas e eugenistas de contínua descriminação contra os pobres; os egoísmos nacionalistas contra o verbo vazio da solidariedade global; o nascimento de novas hegemonias sobre as tumbas e cadáveres de pobres e velhos abandonados.
  5. Ela demonstra a precariedade de um sistema de competição, tanto elogiado pelo capitalismo, mas perverso na medida em que uma colaboração entre os actores mundiais provavelmente teria já encontrado o antídoto.
  6. A pandemia actual  mostra que os mais fortes nem sempre permanecem os mais fortes. A plataforma worldometro [https://www.worldometers.info/coronavirus/], na data de 19/07/2020 mostrava que a quantidade de mortos pela covid-19  por  milhão de habitantes, no caso de alguns países famosos como ex-colonizadores:  845 na Bélgica; 667 na Inglaterra; 608  na Espanha; a superpotência EUA tem 432 mortos e o Brasil 371. Por comparação: Os grandes ex-inimigos dos EUA, Cuba tem 8 e o Vietnã 0! (o Moçambique, aliás, 0,3). As diferenças abismais entre o fracasso de certos gigantes no combate ao vírus e o éxito de certos anões não passará despercebido e deixará sua marca no mundo pós-corona. O que a pandemia mostra é, pelo contrario, que haverá alterações na distribuição do poder no mundo! Os fracassos e éxitos na era da pandemia não serão sem efeitos no mundo pós-Corona!
  7. A pandemia, finalmente, nos lembra de que apesar da rescisão dos sistemas dos BRICS, dos movimentos Pan-Africanistas e da organização dos Pan-Americanos, dos Não-Alinhados, faltam discursos sobre modelos de um outro mundo; faltam discursos filosóficos alternativos ao pós-liberalismo em geral. O lema dos Foruns Sociais Mundiais em Porto Alegre soava: UM OUTRO MUNDO É POSSÍVEL! Transformavam países inteiros, universidades, massa crítica, em críticos no sentido mais parco e mau do termo, e não em proponentes, mesmo se a ocasião se presta, de construtores daquilo que Norman Gall chamava de outra mundialização possível. Suscita atenção como questionamento de fundo o que a história das grandes pandemias ensina: mais cedo ou mais tarde todas elas encontram uma imunização, para que a vida social possa retomar o seu curso; nestes processos históricos os mais fortes acabam vendo as suas hegemonias reforçadas e os mais frágeis, são ainda mais penalizados.

Nunca a ciência foi tão desenvolvida, tão na vanguarda como nos nossos dias, de tal maneira que pensadores como Max Weber e Marcel Gauchet poderão falar do desencantamento do mundo, da difícil relação do nosso mundo, do triunfo do homo faber com a ciência. Todas as outras formas de saber que não passem pelo crivo da ciência foram sendo gradativamente empurrados para fora daquilo que constitui o substrato e dogma da modernidade: manipulamos geneticamente os seres humanos, as plantas, os animais; invadimos os terrenos de outras espécies sobre o fundo dos mares e oceanos, viajamos em direcção à lua e à Marte, convencidos que a ciência, e só a ciência, pode ser resposta e criadora dos sonhos prometeicos do homem.

Os líderes políticos das principais potências do mundo (Trump, Bolsonaro, Macron, Boris Johnson) foram educados na tecnociência. Todavia, diante da pandemia do corona vírus, tiveram um comportamento que podemos classificar de pré-moderno. Não acataram as advertências da ciência e dos cientistas e assim contribuíram a uma expansão exponencial do fenômeno e a morte de milhares (Números oficiais: 597’904) de pessoas. Não é por acaso que grandes grupos se revoltam contra as medidas tomadas pelos seus eleitos, como acontece nos EUA, no Brasil e na República Sul Africana.

A razão deste fenômeno não tem de se buscar na descrença na ciência. O que está em causa é o tipo da sociedade em que as pessoas desejam viver. O Neo-Liberalismo promove o aumento sistemático do poder e do dinheiro. Neste modelo de uma sociedade os processos democráticos e, mais geralmente, a vida dos indivíduos, e nomeadamente, a vida dos mais fracos, ficam para trás.

Assim, diante do paradoxo entre medidas de precaução a favor da vida em maior número, ou de favorecer os ganhos pecuniários de pequenos grupos, se explica a tomada de decisões paradoxais das lideranças políticas mundiais. Logo a partida pela contaminação maciça, Trump, Bolsonaro e Johnson aderiam, no fundo, as teorias sociobiologistas ou do darwinismo social, que defendem a seleção natural, ou que se resume à eliminação dos mais fracos, o que como já defendia Herbert Spencer, e como exatamente fez Boris Johnson, permitiria um fortalecimento da sociedade. Por isso mesmo, não é de se surpreender que apesar da Inglaterra se ter retirado deste processo, as principais vitimais, nos EUA, no Brasil e na Europa, sejam os mais fracos, quer dizer, os pobres e os economicamente não produtivos, os velhos.

O Segundo paradoxo, mas que ao mesmo tempo marca o fim do mundo pós segunda guerra mundial é o redesenho dum mundo pós corona vírus. As instituições das Nações Unidas, FMI e Banco Mundial, UNESCO, OMS etc. foram desenhadas sobre a guia e hegemonia dos Estados Unidos da América e foi sobre a sua égide, não democrática (o poder de veto das potencias nas UN e a força dos países singulares nas organizações econômicas internacionais que o mundo viveu nos últimos 50 anos,), mesmo antes de Trump, está pax americana começou a ser questionada, não tanto pela vontade dos países de Sul (BRICS) de querem ter uma voz nas Nações Unidas, mas pelos EUA mesmo: anos atrás saíram e parece que depois entraram na UNESCO; com Bush Filho, começaram a questionar o multiculturalismo, não aderiram aos acordos internacionais sobre o ambiente, Kyoto e de Paris, começaram a diminuir a sua presença estratégica na NATO, e agora, em plena pandemia, decidiram retira-se da OMS.

Para além do egoísmo que estas ações manifestam, elas também significam o descrédito num sistema-mundo que eles próprios desenharam; a busca das novas configurações do sistema mundo econômico (com a emergência de novas potências como a China, o desenvolvimento da Europa) que o corona vírus ajudará a acelerar.

A OMS, como a NATO ou a UNESCO eram organizações majoritariamente financiadas pelos EUA, no seu papel de líder mundial. Porém, as organizações das Nações Unidas eram financiadas com dinheiros públicos, e só em magra parte por fundações, empresas ou grupos filantrópicos. Com o avanço neoliberal das últimas décadas essas organizações encontram-se prisioneiras, reféns de grupos de interesses, como o Estado, tornaram-se palcos de lutas e conflitos internacionais, dos quais a medicina e as indústrias farmacêuticas são as maiores protagonistas.

O terceiro grande paradoxo ou trilho de reflexão é ligado aos Bigdatas. Longe do mito das mídias e da comunicação como sendo o quarto poder, nos últimos anos emergiu com força esta nova indústria, chamada Bigdatas, de um lado pelo seu poderio econômico e do outro, pela sua capacidade de controle e até da manipulação dos cidadãos, o que é claramente contra as liberdades individuais e a democracia.

O problema é grave, pois um governo qualquer, ou uma nação pode apropriar-se deste poder inédito, como demonstraram os documentos de Wikileaks, em que Julian Assange demonstra que os EUA vigiavam inclusive os seus próprios aliados e controla os seus próprios cidadãos. A coisa torna-se mais grave ainda, quando esse poder se encontra nas mãos de um pequeno grupo de indivíduos que podem decidir ao seu bel-prazer, quem deve ou não ganhar as eleições nos países mais fraco ou mais fortes e, como consequência, determinar as políticas econômicas e sociais do mundo, como de uma maneira chocante e preocupante demonstram os trabalhos nas eleições de Trump, em volta de Cambridge Analytica.

É um retorno paradoxal das coisas. As forças militares francesas estacionadas na África, desde a década 1960, fazem e destituem governos segundo a sua vontade e interesses, e os Bigdatas parecem estar em condições, tout proportion gardée, de fazer o mesmo até nas chamadas velhas democracias ou nos sistemas econômicos mais fortes. Ora, durante o processo de confinamento que se impôs, todos os processos de comunicação políticos, educativos, financeiros, econômicos, passavam pelos canais dominados pelos Zooms (Eric Yuan), Skype (Microsoft corporation), Google (Alphabet inc.), Facebook inc. e Whatsapp (Mark Zuckerberg). Isso quer dizer que o processo do corona vírus tem já os seus vencedores, que são aqueles que já estão a incrementar a sua hegemonia sobre o mundo, aqueles que mais do que qualquer outros estão a desenhar aquilo de que o mundo pós corona vírus será feito.

