Gonzalo Armijos Palácios (publicado originalmente no Jornal O Popular em 2015)
Já vi vários filmes cujas histórias acontecem no Centro-Oeste ou no Sul dos Estados Unidos e mostram em detalhes a relação entre o sistema judicial, e policial, e os negros. Um deles é considerado por muitos como o melhor filme de todos os tempos, “O Sol é Para Todos”, de 1962, dirigido por Robert Mulligan e estrelado por Gregory Peck. Esse filme trata do processo seguido contra um negro por supostamente ter estuprado uma branca, numa pequena cidade fictícia do Estado de Alabama, nos anos 30. Outro é “No Calor da Noite”, dirigido por Norman Jewison e estrelado por Sidney Poitier e Rod Steiger, de 1967. Neste filme, um negro (representado por Sidney Poitier) que passa por uma pequena cidadezinha do Mississipi e deve esperar a noite toda numa desolada estação pelo próximo trem, é preso por… sim, por ser negro. Ele resulta ser um policial da Filadélfia e termina ajudando o chefe da polícia local, um branco (representado por Rod Steiger), a resolver um homicídio. Esses e outros filmes mostram claramente como naquele país, como em muitos outros, ser negro é mais do que meio caminho andado para ser considerado delinquente, ser preso de forma arbitrária, quando não torturado ou executado por policiais, como nos casos recentes sobre os que tenho escrito nos últimos artigos.
A morte pela polícia de um jovem negro em Ferguson, Missouri, que provocou protestos que se espalharam pelos Estados Unidos e que teve repercussão mundial, esconde uma situação que, apesar de tudo o que sabemos sobre racismo, é ainda difícil de acreditar.
Pressionado pela reação cidadã, o Departamento de Justiça daquele país fez um levantamento da situação de Ferguson e de outros municípios do condado de St. Louis e publicou um informe condenatório denunciando as práticas de violência e abuso sistemáticos orquestrados contra os negros e os mais pobres dessa parte do Estado, que abrange mais de 80 municípios.
É impossível não ficar indignado pela leitura desse relatório e pelos detalhes de uma política institucionalizada do sistema judicial em conluio com as polícias locais para, literalmente, depenar os membros da população mais pobre e majoritária desse condado: os negros. Na semana passada me referi à média de ordens de arresto em Ferguson por família: 3,2. E a dos arrestos efetivamente feitos: 2,2 por pessoa. Ferguson é afortunada, se considerarmos outras municipalidades. Na de Pine Lawn, de pouco mais de 23 mil habitantes, mais ou menos a mesma população que a cidade de Goiás, a média de ordens de arresto por pessoa chega a 7,3. O motivo das intimações e prisões não é a suspeita de se ter cometido um crime. É a de se ter cometido uma infração de trânsito, ou, como num caso, por permitir que o cachorro urine, no próprio jardim da casa, sem coleira!
O fato de muitas fábricas ou empresas terem migrado para outros lugares fez que a receita desses municípios despencasse. A melhor forma que as autoridades municipais acharam para recuperar-se foi promover um verdadeiro festival de multas e taxas que tinham como alvo os mais pobres, a maioria negra da população. O curioso é que uma municipalidade pode ter 50 mil habitantes, ou 13, sim, treze pessoas, se o local tiver pelo menos seis casas. Seis casas e um mercadinho podem ser uma ‘municipalidade’. Isso explica que um condado, como o de St. Louis, tenha 81 municipalidades. A média nacional de policiais por pessoa, naquele país, é de 2,4 oficiais de polícia por 1.000 habitantes. Na pequena municipalidade de Beverly HIlls (Missouri), com menos de 600 habitantes e com 13 quarteirões ao todo, há 14, isto é, nove vezes a mais do que a média nacional. Em 2013, as municipalidades do condado de St. Louis arrecadaram, em multas e taxas, 45 milhões de dólares. Isso representa 34% da arrecadação de todo o Estado de Missouri.
Observe-se, agora, como são cobradas as multas. Os cidadãos que receberam as multas devem comparecer num horário muito restrito. Primeiro chamam os que podem pagar 100 dólares ou mais. Não os que primeiro chegam ao local. Depois, os que podem pagar 90, depois 80 e, assim, até chegar às multas de 25 dólares. As portas não ficam abertas. No horário limite são fechadas e os atrasados receberão ordens de prisão. O mesmo acontece com quem não paga por não ter dinheiro. De modo que os mais pobres costumam chegar mais cedo para não correr o risco de não entrar, não pagar e serem presos. Bem, eles, os mais pobres, são obrigados a chegar mais cedo, mas são os últimos a serem atendidos e devem esperar mais de quatro horas num espaço pequeno, infestado de gente, para poder livrar-se da prisão. Todo esse abuso e essa prática perversa, note-se, apesar de a Corte Suprema de Justiça dos Estados Unidos, em 1983, ter declarado inconstitucional ser preso por não poder pagar dívidas. Assim, e como disse uma matéria da CBS em 2013, milhares de norte-americanos são presos, não por terem cometido algum crime, mas por não poder pagar multas de trânsito, taxas ou contas hospitalares. É uma forma como nesse país se explora um segmento muito bem selecionado da população: os negros e os mais pobres.
José Gonzalo Armijos Palacios - Possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás.