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Os fatos duros da filosofia

À diferença do que muitos supõem, a filosofia tem fatos concretos e irrefutáveis

A primeira questão que procurarei esclarecer é se podemos falar de “a” filosofia, isto é, se a filosofia é algo que possa ser definido, o que pressuporia que há algo, através do tempo, que a mantém como tal, ou seja, que há algo na filosofia que se mantém inalterável, permanente. Pois nosso assunto, “A Filosofia Hoje”, pressupõe que houve uma Filosofia ontem, do mesmo modo como estamos convencidos de que existirá amanhã. Assim, se houve algo que permitiu que chamássemos uma determinada atividade de ‘filosófica’, eventualmente há algo que relaciona o que se fez em épocas passadas e o que se faz hoje e se fará amanhã. O que seria isso? É o que vamos tentar descobrir.

Numa afirmação aparentemente despretensiosa e que não esconderia nada de grande importância, Aristóteles, ao se referir a Tales, Anaximandro e Anaxímenes, os chama de “filósofos físicos”. Essa referência me parece de fundamental importância para percebermos que está implícita aí uma concepção de filosofia como algo que admite áreas e, portanto, diferenças. Pois se há filósofos físicos poderíamos falar, também, de filósofos metafísicos, éticos ou políticos. Se isso é possível, então a própria filosofia é mais do que uma só atividade.

Se esse é o caso, então a própria filosofia poderia ser feita de várias maneiras, isto é, ela mesma poderia ser várias coisas. O problema é: como poderia ser ela várias coisas e uma ao mesmo tempo? Como poderia haver filosofia física, filosofia política, ética, metafísica e, ao mesmo tempo, existir ‘a’ filosofia? Como poderia ela mudar no tempo, e até no mesmo período, e se manter ao longo dos séculos?

Nossa preocupação seguinte deve ser determinar se é possível falarmos ‘da’ filosofia, como se falássemos de algo singular, que tenha uma identidade e uma propriedade que se mantenha ao longo do tempo.

Podemos começar perguntando se há um objeto privilegiado que seria ‘o’ objeto filosófico. Se voltarmos a Aristóteles, percebemos que, desde os gregos, não se poderia falar de um objeto filosófico único ou privilegiado. Com efeito, aqueles que tradicionalmente foram considerados os primeiros filósofos, os pré-socráticos, não demonstram ter as mesmas preocupações. Seus objetos não são os mesmos. Os primeiros deles, Tales, Anaximandro e Anaxímenes se preocupam pelo princípio de todas as coisas, o que Xenófanes não faz. Heráclito, por sua vez, mostrou ter preocupações completamente diferentes das de todos eles. 

A história de Tales, Anaximandro e Anaxímenes, por outro lado, nos mostra algo esclarecedor sobre a natureza da filosofia. Não podemos definir a filosofia como o estudo ou procura da verdade nem, de outro, como o da conquista da verdade. Com efeito, se pensarmos na eventual conquista da verdade, só um dos três pensadores a teria alcançado. Pois as respostas para o problema sobre o princípio de todas as coisas são excludentes. Se formos julgar alguém filósofo por ter conquistado a verdade, só um deles seria. Ou mesmo nenhum, se pensarmos que a ciência posterior mostrou que nenhuma das três respostas é verdadeira. 

Muito se insiste no caráter vago abstrato ou mesmo abstruso da filosofia. Afirma-se por isso que não há resultados definitivos nesta atividade. Se olharmos detidamente, poderemos perceber que há, não só fatos concretos, mas que eles são incontestáveis. Um deles é a existência de posições, teorias e afirmações incompatíveis e, portanto, excludentes logicamente. É isso que permite que pensadores sejam classificados pela sua orientação em escolas opostas de pensamento, como idealismo, materialismo, dogmatismo, agnosticismo, etc. Aí temos um fato incontestável: se Tales tivesse estado certo, Anaxímenes e Anaximandro não poderiam tê-lo estado. E se é a posse da verdade que define se alguém é filósofo, então só ele o seria. Ocorre, no entanto, como um resultado concreto e irrefutável, que nenhum deles estava certo, e nem por isso os consideramos menos filósofos.

O mesmo ocorre nos pensadores posteriores. E há outro fato concreto de extrema importância. Tem a ver com Platão. Não só na filosofia encontramos posicionamentos e teses incompatíveis, como as já citadas, entre filósofos, pois é possível constatar isso no desenvolvimento intelectual do mesmo pensador. O discípulo de Sócrates é um caso notável, e um exemplo importante está no seu abandono de uma tese fundamental: aquela que diz respeito ao abandono da teoria parmenídica sobre o ser. Como é sabido, no “Sofista”, Platão critica a teoria de Parmênides e desenvolve outra. Isso prova também, de forma irrefutável, que um pensador pode defender posições opostas na sua trajetória intelectual e continuar sendo filósofo. Pois, de duas, uma, ou aquele Platão que acredita na tese de Parmênides está certo, ou o outro, o que que abandona a teoria e propõe uma diametralmente diferente. Mas o fato incontestável é que Platão é com justiça considerado filósofo antes e depois do abandono daquela tese. Que é, então, o que o torna filósofo mesmo defendendo teorias opostas? Naturalmente, não pode ser a defesa de uma determinada tese, pelo que acabamos de ver. Se esse é o caso, também fica em questão a definição da filosofia como procura da verdade. A tentativa de se definir a filosofia como procura da verdade se topa com outro inconveniente que também é um fato empiricamente constatável: outras áreas também pesquisam a verdade, como a física, a química, a biologia, etc. Não é, pois, privilégio da filosofia procurar pela verdade, pois não é só nela que unicamente se a procura, além de ter sido demonstrado que nem todas as teses de filósofos consagrados podem ser verdadeiras. Não vejo aqui lugar para debate, a não ser que assumamos uma posição dogmática e autoritária e mantenhamos que filosofia é algo muito específico e que, portanto, pensador que não possa ser enquadrado nessa determinada definição é excluído como não filósofo. É possível que alguém mantenha essa posição, no entanto, no seu curso de filosofia, seja ele estudante ou professor, continuar-se-ão ministrando aulas de pensadores que defenderam as teorias filosóficas mais díspares. E como isso ocorre em todos os lugares que existem cursos de filosofia, prova-se de forma irrefutável que não é por se manter esta ou aquela concepção de filosofia que alguém é considerado filósofo, mas por alguma outra coisa. E é isso que estamos aqui querendo determinar.

Parte de uma conferência apresentada na 12ª Semana de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo, “Filosofia e a Crítica da Sociedade Contemporânea”, sob o título “A Filosofia Hoje”, em 8 de novembro passado.


Gonçalo Armijos Palácios

José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1983), da revista Philósophos (1986), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.


publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção – Edição 1845 de 14 a 20 de novembro de 2010

Marcos Carvalho Lopes

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