Esteve em voga durante um período de gestão da pandemia a teoria da conspiração. Os telemóveis mostraram-nos vídeos em que alguns chineses contaminavam deliberadamente metrôs, praças públicas, comida nos supermercados nas principais capitais ocidentais; correram debates sobre a origem humana do corona vírus muitas vezes ligadas as buscas científicas com fins farmacêuticos e outras para guerras bacteriológicas. A OMS e os governos europeus vieram dizer que estas teorias eram falsas e as próprias acusações de Trump à China, não iam ao sentido de uma produção voluntária do vírus com fins de guerras bacteriológicas, mas focava na demora na comunicação.

Porém, o que estes debates revelam é a crença geral dos humanos na possibilidade que alguns homens o pudessem ter deliberadamente feito, o que por sua vez mostra o facto de assumirmos a ilimitada perversidade do ser humano e sua grande desconsideração a para com os outros e para com a vida, este é o primeiro elemento. Do ponto de vista moral, o que este debate quer dizer é a perversidade do homem, que sem irmos a situações de Cuba, Venezuela, Síria, Líbia, mas imitando-os nos corolários do corona vírus, o número deixados sem contas nas ruas de São Paulo, Nova York e etc, só reafirmam a perversidade humana.

O segundo elemento é ligado à força da natureza. A literatura muitas vezes sublinhou que a natureza pode ser acolhedora, mas muitas vezes pode ser vingativa. Porém, o que tudo parece indicar, nas posições e nos estudos ecológicos recentes, é que mais do que uma natureza vingativa, trata-se de um homem perverso para com ela. A veleidade da conquista e do domínio do homem em busca de um enriquecimento e de um poder constante parece não ter limites, e se o corona vírus fosse de origem natural, a crença geral é que ele teria sido despoletado pela desproporcionada e invasiva ação de homem sobre a natureza.

O terceiro elemento é o erro humano involuntário. Nenhum homem hoje, em pleno exercício da sua razão poderia contestar os bens feitos pela ciência. Ela permitiu a melhoria inaudita das condições da vida do homem sobre a terra (alimentação, transporte etc.). Porém, como tem sido sublinhado, quando essa mesma ciência não é acompanhada por consciência, pode ser uma catástrofe para o ser humano. Por outro lado, da ciência cartesiana que tinha a sua origem na crença divina ao homem-Deus Yuval Harari, percorreu um caminho que demonstra a falibilidade do homem e da ciência que ele criou…

Em todas estas teorias, sobre o corona vírus, a conspiração, do erro humano e da força da natureza, existem elementos comuns, capazes de influenciar o rumo dos acontecimentos ecológicos, políticos, económicos e sociais após a sua imunização. O princípio de precaução de Hans Jonas tem a ver com a questão axiológica de valores, e torna-se interessante em si pelo seu foco na defesa da vida presente e futura, garantindo que as outras gerações de humanos possam encontrar condições de sobrevivência no planeta terra. Procura evitar o desaparecimento da humanidade, mas também o colapso da bio-diversidade. Representam valores pelos quais temos que sacrificar o sistema económico vigente. O princípio da precaução leva-nos a pensar nos valores que defendemos, mas também, por esse lado, deve levar-nos a pensar em como escolhemos e elegemos os nossos líderes. Temos que pensar no modo como as pessoas que lideram os países são escolhidas, pois isto explica muito sobre os valores que defendem, que podem não colaborar para defesa da vida.

Os meios tendem a tornar-se mais importantes que os fins, a economia mais importante que a vida. Isto descortina uma dura realidade marcada pelo proceder do homem em relação a natureza. O homem tornou-se capaz de destruir tudo o que lhe circunda e cuja existência lhe permite a vida. Por tal, a ética é convocada a impor limites a ação do homem, de modo a que se refreie a possibilidade de que o homem cause mal a si próprio[2].

Tudo que dissemos até aqui pode parecer normal. Correspondem a normalidade das coisas como historicamente se passaram e como se passam neste momento. O que é anormal é a ausência de um pensamento alternativo por parte daqueles que representam a esquerda e outros movimentos alternativos ao liberalismo. O grande desafio que temos é produzir um pensamento político alternativo e contra-hegemônico, e este seria o papel  dos grupos e partidos que militaram durante anos, renascerem não simplesmente para contestar o imperialismo dominante, mas para produzir um mundo alternativo: este é o momento de se mostrar que um outro mundo é possível, com propostas concretas do que seria esse outro mundo.


[1] Sua principal obra é “Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethic für die Technologische Zivilisation”, (O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica), publicada em 1979.

[2] Ricardo de Sant’Anna Valenti – Fundamento ético do princípio da precaução: o ambientalista Hans Jonas, 01/07/2017. https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-162/fundamento-etico-do-principio-da-precaucao-o-ambientalista-hans-jonas/

Marcos Carvalho Lopes

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